Episódio 1/13

Eu já não quero amanhã

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TRANSCRIÇÃO

Nuno Viegas: Olá. Eu sou o Nuno Viegas. Este é o primeiro episódio da nova série Fumaça: Desassossego – sobre saúde e doença mental. A peça está feita para ser ouvida com auriculares ou auscultadores. Recomendo.

Nos próximos episódios, vamos falar de sofrimento psicológico e às vezes de suicídio, de forma explícita. Se decidires ouvir, podes sentir coisas de que não estás à espera. Caso estejas em perigo, em Portugal, liga para o número de emergência, o 112. Se tens sintomas depressivos, o SNS 24 tem um serviço de acompanhamento psicológico no 808 24 24 24. Em fumaca.pt, na transcrição deste episódio, tens uma lista de linhas de apoio não estatais, a que podes ligar, como a SOS Voz Amiga.

Com isto dito, deixo-te com a jornalista que vai narrar a série: Margarida David Cardoso.

I

Margarida David Cardoso: Estava próxima de começar a escrever esta reportagem, há mais de um ano, quando li esta frase: “O que precisamos é de uma cultura onde a experiência comum de trauma leve a uma normalização da cura.” Não procurei por ela; encontrei-a por acaso numa rede social. É atribuída a uma artista visual, natural de Mumbai, na Índia, chamada Rithika Pandey. E era exatamente o resumo do que andava há semanas a tentar dizer. 

“O que precisamos é de uma cultura onde a experiência comum de trauma leve a uma normalização da cura.”

As doenças mentais são doenças da solidão. Vivem-se a sós. Quase sempre, uma pessoa doente demora a ter consciência do que lhe está a acontecer, e à sua volta a incompreensão é um sentimento ainda comum.

Desde meados de 2020, uma série de pessoas, para quem eu era uma completa estranha, sentaram-se com um microfone à frente para falar sobre muito daquilo a que chamamos o mais íntimo. Sobre saúde e doença mental, tristeza e euforia, tratamento e cura, família, sexualidade, trauma, suicídio.

Entre elas, escolhemos cinco. Pouco têm em comum e – que eu saiba – nenhuma delas se conhece. O que partilham talvez seja a capacidade de expressar a relação que têm com os problemas psicológicos ou uma doença mental de que sofrem ou sofreram. 

Este é o retrato de um momento concreto nas suas vidas, do dia em que nos sentamos a gravar. Por isso, está desatualizado ao dia em que o ouves. Muita coisa mudou desde então.

A proposta é que oiças estas experiências comuns. Antes de tudo. Fica a saber que vem aí uma série longa e densa, dividida em três momentos: um prólogo (com cinco histórias pessoais), um momento narrativo (com sete episódios) e um epílogo. 

Por agora, a Joana.

II

Joana Lima: Uma pessoa que esteja doente e que esteja num ponto em que vê a morte como um conforto não deixa de ser uma pessoa que, no seu passado, já viveu coisas bonitas. Então, quer dizer, partindo desse pressuposto, quando tu pensas que alguém está doente ao ponto de dizer que quer morrer, não significa que a pessoa não tenha em si, ainda, um bocadinho desta coisa de “Eu sei que viver também é bom. Eu sei que a vida também é bonita e que o mundo também é um lugar fascinante e apaixonante”. Todas as pessoas devem ter isto dentro de si. E eu tinha muito, eu tinha muito. Eu adoro viver. Sou uma pessoa apaixonada e etc. 

Agora, quando tu estás num ponto de doença assim. A vida pode ser uma coisa maravilhosa, e tu podes ter memórias maravilhosas, ideias maravilhosas e etc., e nada, nada, nada vai sobrepôr-se à necessidade que tu tens de acabar com a dor.

Sei lá… Quando pensas numa ferida, num animal em carne viva, está um bocadinho esta ideia de quase mal podes tocar, porque ele vai-se encolher todo e vai… Sabes? Sofrer. Eu acho que é um bocadinho isso. Quando eu digo que estou ou estava em carne viva é um bocado esta coisa de em qualquer lugar que me toquem, ou em qualquer botãozinho que me toquem, eu vou sofrer, eu estou a sofrer, e não há um lugar confortável. Se eu me deitar não estou confortável, se eu me sentar não estou confortável. Tudo dói, sabes?

