Episódio 12/13

O plano

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TRANSCRIÇÃO 

Nuno Viegas: Olá. Eu sou o Nuno Viegas. Este é o décimo segundo episódio de Desassossego, uma série Fumaça sobre saúde e doença mental. Não comeces aqui: volta ao primeiro para perceber. Recomendo que uses auriculares ou auscultadores para o ouvir.

Está disponível em fumaca.pt a transcrição do episódio e ainda um glossário.

Vamos a isto. É narrado por Margarida David Cardoso.

I

Filipa Palha: A aprovação do plano foi uma lufada de esperança. Embora rapidamente tivesse sido esfumada.

Francisco Sampaio: Se há coisa que é unânime é o Programa Nacional de Saúde Mental. Portanto, Portugal é habitualmente um país com excelentes planos, mas depois com pouca concretização prática desses planos.

João Rodrigues: Nós temos um excelente plano, teórico, mas temos tido imensas dificuldades.

Miguel Bragança: Nós temos excelentes planos. Portugal sempre foi muito bom escrever. Os médicos têm a tradição de serem bons escritores. Mas pouco mais.

Joaquina Castelão:  Agora, temos que crer e acreditar e esperar é que haja uma concretização concreta e plena, não é? Porque de promessas já nós andamos há muitos anos.

José Caldas de Almeida: Eu comecei nestas guerras em 1980. Bem, não é uma guerra. É uma luta, é uma luta antiga. E, antes disto, isto já existia. E não é uma coisa portuguesa. É uma coisa mundial, global. Há uma história longa. Então, eu queria perceber se devo focar-me só no burgo, se devo focar-me…

Margarida David Cardoso: José Miguel Caldas de Almeida tinha o percurso mais ou menos traçado à saída da faculdade de Medicina. É o próprio que o diz. Entrara no Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa, para se tornar psiquiatra, em 1977. Foi professor universitário, catedrático, diretor da faculdade, diretor de serviço. E, desde muito cedo, envolveu-se na reforma do hospital psiquiátrico onde se iniciara.

José Caldas de Almeida: Porque tive sorte, porque fui parar a uma equipa que tinha já gente da geração anterior, que já andava à volta disto. De outra maneira, mas já lá andavam… Na chamada psiquiatria social.

Margarida David Cardoso: O Serviço Nacional de Saúde era fundado por esta altura, em 1979, e consolidavam-se os efeitos da primeira lei de saúde mental, de 1963. A lei assentava na criação de serviços descentralizados e espalhados pelo país: os Centros de Saúde Mental.

José Caldas de Almeida era, então, convidado por Eduardo Luís Cortesão, influente professor catedrático, para o ajudar a montar o ensino de psiquiatria naquela que viria a ser a Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa.

RTP Arquivos
Jornalista: Foi o único catedrático de medicina que se formou com 20 valores em Psiquiatria. Partiu para Londres onde fez vários cursos e regressou, em 1956. Começou a praticar a grupanálise em Portugal, um ato inovador na medicina.

José Caldas de Almeida: Era um tipo, de facto, bastante impressive em vários aspetos: tinha estado em Inglaterra, era uma pessoa que criou muitos discípulos, etc. E eu fui com ele. E aí o problema que nós tínhamos era como é que ensinar psiquiatria (que se pretendia ser mais ou menos moderna) num asilo abjeto, ou um campo de concentração, se quiser, que era o que era, predominantemente, o Miguel Bombarda. Foram tempos heroicos.

Margarida David Cardoso: Caldas de Almeida começou, então, a interessar-se por estas coisas das reformas para a psiquiatria social.

José Caldas de Almeida: … de desenvolver serviços alternativos, etc… Porque o Cortesão já não tinha paciência – “Oh sr. Miguel, você que trate disso.” Vai daí, começamos vários a trabalhar cá em Portugal. E outros que trabalhavam noutros países, sobretudo do sul da Europa, souberam de nós e começámos a trabalhar em conjunto. Aí já no princípio dos anos 80. Com os italianos, com os espanhóis, os gregos, os franceses, sobretudo. E criou-se, de facto, um grupo bastante forte que depois também aproveitou a Comissão Europeia para fazer lobby lá.

Margarida David Cardoso: No princípio dos anos 80, criaram um grupo – “bastante forte”, adjetiva Caldas de Almeida – que viria a fazer lobby por uma reforma na saúde mental junto de instituições europeias. Entre eles, estavam figuras importantes da política de saúde mental, como Nuno Afonso Ribeiro e Guilherme Ferreira, e o italiano Benedetto Saraceno, que viria, anos mais tarde, a tornar-se o chefe máximo da saúde mental na Organização Mundial da Saúde. 

Também Caldas de Almeida ganhava relevo em Portugal. Em 1988, foi convidado pela ministra socialdemocrata Leonor Beleza, para diretor dos Serviços de Saúde Mental. Propôs, então, um novo modelo de reorganização dos serviços, como já tinha feito o seu antecessor. Assistiu à criação de novos serviços, mas também aos obstáculos à retirada de responsabilidades dos hospitais psiquiátricos. 

Em 1992, o ministro que sucedeu a Leonor Beleza, Arlindo de Carvalho, fez centralizar os 23 centros de saúde mental existentes nos hospitais gerais. Para Caldas de Almeida, foi uma “contra-reforma” no desenvolvimento dos serviços comunitários. Até que, em 1995, o ministro da Saúde seguinte, Paulo Mendo, organizou com a Direção-Geral da Saúde uma conferência para reunir consensos. Vêm daí as ideias que deram forma a uma nova lei de saúde mental, em 1998, depois de várias tentativas fracassadas. Especialmente focada em regular o internamento compulsivo, esta lei previa também a tendência para o internamento fora dos hospitais psiquiátricos.

Há anos que eram longas as discussões sobre o fecho destas estruturas. O Júlio de Matos chegou mesmo a ter um plano de venda e projetos de urbanização entregues ao arquiteto Tomás Taveira, no final dos anos 80.

José Caldas de Almeida: Uma reforma psiquiátrica bem feita é dos processos de mudança social mais complexos que existe. Porque tem que… Não é fazer mais coisas. É fazer tudo quase de pernas para o ar. É fechar instituições centenárias, que é uma coisa dificílima, porque as instituições não gostam de morrer; é retreinar as pessoas; é mudar os recursos humanos e financeiros que estão a trabalhar de uma determinada forma para outra forma; é uma coisa que é muito complexa, exige tempo. Hoje, eu reconheço que exige mais tempo do que eu, ao princípio, pensava. Se calhar alguns erros foram feitos por não sabermos isso.

Margarida David Cardoso: Caldas de Almeida pensava que demoraria quatro ou cinco anos para tirar Portugal daquilo a que chamava “estratosfera legislativa” – tempo para criar uma nova lei, definir uma política, construir um plano. Mas passaram quase 20 desde o momento em que dirigiu uma reforma nos anos 80, até ver um plano aprovado, em 2008.

No interregno, trocou Portugal por Washington DC, durante cinco anos, para liderar um programa de saúde mental da OMS para o continente americano. Regressou no final de 2006.

José Caldas de Almeida: E quando voltei para cá eu tinha prometido à minha melhor mulher: “Olha, acabaram-se estas coisas. Agora vamos gozar a vida.” Porque aquilo eram vidas Infernais. Houve uma altura em que eu viajava… Sei lá, mais de metade do tempo eu estava em aviões a andar de um lado para o outro. Bom, não correu assim. E não ocorreu assim por duas razões: uma foi porque o Correia de Campos, que era o ministro na altura, pediu-me para pôr em pé um Plano Nacional de Saúde Mental. E eu tive dificuldade em dizer que não, enfim, lá nos metemos nisso.

Margarida David Cardoso: António Correia de Campos esteve por duas vezes à frente de ministérios da Saúde socialistas, primeiro em 2001 e 2002, com António Guterres, e novamente em 2005 a 2008, no primeiro governo de José Sócrates. No início desta legislatura, já se avizinhando as dolorosas reformas que faria nas maternidades, urgências e cuidados de saúde primários, tornava pública a intenção de levar avante também uma reforma na saúde mental. Anunciava querer fechar progressivamente os hospitais psiquiátricos, que considerava “modelos condenados”. Desta vez, era um socialista a chamar Caldas de Almeida.

José Caldas de Almeida: O que o Correia de Campos me pediu foi que criasse um grupo, uma comissão, e deu-me um ano para apresentar. Um ano é pouquíssimo. Mas ele não escondeu. Disse: “O calendário eleitoral é este, o tempo que eu tenho é este.” Ele sabia bastante, porque ele tinha estado em Washington no Banco Mundial. E daí também a nossa ligação. Embora ele depois tirou-me o tapete a certa altura, como acontece nestas coisas. O que ele me prometeu foi que eu tinha carta branca para criar o grupo que eu quisesse e deu-me imenso apoio de trazer a OMS, de trazer… Eu, nessa altura, tinha uma rede mundial muito forte que, de facto, deram uma ajuda muito grande. Porque tinha a evidência científica toda, tinha gente que vinha cá falar às coisas. Agora, para implementar o plano… Implementar um plano de saúde mental é uma coisa muito difícil, muito difícil, muito complicada.

Margarida David Cardoso: Aconteceu que, entretanto, em 2007, Caldas de Almeida aceitou ficar diretor da sua faculdade. Por razões muito excecionais, diz. Excluía, então, a hipótese de ficar para implementar o plano.

José Caldas de Almeida: Pode-me dizer “Você passa a vida a acontecer-lhe coisas inesperadas”, mas eu tenho queda para isso… Então, eu combinei com o Correia de Campos que eu terminava o plano, entregava o plano. E aquilo foi tudo feito by the book, com auscultação de todos os grupos, debates para aqui, debate para acolá. E acho que não estou a… claro que eu tenho aqui conflito de interesses, mas o plano ficou muito bom… Do ponto de vista técnico e político, o plano estava muito bem feito, de facto. Eu também tinha andado lá, não sei quantos anos, a pregar como é que se fazia planos. Se eu também não fizesse (eu e quem me ajudou) uma coisa bem feita, seria estranho.

Margarida David Cardoso: O Plano Nacional de Saúde Mental propunha entre 2007 e 2016 guinar os cuidados de saúde mental para a comunidade. Uma política orientadora, com metas e prazos, para a década seguinte.