O respirar era o pior para mim, porque eu nunca conseguia atingir aquele limiar de prazer quando estás a respirar. Era horrível Mas depois havia este lado todo mental, que era o pior. Que era aquela coisa que a ansiedade nos traz de estar sempre em desconforto emocional. 

“Se eu fizer isto, o que é que me acontece? E se me acontecer isto? O que é que pode acontecer? Daqui a nada qualquer coisa má vai acontecer.” Inconscientemente muitas vezes, estás num modo de alerta constante. E de medo – sabes, medo –, sem razão nenhuma, porque se calhar estás num sítio bonito, e o mundo é bonito, e é bom viver. Mas dentro de ti tu estás assim.

III

Então, eu sou a Joana, tenho 27 anos, quase 28. E… sei lá, sou uma mulher no mundo. Estou a recuperar de uma depressão há algum tempo. E não sei bem, na verdade, não sei bem o que posso dizer. Gosto de música, e de escrever, e de estar confortável com a vida, embora isso seja um trabalho que tem que se fazer.

IV

Bom, antes dessa primeira vez em que fui diagnosticada, eu acho que é justo dizer que na adolescência também estive bastante deprimida, embora não tenha sido uma depressão assim muito… Como é que se diz? Acentuada. De alguma maneira eu ia sobrevivendo. Era um bocado isto: de alguma maneira eu ia sobrevivendo, mesmo com a ansiedade e tudo. Na altura, não foi diagnosticado nem nada. 

A minha mãe já teve graves problemas de depressão, e outras pessoas na família próxima. E, muitas vezes, isto é uma coisa geracional. E, portanto, eu sempre me senti muito sortuda, porque, de alguma maneira, apesar de, por um lado, ser difícil cresceres numa família onde existem este tipo de problemáticas, ao mesmo tempo isso ajudou-me muito no momento em que eu precisei de ajuda. 

Quando eu tinha para aí 19 anos, as coisas começaram a piorar e eu estava a ficar um bocadinho em carne viva. E, na altura, era uma relação abusiva em que eu estava e eu não conseguia sair da relação. Eu já tinha tentado acabar mil vezes. A pessoa era um bocadinho – um bocadinho não, era bastante agressiva. Eu tinha medo quase de morrer por não conseguir sair daquela relação. Então, foi mesmo uma decisão de “Se eu não procurar ajuda, eu ou morro porque cada vez estou mais longe de mim mesma, ou, então, morro porque esta pessoa dá cabo de mim”.

E, então, eu procurei ajuda, comecei a fazer terapia e esse foi um ponto de partida muito consciente. Mas à medida que as outras coisas foram saindo, porque começares a fazer terapia é quase como se… É como teres uma caixa com um álbum de fotografias, e coisas, e tudo o que tu és, dentro dessa caixa; e tu vais abrindo a caixinha devagar, e vais tirando uma coisa, e vais tirando outra – algumas são maravilhosas e estou doem muito. Então, à medida que eu ia avançado começavam a surgir estas coisas todas que me estavam menos conscientes, porque, enfim, só naquele momento da minha vida é que eu ia avançando para compreendê-las.

E, muitas vezes, apesar das coisas serem faladas de uma forma consciente e de haver essa abertura, é muito difícil tu reparares quando te acontece a ti. Ou quando as coisas começam a ir caindo devagar e é dentro de ti que isso está a acontecer…

Eu saí da terapia de um momento para o outro. Disse a mim própria “Ah, eu já aprendi tantas coisas”. Eu lembro-me de dizer isto à minha mãe, na altura – eu ainda tinha 20 anos, ainda vivia em casa dos meus pais. Dizia “Ai, estou tão contente. Tenho-me tornado uma pessoa tão mais autónoma, a conseguir regular as minhas emoções tão bem, etc”. 

O que era verdade, em muitas coisas, efetivamente, era verdade. Eu dizia “Eu quero descobrir quem é esta Joana que já é mais autónoma, o que é que eu consigo fazer sem estar sempre com a terapia ali” – o que também era legítimo. Mas era uma forma, também, de eu evitar uma coisa, evitar que se destapasse ali uma tampa e começassem a sair coisas difíceis cá para fora. E eu acho que isto deve acontecer a muitas pessoas.