José Caldas de Almeida: O que é que aconteceu? E eu hoje conto isto porque às vezes as pequenas histórias têm importância e porque é público, hoje as pessoas sabem disto, não é segredo. O tipo que foi designado (que eu não vou dizer quem), quem foi para coordenar o plano… Houve uma daquelas trapalhadas de que mandam um email (não foi ele)… Uma pessoa importante do ministério mandou um email não tirando o rabinho que estava por trás dizendo que ele era um tipo horrível, e não sei quê, e não sei que mais – daquelas intrigas que o Ministério da Saúde é useiro e vezeiro. E ele fez um disparate: ele mandou um e-mail para o Correia de Campos a dizer “dada esta situação, peço a demissão”.

Margarida David Cardoso: Isto aconteceu, diz José Caldas de Almeida, estava já o plano entregue. 

José Caldas de Almeida: E aí o Correia de Campos marcou um almoço, no Grémio Literário, e disse: “Ou tu implementas o plano ou não há plano.” É à político, mesmo. E eu fiquei, assim, um bocado aflito e disse: “Ok. Então durante três ou quatro anos, eu crio uma equipa.” E lá fomos.

Margarida David Cardoso: Entrou ao serviço a Coordenação Nacional para a Saúde Mental. Caldas de Almeida acumulou o cargo de coordenador, não remunerado, com a direção da faculdade. Parte do que tinha para fazer estava facilitado, disse-nos Carmen Pignatelli, então Secretária de Estado da Saúde, que ficou a coordenar politicamente este trabalho. Acreditava nisto porque “tinha havido um forte investimento”, com fundos europeus, nos anos anteriores, para a construção de serviços de saúde mental nalguns hospitais que os não tinham.

Em 2010, dois anos após a aprovação do plano, Caldas de Almeida falava aos deputados da comissão de saúde sobre o desafio de o implementar.

José Caldas de Almeida: Acho que nós agora deixamos de ter desculpas, temos aquilo que é necessário e se não conseguimos, a culpa é nossa – nossa, minha e vossa, e de todos. Porque a reforma da saúde mental não vai ser uma tarefa de um coordenador, nem de um ministério, nem de um governo, vai ser tarefa de toda a população portuguesa. E vai ser difícil e eu concordo muito que as dificuldades são muitas.

Margarida David Cardoso: Este é o episódio 12: O Plano. Seja toda a gente bem-vinda ao Fumaça.

II

Reportagem SIC (2011)
Catarina Neves, jornalista: Restam menos de 30 doentes, vivem no Hospital Miguel Bombarda alguns há mais de 40 anos. Mudam-se para instituições particulares de solidariedade social.

Utente: Nunca pensei gostar tanto disto, a sério. Gosto bastante do Miguel Bombarda.

Enfermeira: A psiquiatria forense foi embora e uma médica fartou-se de chorar. Eu vi a senhora assim, não me tinha apercebido, não sabia exatamente o que é se estava a passar com a senhora. Pior ainda, a aprofundar mais a dor da senhora. Mas sim, ficamos todos. Acho que no final, nos últimos dias também vou chorar.

José Caldas de Almeida: O plano de encerramento do Miguel Bombarda durou 20 anos. 20 anos. Não foi uma maluquice que em 2011 se chegou lá e se fechou aquela porcaria. Não! Aquilo foi a pouco e pouco.

Margarida David Cardoso: Quando José Caldas de Almeida coloca os eventos num calendário mental, o início do fecho do hospital Miguel Bombarda está no final dos anos 80. À medida que se criavam novos serviços de saúde mental em hospitais gerais da área metropolitana de Lisboa e a sul do Tejo, diminuía o número de doentes agudos que chegavam ao hospital psiquiátrico.

José Caldas de Almeida: Departamento de Psiquiatria do Barreiro-Montijo; Garcia de Orta, responsável de Almada; Setúbal; Santiago do Cacém; Beja; Portimão; Faro; Cascais; Amadora, o Fernando da Fonseca. Imagine o que é que seria isto antes de existirem estes serviços todos. Trataram milhares, larguíssimos milhares de pessoas…

Margarida David Cardoso: Nos primeiros três anos de atividade do plano, entre 2008 e 2011, cresceu também o número de serviços com consulta externa e consultas de psiquiatria junto de outras especialidades [psiquiatria de ligação], algumas unidades de psiquiatria da infância e de adolescência, e pontuais programas comunitários. Um dos maiores focos neste arranque foi a formação de mais de 600 profissionais sobre abordagens comunitárias com doentes mentais graves.

Mas, Caldas de Almeida defende que, assim como houve um lobby organizado a favor da reforma, também o houve contra. Em particular nestes primeiros anos, em que decorria em força o fecho dos asilos. A mais duradoura das críticas talvez seja aquela que aponta para uma erosão do número de camas para doentes crónicos, residentes. Diminuiu de 1109 camas, em 2005, para 230, em 2016. Os primeiros projetos-piloto de cuidados continuados de saúde mental só avançariam seis anos depois do fecho do Miguel Bombarda, em Lisboa, e cinco depois do desaparecimento dos hospitais de Lorvão e Arnes, em Coimbra. Também não houve um revolucionário incremento de outras respostas sociais. Portanto, fecharam-se unidades sem que houvesse todas as alternativas implementadas para as substituir, como norteava o plano.

A psiquiatra Lurdes Santos era uma dessas vozes críticas. Voltada de mais de uma década em Macau e um ano na Austrália, integrou, em 2007, a equipa que calcorreou o país a fazer o diagnóstico dos cuidados existentes e o plano de reforma dali para a frente.

Lurdes Santos: O meu papel foi ir a todas as instituições que tinham doentes mentais – públicas, e privadas e sociais –, do Mondego para baixo, até ao Algarve. E fazer o levantamento e fazer uma avaliação das condições e da caracterização.

Margarida David Cardoso: Depois viu-se a discordar da forma como seria desmantelado o hospital Miguel Bombarda, onde trabalhava.

Lurdes Santos: A avaliação e o pensar sobre as pessoas foi próximo do zero. Pensar sobre as pessoas, o que é que significava para uma pessoa que está ali há 30 anos, o que é que significava sair dali. O que é que significava isso, percebe? “Tem família, não tem? Para onde é que pode ir?” Isto foi uma violência… Eu lembro-me de um dos colegas contar que estava a entrevistar um doente e que ele disse assim: “Oh senhor doutor, não me ponha lá fora, eu fico maluco.” É genuíno, percebe?

Margarida David Cardoso: Acha que houve doentes que ficaram sem alternativas?

Lurdes Santos: Não ficaram sem alternativas, porque o único critério que foi exigido é o lugarzinho. Isto é pouco. Uma cama? Onde é que há camas vagas? Há 30, agora 20 vão para ali, quer dizer. “Para onde é que vou?”, “Ah, isso agora não sei. Logo se vê.”

Margarida David Cardoso: Para a psiquiatra, que atualmente mantém consultório privado e é assessora clínica do Instituto das Irmãs Hospitaleiras, em Lisboa, as mudanças desta forma significaram um degradar das exigências clínicas. A psicóloga Filipa Palha, da Associação Encontrar+se – que ouviste no episódio nove – acompanhou-a nas críticas. Com base num estudo qualitativo que fez, denunciava uma disparidade de tratamento entre utentes. Uns realojados em pequenas residências, outros em grandes estruturas hospitalares ou sociais, com centenas de camas. Apontava para uma transinstitucionalização – a mera transferência de uma instituição para outra. Foi várias vezes notícia e deu conta dos resultados ao parlamento, ao lado de Lurdes Santos, em 2015:

Filipa Palha: Há muitas perguntas que ficam por responder, e que são perguntas que são graves do ponto de vista daquilo que é o acesso aos melhores cuidados de saúde, as opções que foram tomadas no sentido de pôr uma carruagem a rolar quando eram precisos três carris e só um ainda – ou nenhum mesmo – em funcionamento. E, por outro lado, a questão dos direitos humanos que, a meu ver, é questionável na forma como este processo decorreu.

Margarida David Cardoso: O estudo que fez não é um estudo académico, validado por pares, e abrangente. Parte da análise de 15 notícias, 24 entrevistas com utentes, cuidadores e técnicos, e respostas de seis instituições. A coordenação do plano questionava-o metodologicamente. Em 2015, o sucessor de Caldas de Almeida na coordenação de saúde mental, Álvaro de Carvalho, refutaria a acusação de que tivesse havido transinstitucionalização para grandes unidades, no caso de Lisboa. Já em Coimbra, reconhecia que sim. O que não significava que validasse os resultados do estudo.

Álvaro de Carvalho: As conclusões que estão a ser tiradas desse estudo, os meus colegas epidemiologistas consideram-nos muito estranhos. Temos que ter uma posição crítica, independentemente da propaganda e da capacidade de persuasão que alguns stakeholders tenham, convém sermos comedidos e sermos rigorosos do ponto de vista científico.

Margarida David Cardoso: José Caldas de Almeida discorda diametralmente das críticas à desinstitucionalização em Lisboa. Como Álvaro de Carvalho, defendia que tinha sido ponderada, com a devida atenção às características de cada pessoa.

José Caldas de Almeida: O encerramento do Miguel Bombarda é das coisas mais bem feitas que foram feitas em Portugal na saúde mental. Porque foram feitas com robustez técnica muito forte.

Margarida David Cardoso: A gestão desse processo ficou delegada na direção do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, que aglutinou, anos antes do fecho, o hospital Miguel Bombarda e o Júlio de Matos.

José Caldas de Almeida: Houve alguns que foram transferidos para o Júlio de Matos. Não pioraram, ficaram como estavam. Estavam num hospital, foram para outro hospital. E, depois, (eu acho que isso foi um gesto simbólico interessante) o Álvaro de Carvalho, que foi quem geriu essa parte final, fez questão de os últimos 20 e tal doentes de irem para uma moradia que está no Restelo, que ainda lá está. Que, enfim, se alguém vem dizer que aquilo não tem condições… Eu depois vi pessoas, dos críticos da reforma, que criticavam aquilo ser tão bom.

Margarida David Cardoso: Uma residência geriátrica com jardim, piscina e vista para o Tejo. Recebeu os últimos 24 utentes do Miguel Bombarda, em 2011. Foi o contraste de oportunidades com os restantes utentes já transferidos que motivou essas críticas. Era público que várias pessoas tinham tido alta para lares e Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS), como já era habitual acontecer. E uma dessas instituições acabou, em 2009, a ser notícia depois de ser encerrada por ordem judicial. Segundo o Diário de Notícias, este lar privado em Arrouquelas, Rio Maior, tinha “falta de higiene, sobrelotação, défice de comida e insuficiente formação dos funcionários”. Apesar de vaga para 40, viviam lá 120 pessoas, 39 das quais identificadas como antigas moradoras dos hospitais psiquiátricos de Lisboa.

O caso alimentou acusações de que a desinstitucionalização estaria a ser apressada. E levou o à data coordenador para a saúde mental a ser questionado sobre isso no parlamento.

José Caldas de Almeida: Acho que devemos todos pensar a sério, tirar as lições deste incidente, que é lamentável, não deve repetir-se, mas os pensamentos que eu tiro daqui, que é 1) neste caso, quando se foi investigar o que é que foi feito, as coisas até foram bem feitas. Só que não basta fazer bem, tem que se fazer ainda melhor do que bem. Porque o lar era recente, tinha ótimo aspeto, tinha sido licenciado recentemente pela Segurança Social, foram lá assistentes sociais não sei quantas vezes, foi lá o diretor do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, todos os cuidados foram feitos, foram feitas visitas de monitorização, e mesmo assim, às escondidas, estavam a fazer coisas horríveis àquelas pessoas.

Margarida David Cardoso: A desinstitucionalização ainda hoje se envolve numa nebulosa de narrativas, de defensores e críticos, porque, na verdade, nada disto foi estudado do início ao fim, de forma independente, com dados completos, uma metodologia validada e uma amostra substancial. Nem o que aconteceu com o fecho do Miguel Bombarda, em Lisboa, até 2011, nem com os dois hospitais fechados no ano seguinte, Lorvão e Arnes, no distrito de Coimbra. O mais aproximado que encontrámos de uma análise da administração central são as oito páginas que lhe dedicou a Entidade Reguladora da Saúde, em 2015, no relatório “Acesso e Qualidade nos Cuidados de Saúde Mental”. E os pouco mais de dez minutos que Álvaro de Carvalho respondeu sobre o tema numa comissão de saúde em maio de 2015, em resposta a Filipa Palha.

Sobram várias perguntas. Fernando Leal da Costa, há data secretário de Estado da Saúde, é dos que considera o processo de fecho do Miguel Bombarda  “atabalhoado”. Louva o fecho de Arnes e o Lorvão durante o seu governo. “Conseguimos ajuda de IPSS e das Ordens Religiosas, apesar de lhes pagarmos pouquíssimo”, diz, assim como a integração da psiquiatria no hospital de Coimbra. Já Caldas de Almeida, como também tinha feito Álvaro de Carvalho, diz que foi em Coimbra que houve uma transinstitucionalização, precisamente para as IPSS da região.  

José Caldas de Almeida: Aliás, em Coimbra o que foi feito foi um processo claramente de transinstitucionalização. Aquilo não foi… não se avaliaram bem as pessoas, não se teve cuidado em mandar as pessoas para sítios com uma parte de reabilitação como deve ser.

Margarida David Cardoso: Mas nunca se estudou, não é? Não se sabe, de facto, onde é que estão estas pessoas ou que é que lhes aconteceu – se estão melhores, se estão piores, se clinicamente foi benéfico ou não.

José Caldas de Almeida: Oiça, se na altura tivesse havido a continuidade do plano de saúde mental, isso estava previsto, ia fazer-se isso. Aquilo foi completamente interrompido. Assim como foi interrompido o desenvolvimento dos projetos, etc. Não se fez nenhuma avaliação. Não há e infelizmente a maior parte desses doentes já morreram. Agora é tarde. 

III

Arquivo do Parlamento, 2005
António Correia de Campos, ministro da Saúde: Criámos um novo paradigma da gestão por objetivos na saúde, com o Alto Comissariado [da Saúde] a superintender nas coordenações nacionais […], num futuro próximo, a saúde mental e a promoção da saúde.

Margarida David Cardoso: Para perceber o rumo político do Plano Nacional de Saúde Mental, pedimos em 2021 entrevistas a vários ex-ministros e secretários de Estado que tive pelouro e decisões nesta área. António Correia de Campos, que ouviste, foi ministro até 2008. Rejeitou por estar afastado da saúde há mais de uma década.

José Caldas de Almeida: Eu acho que temos que reconhecer ao Correia de Campos o mérito de ter tomado essa iniciativa. Nada o obrigava. Não é uma coisa que lhe iria trazer popularidade e ele sabia disso. Em Portugal, toda a gente se estava borrifando para a reforma da saúde mental. Todo o sistema precisava de ser mudado. Ele sabia disso e achou que era sua obrigação ética, quase, fazê-lo. E fê-lo. Só que, depois, o jogo político e os condicionantes que apareceram tornaram aquilo mais complicado.

Margarida David Cardoso: Quando olha para trás, José Caldas de Almeida identifica dois erros históricos que terão comprometido, logo à partida, a sustentabilidade da reforma nos anos em que se propôs a cumpri-la. Este foi o primeiro.

José Caldas de Almeida: É que ele tinha-me prometido que ia criar uma unidade de missão, que é uma coisa que tem um poder grande, que tem poder de decisão, tem ligação direta ao ministro, tem facilidades de financiamento especiais, tem o que era necessário para fazer uma coisa daquelas. De outra maneira não era possível. E, à última da hora, houve para lá umas jogadas políticas e não sei o quê… Enfim, aquilo não era uma unidade de missão.

Margarida David Cardoso: Era, afinal, uma posição de coordenação sob a égide do Alto Comissariado da Saúde – um organismo, criado em 2007, que dava apoio técnico na formulação de políticas e planeamento estratégico na saúde. Incluía já comissões semelhantes para as doenças oncológicas, cardiovasculares, VIH/Sida… 

Questionado sobre esta decisão, António Correia de Campos refere que houve razões que o ultrapassaram. À data, o seu Ministério da Saúde tinha criado unidades de missão para as duas principais prioridades no programa de Governo: os Cuidados Primários e os Cuidados Continuados. E, agora cito, “passado algum tempo, a orientação geral do Governo passou a ser evitar a multiplicação de unidades de missão. Optou-se e bem, pela criação de uma Coordenação, entregue a um Czar, dentro do Alto Comissariado para a Saúde. O Czar da Saúde Mental não poderia então ser outro que não o Professor Caldas de Almeida”. Fim de citação.

José Caldas de Almeida: Era um programa. E estas coisas contam, não é? Eu tinha bastante poder, apesar de tudo. Tinha que fazer propostas, tinha que convencer, tinha que entrar em jogos políticos que atrasavam muitas coisas. Mas talvez a mais grave até não foi isso.

Margarida David Cardoso: Um segundo erro histórico.

José Caldas de Almeida: Mais grave – e aí eu tive responsabilidades nisso: uma parte fundamental da reforma psiquiátrica é como é que se evolui de um sistema que está centrado numa única coisa, que é o hospital psiquiátrico, para um conjunto de coisas, que é uma rede que tem unidades de internamento de agudos no hospital geral, que tem centros de saúde mental na comunidade, que tem programas colaborativos com os cuidados primários… E tem uma coisa fundamental que são os dispositivos na comunidade que vão responder às necessidades sociais. Há quem chame a isto a parte da reabilitação psicossocial. Há quem chame a isto o social care. Se se faz uma reforma psiquiátrica e fecham hospitais psiquiátricos e não faz as unidades nos hospitais gerais, os centros de saúde mental na comunidade, os cuidados primários, e este sector todo, e se este sector falha, tem aqui um grande problema. 

O que é que aconteceu? Quando nós estávamos a trabalhar neste plano, o Correia de Campos disse-me: “Olha, nós estamos a fazer uma reforma importantíssima em Portugal (e era verdade) que é a reforma dos cuidados continuados. Vocês estão a fazer o mesmo. Ora, Portugal é um país pobre, não se pode dar ao luxo de estar a fazer uma reforma importantíssima  dos cuidados continuados e agora aparecem os tipos da psiquiatria e dizem ‘Nós queremos os nossos… uma rede à parte’.” Eu, conceptualmente, disse: “Sim, isso tem uma certa razão.” Agora, há aqui vários problemas. Um dos problemas é que enquanto os cuidados continuados que já se estavam a criar era tudo baseado em camas (aquilo era camas, camas, camas), nós não queríamos camas para nada. Quanto muito queríamos algumas numas residências, mas nunca queríamos pôr 50 camas ou 100 camas e tirar as pessoas dos hospitais psiquiátricos e ir pôr noutras coisas com um nome diferente. Portanto, andamos para ali a discutir como é que íamos fazer aquilo. E, então, a decisão salomónica foi que, em vez de ir criar uma rede à parte, ia-se criar dentro da rede de cuidados continuados uma sub-rede de cuidados continuados de saúde mental. Eu fui ingénuo, eu aceitei isso. Foi um desastre, foi um desastre. 

Foi um desastre, porque toda a gente nos cuidados continuados em Portugal não tinham a menor capacidade de entender o que é que a gente precisava. Nós perdemos (eu não estou a exagerar) muitos milhares de horas (muitos milhares de horas!) em conversas intermináveis com as pessoas dos cuidados continuados, na altura. Que, ainda por cima, como acontece muitas vezes entre nós, rapidamente ficam megalómanos e querem fazer estruturas pesadíssimas, cheias de burocracia por todos os lados.

Com lutas terríveis. Porque queriam coisas com 40 camas, nós dizíamos que não podia ter mais que 15. E andávamos semanas e semanas naquilo, às vezes com discussões muito duras.

Margarida David Cardoso: Em 2008, no meio destas disputas, após uma remodelação de governo, entrou em cena uma nova ministra. Ana Jorge sucedeu a António Correia de Campos, no final de janeiro. Apanhou o plano já feito e levou-o à aprovação em Conselho de Ministros logo em março. Tivemos um enorme problema técnico nesta entrevista e o som que vais ouvir é uma gravação de segurança –  as nossas desculpas por isso.

Ana Jorge: A única coisa foi que eu tentei foi agarrar e fazer força para que fosse aprovado, porque sabia, conhecia. Não foi preciso ler o plano. Eu sabia o que é que lá estava.

Margarida David Cardoso: Antes de chegar ao ministério, Ana Jorge tinha sido presidente da ARS – Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo e acompanhara algumas das lutas para criar internamentos nos hospitais gerais e os confrontos das várias escolas da psiquiatria.

Ana Jorge: Esta integração é importante. Não é fácil. De uma forma geral, os hospitais gerais reagem muito à integração. Hoje bastante menos. Muito menos. Mas reagiam muito à integração do serviço de psiquiatria dentro dos hospitais.