Quando estás num processo de terapia, estás a olhar para coisas na tua vida que, se calhar, nunca conseguiste aceitar conscientemente de que eram assim; ou relações que tens na tua vida que, se calhar, gostarias de achar que são as mais saudáveis do mundo, mas que, se calhar, até nem são. E mesmo dentro de ti: se calhar, a Joana descobria coisas sobre si própria que preferia que não fossem assim. Se calhar, eu preferia não ter esta dificuldade. Por isso, é doloroso, é maravilhoso e, às vezes, assustador.

V

Eu tinha vindo do estrangeiro em 2016 e estava a ter um dos melhores anos da minha vida. Estava muito feliz. Estava a estudar Jazz na escola do Hot Club, estava a cantar em sítios e na rua e em toda a parte. Eu estava super feliz. “Eu tenho uma coisa boa para dar ao mundo, sabes? Eu tenho uma coisa boa para dar ao mundo.”

Mas as coisas quando não estão resolvidas sobem ao de cima. Eu não estava à espera quando deprimi a segunda vez. Não estava à espera. Pelo menos… Sim, não estava à espera. Eu ia a dizer “Pelo menos, qualquer coisa…” Não, eu não estava à espera. 

Imagina como se fosse um barco e, de repente, abrem uns buraquinhos que vão deixando a água entrar. E, às tantas, tu começas a afundar. Então, houve alguns buraquinhos nessa fase da minha vida de 2017. Talvez do verão de 2017 até ao fim do ano.

Uma delas foi eu estar em grande ansiedade por causa da readaptação a Portugal, porque tinha voltado do estrangeiro e depois há toda uma série de coisas que te são conhecidas, mas que, ao mesmo tempo, quase que são novas e é estranho. Sei lá, dinâmicas familiares, relações de amizade que, de repente, regressam. Depois havia esta coisa da ansiedade constante do problema das casas em Lisboa e em Portugal. Depois estava numa relação que não era a mais saudável de sempre. E, às tantas, surge-me este… Veio-me ao de cima um trauma muito antigo que eu quase nem sabia que existia.

E eu vou dizer, sem grandes rodeios, que o meu trauma tem a ver com abuso sexual e que foi uma… A palavra que me surge é sempre “acidente”, já da outra vez foi assim, eu tenho sempre a mania de dizer que foi um “acidente”. Bom, não foi um acidente, foi uma coisa que aconteceu e que não foi uma coisa muito simpática. Bom. E, então, o que acontece é… Quando tu, neste caso, eu era criança, eu era pequena, e foi apenas uma situação, mas causou um dano enorme, não é? Porque senão eu não tinha 27 anos e não estava a lidar com estas coisas ainda hoje… E bom, obviamente, acho que não é novidade dizer que uma situação de abuso sexual, ou uma violação, ou etc… São coisas que são traumáticas, são coisas muito pesadas. E quando é com uma criança, então… pronto. Muitas vezes, o que acontece quando… E eu lembro-me de estudar isto em Psicologia e depois de ter tido que reaprender isto quando se aplicou a mim, ter de entender que isto me tinha acontecido. 

O que acontece muitas vezes, quando alguém passa por uma situação traumática, pode ser lutar, que é a cena em que tu lutas e tentas resolver ao máximo… Ou congelar, e não consegues sair dali… E, às vezes, congelas e dissocias. Isso da dissociação o que é que é? É tu arranjares uma forma de, como o que está a acontecer é tão duro, ou tão confuso, ou tão estranho, ou tão fora, sabes? Tão fora daquilo que é suposto estar a acontecer que tu, para te protegeres, o teu cérebro leva-te para outro lugar. Então, é como se, de alguma maneira, eu era criança e estava ali, mas arranjei forma de não estar, sabes?

Eu não percebia nada e esta sensação de… Eu não me lembro de tudo, mas lembro-me de ter uma sensação de confusão gigante – “O que é que está a acontecer?” –, e de medo, e de vergonha, e de “O que é isto?”. O meu cérebro foi muito simpático, então para eu não sofrer muito, ou muito mais, pôs aquilo no fundo, lá no mundo, na gaveta mais escondida do teu ser aquilo foi para ali, para aquela gaveta.

Só que é uma coisa que… E isto eu foi percebendo depois em terapia que é: por muito que a coisa esteja lá escondida na gaveta mais profunda do teu ser, ela vai estar a minar-te, sabes? E olha, até… Eu gosto sempre de pensar nisto e gosto deste exemplo: quando as memórias do antes e do depois, e mais ou menos uma sensação de “Isto aconteceu”, começaram a surgir-me e eu decidi ir para terapia, eu tinha acabado de rever o filme da Mononoke, da Princesa Mononoke, do Miyazaki. E no filme há toda esta coisa deste animal místico que é demoníaco e que tem uma pedra, uma pedrinha negra que tinha dentro de si… E enquanto o animal tivesse aquilo dentro de si ia ser um demónio, ou ia ser minado por aquela pedra.