Margarida David Cardoso: Se não era fácil pregar perante o Estado, tampouco parecia ser entre pares. Os cuidados continuados – aqueles que custaram milhares de horas em reuniões – também fizeram surgir críticas entre associações representativas dos médicos. Para elas, a questão estava no pendor social das respostas. Em 2008, quando chamados a pronunciar-se, o Sindicato Independente dos Médicos [SIM] criticava – e cito – a “escolha ideológica” de um “modelo social da psiquiatria e não de um modelo médico (no sentido Hipocrático)”, temendo a erosão das garantias de assistência médica. A Federação Nacional dos Médicos [FNAM] receava que houvesse um “esvaziamento da problemática médica das doenças mentais” nas residências de apoio máximo. E o colégio da especialidade de psiquiatria da Ordem dos Médicos alertava para o perigo de se transformarem – e cito – “situações do âmbito médico em situações do âmbito social” e se “atirarem doentes psiquiátricos exclusivamente para as mãos de assistentes sociais e psicólogos”.

José Caldas de Almeida: Ao princípio era isso: o hospital psiquiátrico não podia ser posto em questão. Eu lembro-me de um (não vou dizer o nome dele) que dizia que “Há psiquiatras de bata comprida e há psiquiatras de bata curta. Os psiquiatras de bata comprida são os que são médicos, são os que usam estetoscópio, são os que estão dentro dos hospitais, os que têm o poder psiquiátrico. E depois havia uns que andam aí com as assistentes sociais e com os psicólogos”. Houve tempos em que era assim. Depois, na segunda fase, começam a dizer: “Isto na América talvez funcione. Agora, em Portugal isto nunca vai funcionar, nós não temos dinheiro, isto são fantasias. Não há meios para isso.” 

Resultado: eu, a certa altura, pedi a um homem, que infelizmente já desapareceu, que era o Álvaro de Carvalho para me ajudar nisso. E o Álvaro de Carvalho ficou encarregado de chefiar a parte dos cuidados continuados de saúde mental.

Margarida David Cardoso: Depois desse trabalho técnico de desenho da rede de cuidados continuados integrados em saúde mental, de que falámos no episódio 9, Álvaro de Carvalho viria, em 2011, a assumir a Coordenação Nacional para a Saúde Mental. Como Caldas de Almeida, era também discípulo de Eduardo Luís Cortesão, convidado na mesma faculdade e coautor da Lei de Saúde de Mental, de 1998. O antigo coordenador morreu em 2019, aos 69 anos.

José Caldas de Almeida: A legislação saiu em 2010. E isso é obra, em grande parte, da persistência do Álvaro de Carvalho. Tomou-se a decisão de quais é que iam ser os programas piloto… Eu fartei-me de andar pelo mundo a apresentar o mapa de Portugal, onde é que as coisas… Tudo aquilo sarapintado com as residências de nível não sei o quê, as residências de nível não sei que mais. E quero acreditar que ainda nada disso foi feito. Nada disso foi feito.

Margarida David Cardoso: Como vimos, os primeiros projetos-piloto só avançaram uma década depois da aprovação do plano, em 2017, já depois do fecho dos hospitais psiquiátricos. As metas para criar mais respostas continuam largamente por cumprir.

Não foram só os erros históricos e as lutas ideológicas que foram comprometendo a implementação do plano. Pequenas decisões minaram também o caminho para que se atingissem objetivos menos concretos do que construir serviços ou erguer uma rede de cuidados: coisas como dificultar a doentes mentais graves o acesso a medicação comprometeram pilares fundamentais do plano como a continuidade dos cuidados e um acesso mais igual ao tratamento. Ana Jorge tomou, em 2010, uma dessas decisões com impacto durante uma década.

Era setembro, segundo governo de José Sócrates, quando o Conselho de Ministros revogou o regime especial de comparticipação de psicofármacos, fazendo com que, entre outros, medicamentos antipsicóticos deixassem de ser gratuitos.

Ana Jorge: Aí tentamos fazer alguma racionalidade. Não me lembro de pormenores. Mas houve uma grande preocupação. Havia um exagero do consumo e apanhámos muita falcatrua com isso.

Margarida David Cardoso: Depois da decisão, Ana Jorge viria a dar conta de uma investigação da Polícia Judiciária a casos suspeitos de prescrição irregular de antidepressivos e antipsicóticos. A operação “Esquizofarma”, como seria nomeada, identificou esquemas de fraude com receitas falsas de psicofármacos. O Infarmed encontrou também mais de cinco dezenas de farmácias e amazenistas a fazer exportação ilegal de medicamentos. Para a ministra, a medida justificava-se com a necessidade de travar crimes como estes, que terão lesado o Estado em mais de um milhão de euros. 

Assim, os medicamentos antipsicóticos que eram gratuitos sob prescrição desde 2004 passaram a ser comparticipados de 90% a 95%. Para o Conselho de Ministros tratava-se – e cito – de “direcionar o sistema de comparticipações para quem, efetivamente, necessita”. Para alguns doentes isso significou passar a pagar 15, 30, 40 euros – um fator de risco para o abandono dos tratamentos, alertaram vários psiquiatras. Ana Jorge anunciou que iria repor a gratuitidade, nos serviços públicos e no setor social, logo em 2011. Mas isso não aconteceu.

Em julho de 2011, uma reportagem da RTP da jornalista Isabel Pereira Santos acompanhava uma utente em descompensação psicótica, trazida pela polícia a uma urgência hospitalar, em Lisboa. Acompanhava-a o marido e a psiquiatra.

Reportagem RTP
Arménio Loureiro, marido: Já há quase dois meses, um mês e meio, que já deixaram de dar a injeção. Não tenho dinheiro para a injeção para pagar 30 ou 40 euros.

Maria Antónia Frasquilho, psiquiatra: A explicação é muito simples e é cada vez mais frequente: deixou de fazer a medicação antipsicótica que lhe era útil e que a compensava há cinco anos.

Margarida David Cardoso: A psicóloga Mónica Mateus acompanhou, nos anos seguintes a esta medida, doentes com doença mental grave no setor social.

Margarida David Cardoso: Não é perigoso que em anos de crise se desinvista na saúde mental?

Mónica Mateus: É, é. Muito perigoso. E colocou em risco muitas pessoas. Porque, se a partir de determinada altura, a pessoa que podia ir lá e que estava marcada gratuitamente – porque era gratuito – ia e chegava lá e já não podia tomar o injetável. Isso é gravíssimo.

Margarida David Cardoso: Comprometia a continuidade dos cuidados. E fazia, noutros casos, optar por psicofármacos mais baratos, mais antigos e menos eficazes – alguns com dispensa gratuita por iniciativa dos hospitais – em alternativa a medicamentos mais recentes, com menores taxas de recaída e menos efeitos adversos, mas também mais caros. E, embora sinalizando esse facto, a coordenação do plano não conseguiu fazer reverter a decisão nos anos seguintes. A dispensa gratuita de antipsicóticos nos serviços de saúde mental foi uma luta de associações e profissionais anos depois da decisão de Ana Jorge. A medida foi, por fim, inscrita na lei do Orçamento do Estado para 2020. Avançou em junho de 2021, demorando a haver uma garantia efetiva nos hospitais. 

Quando gravámos com Ana Jorge, em maio de 2021, não sabíamos que estávamos a uma semana do fim desta medida.

Ana Jorge: As associações têm razão. Mas eu não estou a falar das associações. Estou a falar dos outros, que prescrevem. Eu lembro-me que uma das preocupações que eu tinha, na altura no governo tinha de fazer isso, era que isso não prejudicasse os doentes. Fiquei convencida que de uma forma geral tentamos não prejudicar os doentes. Havia, de facto, era um controlo muito grande junto dos médicos e dos serviços. E eles não gostam disso. Na altura não gostavam. Hoje em dia, com a prescrição eletrónica isso já foi tudo ultrapassado. Mas na altura não havia.

Margarida David Cardoso: Mas o fim desta comparticipação a 100% mantêm-se.

Ana Jorge: Mantêm-se? Eu não sei agora como é que está, não tenho acompanhado. Não é a minha área, portanto eu sei coisas muito mais amplas, mas assim não sei.

IV

José Caldas de Almeida: Houve dois erros que comprometeram a sustentabilidade e um acidente histórico que lixou completamente o plano que foi a crise económica em 2011 e a mudança de governo. Aí acabou o plano.

Margarida David Cardoso: Naqueles que viriam a ser os meses finais do seu mandato, o primeiro-ministro José Sócrates anunciou um pedido de assistência financeira em abril de 2011. E, um mês e meio depois, a troika apresentou o seu plano para Portugal. 

Ana Jorge: A preocupação nos meus últimos tempos foi analisar muito detalhadamente os cortes. Quer dizer, eu lembro-me de discussões com o secretário de estado que tinha a área das Finanças: “Epá, não podes cortar aqui.” Não era “corta”. “Cortas aqui, mas não cortas ali.” Houve aqui uma preocupação de que era preciso fazer cortes – a gente tinha de tirar tanto valor – e tentar não o fazer cegamente. Eram sempre reuniões com o credo na boca porque… Era levar a posição do Ministério da Saúde, a tentar defender… E, apesar de tudo, eu consegui convencer alguns dos assessores financeiros do que é que estava em causa. Mas depois não aconteceu.

Margarida David Cardoso: Em junho de 2011, tornou-se governo a coligação PSD-CDS, liderada por Pedro Passos Coelho, com Paulo Macedo na Saúde. Fernando Leal da Costa era o secretário de Estado com o pelouro da saúde mental, entre 2011 e 2015. Recusou uma entrevista por já não se considerar (cito) “a pessoa mais adequada para falar” do tema. No que deixou escrito nos anos seguintes à passagem pelo Ministério de Saúde, retratava ter encontrado um governo falido, com um memorando para cumprir, com medidas que não seriam as suas se tivesse tido a oportunidade de as negociar. Uma lista de encargos extensa, “uma pressão de execução enorme”. “[Estávamos] confrontados com o exercício de poupar, sem com isso prejudicar a qualidade do serviço”, escrevia num capítulo do livro “Resgate da Dignidade”. “E nunca faríamos nada que prejudicasse as pessoas para lá do que a situação económica já estava a prejudicar.” 

Esta era a percepção de Ana Jorge, que via de fora.

Ana Jorge: Foi um susto o que aconteceu. A saúde levou cortes que nem a troika nos tinha posto. Eu negociei a troika, e sei o que é que lá estava negociado e sei o que cortaram. As coisas que não estavam desenvolvidas, não aconteceram. Os cuidados continuados não houve mais nada e o resto dos serviços foi indo muito lentamente. Claro que havia uma pressão pela Coordenação de Saúde Mental, grande. E sempre houve. Mas os hospitais que também não tinham muita vontade não avançaram.