Filme Princesa Mononoke
Hī-sama: Esta bola de ferro estava dentro do corpo do javali. Destruiu os seus ossos e corroeu as suas entranhas. Causou-lhe um sofrimento horrível.

Joana Lima: E eu lembro… Era assim que eu me sentia, sabes? Quando comecei a perceber que isto tinha sido uma coisa na minha vida e que se tinha espalhado por várias áreas da minha vida sem que eu saber… Era isso que eu sentia: eu tinha aqui esta pedra escondida e ela ia minando de veneno, ela ia avançando com os braços e com as pernas para toda a parte. 

E, então, ao longo da minha vida, isso influenciou-me em relações românticas, intimidade, sexo, a ideia de poder nas relações e de dependência nas relações, confiança, e etc. Isso influenciou-me na minha capacidade de perceber como é que as regras funcionavam. Eu não tinha um radar, por exemplo. Eu não conseguia defender-me de nada. Eu era como se ainda fosse a criança.

E eu lembro-me do meu psicólogo, no início, quando eu ainda não tinha desvendado a cena, ele dizia-me assim – e eu na altura não percebia, claro, mas agora faz todo o sentido… Ele dizia-me: “Eu tenho alguma dificuldade em perceber como é que a Joana, sendo uma rapariga que não é propriamente uma freira a viver num convento isolada do mundo, mas já viajou, já teve no estrangeiro, já teve alguns namorados, já conheceu pessoas por quem se apaixonou, etc… Como é que ao mesmo tempo também tem esta postura tão ingénua?” Ele usava a palavra ingenuidade – e inocente no sentido de não perceber quando é que as coisas podem correr mal ou quando é que há uma outra intenção, etc… E era verdade.

No momento em que as memórias surgem ao de cima, eu começo uma grande dúvida de “Eu estou-me a passar, estou a fritar, isto é impossível, já estou a inventar coisas. Isto não está. Joana, Joana, tens que ir resolver-te”.

E depois chegas e percebes. E demora um bocadinho até desvendar, mas percebes que, se calhar, a coisa aconteceu mesmo, e que se calhar vais ter que falar com a tua família sobre isso. E depois falas com a tua família e percebes que não era uma coisa inventada, que as pessoas se lembram e que, se calhar, não querem pegar nesse assunto, mas tu precisas tanto de pegar no assunto, tu tens que compreender o que é que te aconteceu e etc. E depois vais à procura de respostas, não é?

E, a partir do momento em que eu começo a tentar escavar, ou a tentar perceber, e se calhar a chegar à conclusão de que realmente algumas coisas aconteceram mesmo, eu começo a decair, decair, decair, decair. Nunca me fui apercebendo, porque era aquela coisa de eu ir para a terapia em modo guerreira, e “Vamos lá, vamos resolver”, mas depois estar em carne viva o resto do tempo todo, não é? E ainda bem que, na altura, a minha mãe principalmente me disse “Isto está a correr um bocado mal”. E mesmo assim, e mesmo assim, com esta postura – por isso é que eu digo que é uma postura muito contraproducente –, esta postura de quereres avançar com as coisas e estares ali a arrastar o camião cheio de areia e etc… Eu procurei ajuda já tarde demais. Eu procurei ajuda psiquiátrica quando já estava… quando já não me sentia viva sequer.

Já estava num ponto em que estar aqui ou não estar aqui era igual. Deixem-me estar em posição fetal o dia inteiro, as horas todas. Não me toquem, não me falem. Eu só quero morrer. 

AVISO

Nuno Viegas: Olá. Uma nota: se o que ouviste até aqui te tiver feito sentir mal, há na transcrição deste episódio, em fumaca.pt, uma lista de linhas de apoio a que podes ligar. Caso sintas que estás em perigo imediato, telefona para o 112. Regressemos ao episódio.