Margarida David Cardoso: Tira responsabilidades políticas disso? Ou era inevitável que isto acontecesse, perante a crise? Acha que poderia ter sido feito de maneira diferente?

Ana Jorge: Podia, podia. Desde que achassem que era importante. Não era possível fazer tanto, porque não havia dinheiro. Mas talvez não ser um corte… Foi difícil, porque era não. “Não há, não há, não há, não há.” E a mensagem lá em baixo, a que passa, é que não há vontade para que aconteça. Portanto, isto enfraquece. E depois parou.

Margarida David Cardoso: Questionado, Fernando Leal da Costa recusa este retrato. Abriram-se serviços em Loures, Beja, Vila Franca de Xira e no hospital Egas Moniz. Fecharam-se os dois hospitais psiquiátricos da região centro, integrando-se toda a psiquiatria no hospital de Coimbra.

Ana Jorge: Havia um compromisso (que depois não foi completamente cumprido) que era um compromisso assumido a nível do governo; que era uma parte substancial daquilo que era a venda do Bombarda para a Parpública que essa verba fosse para beneficiar os outros serviços. 

Margarida David Cardoso: O edifício do Hospital Miguel Bombarda foi vendido, em 2009, por 25 milhões de euros, a uma empresa do grupo Parpública, que gere as participações do Estado. Antes disso, o Ministério da Saúde comprometera-se com uma proposta da Coordenação para a Saúde Mental para que a maior parte dos fundos resultantes da alienação dos hospitais psiquiátricos fosse reinvestida nesta área.

José Caldas de Almeida: Eu tenho lá em minha casa. Porque isso é documento que eu nunca deixarei, a não ser que arda a casa. Que tem a assinatura do secretário de Estado da altura, que era o Francisco Ramos, e a assinatura da ministra da altura, que era a Ana Jorge.

Margarida David Cardoso: Incluía uma lista de investimentos superiores a 24 milhões de euros para executar entre 2010 e 2012. Dinheiro para criar unidades residenciais para 175 doentes crónicos das instituições a fechar, uma dezena de equipas comunitárias, e construir e ampliar serviços de psiquiatria ainda dependentes dos hospitais psiquiátricos. A proposta estava aprovada pelos dois governantes em agosto de 2009. 

Ora, segue-me aqui a ver se a gente não se perde: o dinheiro da venda do Hospital Miguel Bombarda foi, no mês seguinte, em setembro de 2009, englobado num bolo maior que juntava também o resultado da alienação de outros três hospitais em Lisboa. Um total de 111,5 milhões de euros. O Estado entregou, então, 90% deste valor ao Ministério da Saúde, cerca de 100 milhões. Mas antes, no Orçamento do Estado, tinha sido definida uma condição: o Ministério da Saúde podia apenas gastar este dinheiro no reforço do capital estatutário de hospitais ou na construção de unidades de saúde familiares. Não havia, portanto, base legal para cumprir os planos de investimentos em saúde mental da forma que tinha sido acordada.

Ana Jorge diz que parte foi gasto em serviços de saúde mental. Mas, que outra parte, desapareceu.

Ana Jorge: Só foi parte. Depois aquilo desapareceu não sei aonde. Mas sei que não foi totalmente. Porque a verba estava calculada para fazer isso, que era aumentar a capacidade. Mas depois, há também um tempo de fazer as coisas. Isto é tudo muito lento. Entre a decisão, o aparecer… eish.

José Caldas de Almeida: Mudou o governo, esse dinheiro nunca mais ninguém o viu. Nunca mais ninguém o viu. E eu um dia mais tarde encontrei o Leal da Costa, que foi secretário de Estado e depois ministro, e disse-lhe: “Oh Fernando, nós somos todos muitos amigos, mas o que é que aconteceu àquele dinheiro? Foi uma coisa gravíssima o que aconteceu.” E ele pôs-se com uma conversa: “Nós, quando lá chegámos, já não estava o dinheiro.”

Margarida David Cardoso: Fernando Leal da Costa garante que alguém antes dele o gastou e que, de facto, esse dinheiro já lá não estava quando chegou ao governo. “NADA!”, escreveu-nos em letras maiúsculas, com ponto de exclamação.

Fernando Araújo, que viria a ser Secretário de Estado da Saúde depois de Leal da Costa, também não tem respostas. Ocupava a pasta quando, em 2016, o Relatório Primavera, feito anualmente pelo Observatório Português dos Sistemas de Saúde, trouxe novamente a questão à baila. Esta entrevista, como várias deste episódio, foi gravada em 2021, era Fernando Araújo presidente do conselho de administração do hospital de São João, no Porto. É, desde outubro de 2022, diretor executivo do SNS. O som desta entrevista é novamente fraco – só conseguimos falar com Fernando Araújo à distância.

Fernando Araújo: Concordo inteiramente com essa visão e que esse era o plano inicial. Só que, do lado do Estado, não existia um programa integrado. Tira desta caixinha, põe nesta caixinha. Havia um programa que era a redução da despesa – espetacular, está feito. E havia um programa de investimento de uma forma diferente. E eles nunca se cruzaram. 

Margarida David Cardoso: A tese de Fernando Araújo é que o dinheiro “se perdeu”. Pergunto-lhe se isto seria diferente se houvesse autonomia da coordenação que geria o plano.

Fernando Araújo: Efetivamente. Se houvesse autonomia esse dinheiro mantinha-se no mesmo sítio. Não havendo essa autonomia, são coisas diferentes, são vistas com olhos diferentes. Portanto, é rápido deixar de gastar, mas é muito mais difícil voltar a reinvestir.

Margarida David Cardoso: Já frágil em poderes executivos desde a origem, a Coordenação Nacional para a Saúde Mental tinha sido extinta, no final de 2011. Tornou-se, em vez disso, um programa prioritário na Direção-Geral da Saúde – apesar do nome, tinha poderes ainda mais reduzidos. Já estava Álvaro de Carvalho ao leme de uma equipa de trabalho cada vez mais reduzida. O coordenador dava conta no parlamento, em 2015, de ter apenas uma pessoa a tempo inteiro na equipa.

Álvaro de Carvalho: Muito obrigada, senhor presidente. Muito obrigada, senhor deputado. Agradeço as palavras simpáticas que, obviamente, não são dirigidas ao diretor do programa, ex-coordenador nacional, mas também à equipa em que me apoio, equipa que tem vindo a ficar reduzida. À minha direita tenho a única pessoa em tempo completo que faz parte da equipa.

Margarida David Cardoso: A crónica falta de autonomia foi sucessivamente apontada em avaliações externas e naquelas que fizeram os próprios autores do plano. Como qualquer programa da Direção Geral da Saúde (DGS), o da Saúde Mental passou a ser mantido por rendimentos dos jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, como o Euromilhões, o Totoloto e o Totobola.

Álvaro de Carvalho: Uma coisa é financiamento do Programa Nacional da Saúde Mental, que vem dos jogos sociais, mas que não tem possibilidade de intervir na prestação. Nós temos tido superavit, porque não temos equipa, tentamos utilizar o dinheiro, mas depois ele acaba por se perder por dificuldade no acompanhamento dos projetos existentes. O financiamento, de facto, está perdido.

Margarida David Cardoso: Na sede da DGS, em Lisboa, a reforma parou a partir de 2011. Defende isto Caldas de Almeida, que a coordenava até esse ano. E di-lo também Miguel Xavier, o atual coordenador, que andava por lá desde o início. Foi membro da comissão que, em 2006, começou a estudar a reestruturação dos serviços e desenhou o plano de 2007 em diante. Foi subdiretor de Caldas de Almeida na Faculdade de Ciências Médicas da Nova de Lisboa. Assessorou as sucessivas estruturas designadas para implementar o plano e integrou a comissão que o reviu em 2017, estendendo-o até 2020. Desde 2018, é a figura que dirige os destinos do plano. Esta entrevista foi gravada em julho de 2021.

Miguel Xavier: Eu não vou discutir quais eram as obrigações que o Governo português estava, enfim, obrigado – passo o pleonasmo. Admito que na altura não haveria possibilidade de obviar isso. Mas o que é certo é que a Coordenação Nacional é instituída como um dos programas da Direção-Geral de Saúde. E aí a situação ainda se torna mais complexa. 

Os programas prioritários têm – e acho muito bem, é por isso que estão na DGS – funções de normativas – produzir documentos – e depois questões de financiamento de atividades de promoção e prevenção. Mas o que faltou durante muito tempo era uma reforma que também cobrisse a questão dos serviços, porque os serviços não são serviços suficientemente modernizados para dar resposta. Apesar de haver serviços que fazem coisas absolutamente excepcionais, há muita heterogeneidade. Ora bem, a Direção Geral de Saúde não tem atribuições jurídicas e administrativas sobre os serviços. Quem tem são as ARS – o desenvolvimento dos serviços, modelos de funcionamento, recursos humanos, tudo isso, comunicação aos cuidados primários. De maneira que havia logo aqui uma impossibilidade jurídica e administrativa disto poder dar certo.

Margarida David Cardoso: Um exemplo – talvez o exemplo mais claro do que significou este bater contra a parede – é que até ao Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), Miguel Xavier lembrava-se apenas de um único investimento real em saúde mental. Estas contas deixam de fora a criação de novos serviços de saúde mental, ao longo dos anos.

Miguel Xavier: Nos últimos, eu não diria 20, eu diria nos últimos 30 anos, o investimento foi exclusivamente no funcionamento regular dos serviços. Ou seja, os serviços prestam cuidados e são pagos, porque têm sistemas de contratualização. E isso é uma coisa completamente diferente de um investimento. Tanto quanto é do meu conhecimento, nos últimos anos, o único investimento que foi feito foi em 2008, 2009, e houve um investimento de cinco milhões de euros num conjunto de projetos que nós chamamos PISM.

Margarida David Cardoso: Foram cinco milhões de euros para financiar projetos comunitários, e sistemas de informação e de gestão em vários serviços. Na prática, fizeram-se obras, montaram-se visitas domiciliárias e equipas comunitárias. E até para essa pequena bolha de oxigénio, não houve política que a sustentasse.

Miguel Xavier: Os PISM tinham uma cláusula que era de que o financiamento estava assegurado durante dois anos e, ao fim de dois anos, teria de passar a ser assegurado pelo hospital. E o que se verifica é que com as mudanças de ciclo político, com as mudanças de administração hospitalar, nem sempre esse clausulado foi honrado. 

Houve alguns hospitais que ainda hoje têm aquilo que decorreu dos PISM, do investimento dos PISM, e há outros que não. Deixaram completamente. “Ah não, isso foi feito por outro conselho administração, que não foi este, de maneira que nós não nos sentimos vinculados.” E é isto que eu acho que é um dos motivos pelos quais nós temos – não é o único –, mas nós temos ainda uma oposição um bocado atrasada no desenvolvimento dos serviços.

Margarida David Cardoso: Quando os PISM acabaram, o antigo Programa de Saúde Mental ficou reduzido a uma linha de financiamento que podia distribuir, que andava à volta dos 200 a 300 mil euros por ano. E era tudo.

José Caldas de Almeida: O Programa de Saúde Mental, logo com o governo Passos Coelho, cortaram-lhes as asas. Ficou completamente… Eles tinham a maioria, tinham o seu direito e nós faríamos o que tínhamos feito nos anos 90: organizávamos, lutávamos politicamente contra aquilo.

Margarida David Cardoso: José Caldas de Almeida volta a apontar para Fernando Leal da Costa, então Secretário de Estado da Saúde.

José Caldas de Almeida: Sempre que lhe perguntava, ele dizia: “O plano é uma coisa fantástica! O plano de saúde mental é um ótimo plano.” E depois: “O professor Caldas de Almeida é uma coisa fantástica!” Era tudo maravilhas. Nunca disse mal do plano. Houve só um problema: é que ele nunca fez nada que ajudasse a implementar o plano. E fez muitas coisas que eram o oposto do que estava no plano.

Margarida David Cardoso: Fernando Leal da Costa, questionado, considera estas afirmações “falsas e difamatórias”, acrescentando – e cito – que “não é infrequente a atribuição das nossas falhas a terceiros”. No que deixou escrito após o governo, destaca o trabalho nos cuidados continuados de saúde mental, onde deixou projetado, em 2015, um mapa de unidades para abrir e um modelo que lhes garantiria financiamento.

Essa mudança nos cuidados continuados seria criticada por responsáveis da área da saúde mental. Na prática, as coisas estavam paradas. Sucessivamente anunciadas,  sucessivamente adiadas. Em 2011, nas vésperas de sair do executivo, Ana Jorge deixava ao ministério de Leal da Costa um despacho que aprovava as unidades que queria designar para experiências-piloto. Esse plano conheceu uma reviravolta em 2015. Desta vez, nos últimos meses de mandato dos sociaisdemocratas, três mudanças legislativas tentaram mudar-lhes o rumo. Num despacho conjunto, o governo PSD-CDS substituía mais de metade das experiências-piloto definidas pelo governo PS. Propunha-se a criar um maior número de projetos, com apenas quatro dos 16 projetos originais. Grande parte passou a ser “entregue a misericórdias e institutos religiosos”, várias entidades sem experiência conhecida na área, criticava Álvaro de Carvalho, à data. Temia por uma viragem “assistencialista e de transinstitucionalização”.

Também a Sociedade Portuguesa para o Estudo da Saúde Mental denunciava – e cito – “o súbito interesse de entidades que até ao momento têm estado afastadas do trabalho desenvolvido nesta área”. O Observatório Português dos Sistemas de Saúde apontava – e volto a citar: “Mais uma vez se optou pela criação de camas em detrimento da criação de equipas, apesar de as primeiras serem manifestamente mais caras e de imporem nova institucionalização.”

Fernando Leal da Costa recorda que – e vou citar novamente – “erradamente houve quem tenha achado que esse meu despacho seria uma nova vaga de institucionalização de doentes, por haver predomínio do modelo de longa duração. O que as pessoas não sabiam é que só esse ‘modelo’ poderia ser atrativo financeiramente e, se não fossem as ordens religiosas, estigmatizadas por uma vaga anti-psiquiatria convencional, teríamos ainda mais gente a dormir nas ruas”. Fim de citação.

José Caldas de Almeida: Sabotou os cuidados continuados, parou tudo. Tudo o que estava a ser feito parou. E perdeu-se isso. Porque depois o Partido Socialista também demorou muitos anos. Eu nessa altura ainda tinha a mania que era ouvido e que valia a pena mexer-me e tal… E fiz alguns movimentos nisso. E as pessoas foram simpáticas: lembro-me, o Adalberto…

Margarida David Cardoso: Adalberto Campos Fernandes, ministro da Saúde do primeiro governo de António Costa, entre 2015 e 2018.

José Caldas de Almeida: Por acaso, eu encontrei o Adalberto meia dúzia de dias depois de ele entrar para o governo, numa cerimónia em que estávamos. E o tipo… ele aí estava todo delicodoce, na altura. Disse: “Dê-me o seu número de telefone, porque eu quero falar consigo.” Enfim, aquelas coisas. Mas depois eu falei com ele e sabe quando está a falar com o tipo e vê que ele está a pensar noutra coisa?

Margarida David Cardoso: Adalberto Campos Fernandes disse-nos, questionado sobre isto: “O teor do comentário não merece, como compreenderá, nenhum tipo de observação.”

José Caldas de Almeida: Eu percebi que não era a prioridade deles. Eles estavam noutra. É a tal coisa: não há em Portugal uma tradição grande, uma massa crítica. É fácil também dizer “a reforma que falhou nos anos 80, ou 92, foi porque houve um grupo de gajos maus que lixaram aquilo”… Não é a verdade toda. Havia gajos maus e eles tentaram lixar aquilo. Mas o problema principal é que não havia um número suficiente de gajos bons. Não havia uma massa crítica que pusesse a discussão a um nível alto. Não havia estudos, não havia publicações, não havia debate…

Margarida David Cardoso: Mas em 2011 havia.

José Caldas de Almeida: Quando?

Margarida David Cardoso: Em 2011.

José Caldas de Almeida: Não havia o suficiente. Eu agora vou-lhe dizer: o que é que eu acho que foi a nossa fragilidade? É que os saltos qualitativos que foram feitos foram feitos por vanguardas, por grupos de ativistas, entre os quais eu me incluí, que estávamos convencidos que tínhamos a verdade toda (e tínhamos alguma, mas às vezes não tínhamos toda) e em momentos em que o poder político apoiava estes grupos. O poder político mudava, puuufff. Desaparecia o Correia de Campos e não havia uma opinião pública. Agora a coisa está diferente. E eu acho que esta coisa do Covid veio dar uma ajuda enorme à saúde mental.

Margarida David Cardoso: Mas há bocado dizia que mesmo depois do fantasma da crise, depois da saída limpa e do virar da página da austeridade, como dizia António Costa, se demorou a iniciar este processo. Ou seja, a crise terminou, mas isso não foi razão para se retomar aquilo que estava planeado.

José Caldas de Almeida: Sim. Porque quer dizer que dentro do PS não havia um grupo suficientemente forte preocupado com estas coisas.

Margarida David Cardoso: Mesmo depois do impacto que a crise económica teve na saúde mental?

José Caldas de Almeida: Sim. Ninguém ligou muito a isso. Nem ligou muito a isso. Nós fizemos um estudo sobre isso com resultados bastante impressionantes. Olhe, aí eu tenho responsabilidade. Fartamo-nos de fazer estudos e depois publicámos muito pouca coisa e disseminamos pouca coisa. Éramos maus a disseminar a informação porque andávamos sempre a tentar fazer outras coisas. Mas não, não estavam muito preocupados.

Margarida David Cardoso: Fernando Araújo, então secretário de Estado da Saúde, não quis comentar o que considera “avaliações pessoais”. Em entrevista, reconhece a falha. O Plano Nacional de Saúde Mental foi avaliado e revisto durante o seu mandato, estendido até 2020. Embora esta área fosse uma das suas bandeiras à entrada do governo, diz que apelos mais fortes mexeram nas prioridades.

Fernando Araújo: Em geral, se não há uma política a longo prazo para estas questões, as pessoas andam muitas vezes a rever ou a tentar solucionar o caso no dia. E é verdade que as listas de espera, as cirurgias em atraso, ou até patologias que tinham muita força por questões de fármacos e outras acabam por ganhar preponderância na agenda política. E se não há do lado do Estado uma agenda forte no sentido dos mais vulneráveis, mesmo que eles não têm voz ativa, acabam por ser ultrapassados por outras áreas que têm muito mais apelo.

Margarida David Cardoso: Depois, refere o antigo secretário de Estado, é mais fácil para um governante fazer um centro de saúde ou um bloco cirúrgico do que contratar pessoas.

Fernando Araújo: É mais fácil continuar a aumentar a despesa com fármacos que aí as Finanças não têm grandes questões relativamente ao mesmo do que aumentar em pessoas que teria muito mais custo benefício. E teria mais qualidade de vida em geral. Do ponto de vista da administração pública, é mais fácil investir em paredes, em betão, do que em pessoas.

Margarida David Cardoso: Fernando Araújo defende que esta explicação não pode ser reduzida às Finanças, mas repetidamente recorre às Finanças para explicar o que ficou por fazer ou em atraso. Por exemplo, a contratação de psicólogos para os cuidados de saúde primários ficou muito aquém do que planeava – alavancou, em 2018, um concurso para contratar 40, tendo inicialmente pedido mais. O concurso, não só não se repetiu nos anos seguintes, como planeado, como mais de quatro anos depois, em meados de outubro de 2022, estes psicólogos ainda não estavam em funções.

Fernando Araújo: Eu lembro-me da guerra que foi contratar mais psicólogos para os cuidados primários. É difícil convencer.

Margarida David Cardoso: Diz o mesmo para os internamentos previstos no Plano Nacional de Saúde Mental, que ainda dependem do Hospital de Magalhães Lemos.

Fernando Araújo: Foi na altura pós-Troika. E o valor de investimento, no geral, nos hospitais no país foi um valor muito reduzido. Todas as obras, todos os investimentos em material, equipamento acabaram por ser adiados.

Margarida David Cardoso: É a mesma justificação para os cuidados continuados. Fernando Araújo afirma que levou mais de dois anos até convencer as Finanças. Quando avançaram os primeiros, ainda que tímidos, projetos-piloto em 2017, diz que estava por desamarrar o cinto da austeridade.

Fernando Araújo: Eu não queria, mais uma vez, bater nas Finanças. Não vale a pena. Se eles cederem a tudo, no final do dia, temos aqui um problema grave de equilíbrio do país. Mas dito isso tudo, também aqui, para eles, era visto como uma nova área, uma nova dimensão, que significa o aumento da despesa, numa altura em que, pós-Troika, o objetivo era manter a despesa, não aumentá-la. Não diminuir, mas podíamos não aumentar. Já se tinha virado a página da austeridade só do ponto de vista teórico, na prática, na prática…

Margarida David Cardoso: Ainda assim, confessa que atribuir uma culpa única seria a resposta simples.

Fernando Araújo: Se por vezes é fácil dizer que a culpa é de outros, a culpa é das Finanças, se calhar a culpa é minha que não tinha a capacidade e o discernimento de explicar de forma conveniente às Finanças a mais valia. Se calhar, também nós podíamos ter feito diferente para conseguir atingir os objetivos que queríamos.

É uma área que eventualmente eu tenho o gosto menos doce, mais amargo da minha passagem pelo Governo, porque gostaria de ter feito muito mais, porque era preciso, era desejável e, do ponto de vista financeiro, é uma área que, do ponto de vista da despesa era residual. Era preciso mais vontade do que capacidade.

V

Margarida David Cardoso: Algo que Fernando Araújo anunciou com pompa nos seus anos de governo foi a mudança do modelo de financiamento dos serviços de saúde mental. É que é sobejamente reconhecido, há vários anos, que o modelo de gestão e financiamento dos hospitais de forma geral, não só não ajuda, como é uma forte barreira ao desenvolvimento das abordagens comunitárias em saúde mental. No plano, de 2007, lê-se que esta mudança – e cito – “é uma prioridade absoluta para o futuro”. Isto porque a forma como os cuidados são financiados influencia a forma como os cuidados são prestados. Miguel Xavier fazia este retrato no verão de 2021:

Miguel Xavier: O modelo de financiamento do internamento em termos de saúde mental, eu poderia dizer que é o mais perverso de todos. Porque se um hospital, a fonte maior de rendimento que tiver, for a diária do internamento é normal que ele queira que aquilo esteja sempre cheiinho, não é? Ora do ponto de vista da saúde mental é exatamente ao contrário. Um bom serviço é aquele que evita internamentos. E para evitar internamentos o trabalho faz-se fora. Então, se calhar, dever-se-ia tirar, secar um bocadinho o financiamento dos internamentos e poder aplicá-lo fora.

Margarida David Cardoso: Embora Miguel Xavier veja cada vez mais hospitais a negociarem financiamentos que incluem a hospitalização em casa ou as consultas domiciliárias, a mudança é lenta. Há diversos modelos de financiamento. Por exemplo, modelos em que o hospital é financiado em função de cada atividade que faz com um doente. O que deixa de fora intervenções que não se focam necessariamente numa única pessoa, como a prevenção. Saindo fora desse âmbito, algumas das intervenções comunitárias em saúde mental nem sequer são pagas.

Miguel Xavier: Imagine que uma parte do trabalho de um terapeuta ocupacional de um serviço é estabelecer ligações com as estruturas da comunidade. Ir a reuniões às escolas, às empresas, aos tribunais. O trabalho não está a ser centrado num doente, mas é um trabalho de uma importância extrema. Imagine que um assistente social faz este trabalho três dias por semana, ou dois dias por semana. Bem, são dois ou três dias por semana que o hospital não é financiado. E portanto se não é financiado, diga-me lá qual é que é o estímulo que um conselho de administração tem em contratar pessoas, que só vão ser financiadas em metade do seu tempo? Eu percebo isso muito, é um dilema muito complicado. 

Quando nós olhamos para os resultados dos últimos dez anos, isto é uma tragédia, porque o número de, por exemplo, terapeutas ocupacionais e assistentes sociais é igual ao que era há dez anos e isto é uma tragédia para um país. Isto mostra que o desenvolvimento comunitário não se deu, não se fez.

Margarida David Cardoso: Porque o modelo de financiamento privilegia que assim seja.

Miguel Xavier: É porque, de facto, se não for preciso fazer mais, não se faz mais nada. Dito isto, eu digo-lhe que mesmo com o modelo atual de financiamento, há pessoas que fazem das tripas coração, e fazem coisas absolutamente inacreditáveis no país. Fazem mesmo. Agora fazem e sai-lhes do pelo. Fazem à sua custa, fazem com muito empenhamento mas também com esforço. Eu tenho sempre medo destes esforços, porque acho que nunca são sustentáveis. As pessoas cansam-se. Nós temos de ter um sistema que seja sustentável.

Margarida David Cardoso: Era com base no diagnóstico deste problema que, em 2017, Fernando Araújo anunciou um novo modelo de financiamento para a saúde mental. Punha à disposição dos hospitais que eram financiados consoante o número de consultas, urgências ou internamentos a possibilidade de passarem a receber uma espécie de “bolsa de tratamento por doente”. Sempre o mesmo valor, independentemente da pessoa ir mais ou menos vezes ao hospital. Para boa saúde das contas, interessa, por isso, que o doente esteja bem acompanhado, que tenha as necessidades sociais asseguradas. Para evitar contactos desnecessários com o hospital, a ideia deste modelo de financiamento é que interesse financeiramente à administração contratar assistentes sociais, psicólogos e terapeutas ocupacionais para melhor resolver as causas evitáveis na origem dos desequilíbrios psiquiátricos.

O programa está, no entanto, limitado aos doentes mentais graves. E não é vinculativo. Em 2022, implementavam-no quatro hospitais, entre eles o São João, que Fernando Araújo passou a chefiar depois da saída do governo. Tendo sido a primeira vez que algo se desenhou desta forma, Miguel Xavier considera que o problema estava no cálculo subestimado do valor a pagar por cada doente. Fernando Araújo, à data da entrevista, recomendava o modelo. Enquanto governante, diz que a esperança era que todos os hospitais com doentes graves o implementassem. E também que se arranjasse uma forma de o ampliar à prevenção e reabilitação. E, em particular, à psiquiatria da infância e da adolescência. Admite que mesmo que não tivesse saído do Governo, “se calhar não teria conseguido implementar”.

Se olharmos para o Plano Nacional de Saúde Mental, este não se aventurou a definir um modelo de financiamento concreto. Mas apontou para uma mudança no modelo de gestão, para uma solução já prevista na lei desde 1999: a conversão dos serviços de saúde mental em centros de responsabilidade integrada. Segundo a lei, estes são “verdadeiros órgãos de gestão intermédia”, com poder de decisão. Regem-se com orçamentos próprios, que contratualizam com os respetivos conselhos de administração. Este é um modelo de organização interna que, ainda segundo a lei, envolve e responsabiliza mais os profissionais na gestão dos recursos. Também este modelo é facultativo. É adotado no serviço de psiquiatria e saúde mental, por exemplo, no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra há quase uma década [desde 2013], e, mais recentemente, em 2021, no Centro Hospitalar do Oeste. O PRR prevê a transformação de 15 outros serviços em novos centros de responsabilidade.

Historicamente, José Caldas de Almeida diz que viu muitas destas ideias fracassarem também pela incapacidade de quebrar as resistências das administrações hospitalares.

José Caldas de Almeida: Enquanto não houver uma autonomia de gestão financeira dentro dos serviços dos hospitais gerais, vai ser impossível. Porque você está aqui responsável pela saúde mental aqui nesta comunidade, está dentro de um hospital, onde a administração pensa tudo em termos de camas… E mais: quanto mais camas eles utilizarem, mais dinheiro recebem; quanto menos camas, menos dinheiro recebem. Portanto, tudo o que lhe venha dizer “Olha, eu se conseguir diminuir… Ter aqui mais serviços na comunidade, eu consigo uma poupança enorme. Em vez de ter 100 doentes internados, num ano, tenho 20”. O gajo não quer. Ele vai fazer tudo para sabotar isto. Portanto, nós ficámos reféns desta história. Porquê? Porque o Estado… Todos os governos, que andam sempre a querer poupar mais… Ainda agora, nas discussões dizem: “Vocês tragam tudo o que quiserem. Não venham é dizer que vão criar novas coisas com autonomia financeira, porque o Ministério das Finanças não vai aceitar uma coisa destas.”

Margarida David Cardoso: E, então, chegamos à história do presente. Durante mais de uma década, a ausência de autonomia facilitou que se protelassem decisões e, tornou-se claro para mim com este trabalho, ajudou a cavar um poço de dispersão de responsabilidades. Uma mudança em direção a um poder mais concreto para implementar mudanças, só veio 14 anos depois do desenho do plano, no final de 2021. 18 meses antes os ministérios da Saúde de Marta Temido e da Justiça de Francisca Van Dunem delegaram numa comissão de nove peritos o desenho da nova lei de saúde mental, que viria rever o diploma de 1998. Comissão coordenada pela magistrada Maria João Antunes, onde estava também José Miguel Caldas de Almeida, agora presidente do Lisbon Institute for Global Mental Health, António Leuschner, antigo administrador do Hospital de Magalhães Lemos e presidente do Conselho Nacional de Saúde Mental, e Miguel Xavier. O mesmo grupo trouxe também uma outra lei que clarificou poderes, a filosofia de organização dos serviços e dissolveu o programa da DGS. Há, agora, uma Coordenação Nacional das Políticas de Saúde Mental.

Miguel Xavier: Em primeiro lugar, cria uma coordenação nacional de saúde mental pela primeira vez.

Margarida David Cardoso: Na alçada de quem?

Miguel Xavier: Do ministro da Saúde. Direto. E isto muda tudo. Esta coordenação tem uma equipe e passa a ter uma obrigação que fica a estar legislada que é de implementação do Plano Nacional de Saúde Mental. Ora, isto, na minha opinião, é um avanço de 30 anos. Porque nós precisávamos disto desde os anos 80 e nunca tivemos isto.

Margarida David Cardoso: O coordenador nacional das políticas de saúde mental destaca uma segunda mudança: o desdobramento da coordenação nacional em coordenações regionais. Essas sim estão sob a alçada das Administrações Regionais de Saúde. Falamos no episódio passado do caso da coordenação regional da ARS Norte, e de como até ao final de 2021, o cargo era meramente consultivo.

Miguel Xavier: Agora função de, por exemplo, avaliar os planos de atividades dos hospitais e dos serviços para ver se eles estão em conformidade com aquilo que são as estratégias políticas. Essa função que é uma função que eu acho que é absolutamente elementar e tem de haver uma entidade que a tem, isso nunca existiu no nosso país. 

Não é só pronunciar-se. Portugal é um país que adora pronúncias e acompanhamentos. As pessoas gostam imenso de estarem em entidades de acompanhamento e de monitorização. E a minha preocupação sempre foi que houvesse um edifício legislativo que não se ficasse pelo acompanhamento e pela monitorização, que são sempre coisas muito bonitas de se dizer, mas depois falta muitas vezes aquilo que é o importante, que é quem faça. Depois vamos à procura de entidade que faça, ou que é responsável, e nunca saberemos. Depois quando uma pessoa quer pedir contas, pede contas a quem? Pede contas à Ministra da Saúde, coitada, que tem que responder por isso e por tudo.

Margarida David Cardoso: Estava dar o exemplo do relatório de atividades. Se esse relatório de atividades de um determinado hospital não estiver conformidade com aquilo que é a política de saúde mental…

Miguel Xavier: Não o validam. Vamos imaginar um serviço quer montar uma estrutura ou criar uma consulta que, do ponto de vista, por exemplo, epidemiológico, não faz qualquer sentido. É normal que a coordenação regional possa dizer “Epa, vocês não vão desperdiçar recursos nisso, quando precisam dos recursos para outras coisas”.

E se nós tivéssemos um mar de recursos inesgotáveis, eu até percebia que isto pudesse fazer com alguma ligeireza. Agora nós temos um quadro de recursos humanos, à exceção dos médicos que, apesar de tudo, cresce ao ritmo de 40 por ano. Nas outras áreas profissionais, o panorama é muito mais complicado. De maneira que nós não podemos estar aqui a permitir que as pessoas façam aquilo – não é que queiram, porque eu acho muito bem que as pessoas façam tudo que queiram, e que se empenhem, e que se motivem por isso. Mas, em primeiro lugar, vêm os interesses das populações. Tenho muita pena, mas as coisas são assim.

Margarida David Cardoso: Marta Temido esteve ministra da saúde entre 2018 e 2022. Uma entrevista pedida no seu ministério foi primeiro encaminhada para Miguel Xavier, depois considerado que não havia agenda. Já deputada, depois da saída do governo, Marta Temido, pessoalmente, recusou. Considerou – e cito – “que depois de sair de funções um membro do Governo deve abster-se de intervir sobre a área que tutelou.”

Do Ministério da Saúde de Manuel Pizarro esperamos uma resposta.

VI

“A saúde mental tem um longo histórico de ausência de investimento público.” A frase é de António Reis Marques, Presidente do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos, e é uma repetição de décadas. José Sampaio Faria, que dirigiu o primeiro Programa Nacional de Saúde Mental nos anos 80, coloca a ordem de grandeza nas sete décadas. Cito: “Já na década de 50, as reformas propostas por insignes mestres da Psiquiatria portuguesa, como Sobral Cid e António Flores, esbarravam sempre na falta de recursos e de apoios.”

E há casos em que alguém traz para tribunal a acusação ao Estado desta falta de investimento. Uma juíza fê-lo em dezembro de 2021, no Tribunal de Coimbra, com estas palavras: “Se o nosso Ministério da Saúde tivesse apostado verdadeiramente na saúde mental, muitas situações como a sua teriam sido evitadas e não estaríamos aqui hoje.”

Estava perante um homem de 29 anos, com um diagnóstico psiquiátrico, que acabava de dar como provado ter morto o pai. O tribunal considerou-o inimputável, por anomalia psíquica, o que o absolve do crime. Recebeu uma medida de internamento, não de prisão. Também o jovem era vítima, disse a juíza. Vítima “por não haver aposta na prevenção”, vítima “por não haver um diagnóstico atempado”, vítima pela iliteracia em saúde e vítima por causa do estigma quanto às doenças mentais.

Ao longo desta série, muitos, muitos temas foram ficando de fora. Outros menos aprofundados. As pessoas inimputáveis, o internamento involuntário, os chamados doentes difíceis, as crianças e adolescentes. As demências, as dependências, as perturbações alimentares. De certo modo também a prevenção e a terapia ocupacional. A gestão de património dos doentes, o financiamento das respostas sociais, os cuidados no setor privado e social, os tratamentos inovadores, da estimulação magnética transcraniana aos psicadélicos, toda a vanguarda de conhecimento nas neurociências. As famílias. Invariavelmente, parece que há sempre um mundo que fica de fora. Mas há uma grande ausência que me parece maior do que todas. Faltou-nos ouvir uma associação forte, representativa de pessoas com doença mental. Nunca a encontrei. A representação mais próxima será a Federação Portuguesa das Associações das Famílias de Pessoas Com Experiência de Doença Mental, a Familiarmente. Criada em 2015, tem reivindicações próprias, constrói pareceres, é chamada a integrar grupos de trabalho técnicos. Falamos um par de horas com Joaquina Castelão, que a preside desde início, que nos ajudou a entender muitas das ideias de que falámos ao longo dos últimos episódios. E há uma passagem em particular dessa entrevista que me regressa várias vezes:

Joaquina Castelão: A nossa Constituição da República fala nos direitos de cidadania e participação. Ora, é importante que os beneficiários diretos e indiretos destas respostas, que beneficiam dessas respostas, sejam envolvidos nesse processo de avaliação, de acompanhamento, que apresentem propostas de melhoria, que tenham uma palavra também a dizer. Pelo menos que sejam ouvidos. Pelo menos que sejam ouvidos.

Margarida David Cardoso: “Pelo menos, sejam ouvidos.”

Joaquina Castelão: Eu acho que às vezes alguns dos nossos políticos não avaliarão com a devida cautela as implicações que tem a doença mental. Nós temos doenças orgânico-funcionais cujo tratamento é vinte, trinta vezes mais caro que a doença mental. Se dizem que nós temos o direito e o dever de acesso à saúde e de cuidar da mesma através de um Serviço Nacional de Saúde tendencialmente gratuito, compete ao Estado assegurar esse direito. E compete aos cidadãos exigir o cumprimento.

Margarida David Cardoso: O envolvimento de doentes e dos seus próximos nas políticas públicas é uma das grandes promessas da nova lei de saúde mental. Vem no culminar de dois anos em que os ares de reforma parecem ter voltado. E quem está a coordenar essa reforma diz que nunca houve tanto dinheiro na calha para investir na saúde mental. Até 2026, o PRR traz 88 milhões de euros. O objetivo inscrito é o de concluir a reforma. Dependerá de que orçamentos do Estado e instituições o continuem nos anos seguintes. Que modelos errados não se mantenham uma década depois da decisão. Que políticas estudadas, definidas e aprovadas não sejam travadas numa complicada cadeia de autorização vulnerável à troca de prioridades. É necessária mais vontade do que capacidade, dizia Fernando Araújo. Terá agora a gestão executiva do SNS, que dirige, esse motor? As coordenações? O ministério? Ou quanto tempo mais ficará a saúde mental presa à espera do seu momento “Agora é que é”?

VII

Bernardo Afonso: “A história nega as coisas certas. Há períodos de ordem em que tudo é vil e períodos de desordem em que tudo é alto. As decadências são férteis em virilidade mental; as épocas de força em fraqueza do espírito. Tudo se mistura e se cruza, e não há verdade senão no supô-la. Tantos nobres ideais caídos entre o estrume, tantas ânsias verdadeiras extraviadas entre o enxurro! Para mim são iguais, deuses ou homens, na confusão prolixa do destino incerto. Desfilam-me, neste quarto andar incógnito, em sucessões de sonhos, e não são mais para mim do que foram para os que acreditaram neles. […] Todos desfilam, todos, na marcha fúnebre […] do erro e da ilusão. Marcham todos, e atrás deles marcham, sombras vazias, os sonhos que, por serem sombras no chão, os piores sonhadores julgam que estão assentes sobre a terra — pobres conceitos sem alma nem figura, Liberdade, Humanidade, Felicidade, o Futuro Melhor, a Ciência Social, e arrastam-se na solidão da treva como folhas movidas um pouco para a frente por uma cauda de manto régio que houvesse sido roubado por mendigos.”

Citação do Livro do Desassossego, de Bernardo Soares

CRÉDITOS

Nuno Viegas: Acabaste de ouvir O plano, o décimo segundo episódio da série Desassossego. O último episódio sai para a semana, mas podes ouvi-lo agora mesmo. É só fazeres uma contribuição mensal para o Fumaça. Vai a fumaca.pt/contribuir e ajuda-nos a ter a primeira redação profissional portuguesa totalmente financiada pelo público. Quem apoia o Fumaça também tem acesso a várias entrevistas extra, para explorar mais esta história.

Durante o episódio ouviste trabalhos jornalísticos da RTP e da SIC e arquivos da Assembleia da República.

Este episódio foi escrito pela Margarida David Cardoso que fez reportagem e a investigação da série. O Bernardo Afonso editou o episódio e ainda fez investigação, compôs e interpretou a banda sonora original, fez a edição de som e sound design. É também ele que lê os excertos do Livro do Desassossego de Bernardo Soares. O Pedro Miguel Santos ficou com a revisão de texto e reportagem para este episódio. Eu, Nuno Viegas, fiz a verificação de factos. A Joana Batista criou a identidade visual. A Maria Almeida e o Ricardo Esteves Ribeiro, a estratégia de marketing. O Fred Rocha fez o desenvolvimento web. Todas estas pessoas participaram na construção coletiva da série. Podes encontrar em fumaca.pt a transcrição de todos os episódios, fontes, documentos e imagens relacionadas. Fazem ainda parte da equipa Fumaça: Danilo Thomaz e Luís Marquez. 

A produção desta série foi parcialmente financiada por bolsas de apoio ao jornalismo de investigação da ARIS da Planície – Associação para a Promoção da Saúde Mental, do Sindicato dos Jornalistas, em parceria com a Roche e da Fundação Rosa Luxemburgo. Podes ver os contratos em fumaca.pt/transparencia.

Até já.

DOCUMENTAÇÃO EXTRA

Estimativa de investimentos em novas instalações do Plano Nacional de Saúde Mental (2010-2012) propostos por José Caldas de Almeida e aprovados pelo Ministério da Saúde, 2009Apresentação na Assembleia da República, da implementação do Plano Nacional de Saúde Mental.
José Caldas de Almeida, Fevereiro 2010
Proposta de Protocolo de Acordo de Financiamento para realojamento dos Doentes do Hospital de Miguel Bombarda e Despacho da Ministra da Saúde Ana Jorge, 2010
Joint Action on Mental Health and Well-being
Análise da Situação em Portugal, 2015
Sistema português de saúde mental: avaliação crítica do modelo de pagamento aos prestadores
Portuguese Journal of Public Health, 2018
Parecer da Federação Nacional dos Médicos ao projeto de decreto-lei que cria as unidades de cuidados continuados integrados de saúde mental, 2008

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