VI

Joana Lima: Mas eu lembro-me de uma coisa – eu nunca disse isto a ninguém… Eu lembro-me de uma coisa que também para mim foi um bocadinho chocante, em que me caiu um bocadinho a ficha. Que foi: na madrugada de dia 1 de janeiro de 2018, eu estava secretamente, discretamente, a pesquisar formas de morrer na net. E lembro-me de ter esta sensação de… É o início de um ano, é o início de um ano. Isto é sempre uma coisa boa. E, ao mesmo tempo, para mim, era só “Eu preciso de me libertar disto tudo. Eu quero ir embora”, percebes? 

O facto de não ter avançado – eu estou aqui a falar contigo, ainda bem… O facto de não ter avançado… Eu penso que, às vezes, é quase uma espécie de sorte, ao mesmo tempo. Porque se tu soubesses o tempo em que aquilo já estava dentro da minha cabeça, e às vezes até nem notas, às vezes até nem notas, não é super consciente. Mas eu na madrugada do dia 1 de janeiro de 2018, eu estava a pesquisar formas de morrer, mas não era a primeira vez. Só me bateu nesse dia, porque era o primeiro dia do ano, mas eu já tinha feito isso milhões de vezes.

Uma coisa que eu fazia constantemente, e isso ajudou a eu não avançar com as coisas, era ver documentários sobre suicídio. Eu papava documentários como se fosse a tablete do melhor chocolate do mundo. Aquilo era uma cena… Eu precisava de ouvir as pessoas falar sobre suicídio, eu precisava de ver o sofrimento das famílias para me lembrar que eu não podia fazer aquilo. Eu não quero que a minha mãe seja esta mulher que eu estou aqui a ver no vídeo completamente quebrada, sabes?

Eu ia destruir a minha família. Se já era uma família com algumas dificuldades a nível de saúde mental, então se eu me matasse, eu ia destruir aquelas pessoas. Então, quase que me sentia também uma assassina, sabes? E aliado a isso, era um bocadinho esta coisa de eu pensar – e eu pensava isto, juro… Eu pensava “Eu vou fazer isto, mas então tenho que preparar tudo que é para ser o mais fácil possível para eles”. O que é um bocado hilariante, como é que tu preparas uma…? Eu estou a dizer isto e quase a rir e é possível que me interpretem mal, mas eu acho que também é saudável teres um bocadinho de sentido de humor às vezes para lidar com as coisas. Mas como é que é possível tu estares a preparar a tua própria morte da forma mais organizada possível?

E, então, eu imaginava… E parte de andar a pensar sobre a morte é muito isto, é tu estares sempre a imaginar aquilo. E eu passava horas a imaginar “Ok, então, antes de eu fazer isto, eu vou arrumar a casa toda… Arranjar forma de preparar que vou sair daquela casa” – porque eu vivia na minha casa, não é? Todas estas coisas… 

E, para mim, tinha a função, porque a ideação suicida tem sempre uma função. Existe o conforto, tu quando estás a imaginar estas coisas, estás a dar conforto a ti própria. É uma forma estranha de dar conforto, mas é. É uma estratégia de coping, de alguma maneira. Portanto, para mim, tinha duas funções, que eram imediatamente opostas. Por um lado, o conforto de pensar em morrer, e vai tudo acabar, finalmente vai tudo acabar. E, por outro lado, esta coisa de me estar a salvar. Como eu não quero destruir a minha família, na minha cabeça era “Eu vou ter que arranjar a melhor forma de o fazer”. Claro que isso não existe. E, portanto, isso salvou-me, eu acho. E também o facto de, às tantas, a minha mãe agarrou em mim e disse “Acabou, tens que ir para o hospital. Vamos e acabou”.

VII

Joana Lima: Era tipo, não sei, uma da manhã. Eu lembro-me de estar… Parecia um esqueleto. Já só pesava para aí 45 quilos, lembro-me. Nessa fase, eu quase não conseguia tomar banho de pé, por exemplo. E a minha mãe com toda a experiência que tem e que teve com outras pessoas da nossa família e etc… Lembro-me de se virar para o meu pai e dizer “Temos que ir com ela para o hospital, se não…” Até porque eu dizia – apesar de estar naquele estado de quase absoluta indiferença – a única coisa que eu dizia – já nem me lembrava disto, agora lembro-me… A única coisa que eu dizia era: “Eu já não quero amanhã”. Era isto que eu dizia. E por isso é que a minha mãe foi tipo…

Porque ela dizia-me: “Amanhã é outro dia.” E eu: “Já não quero amanhã.”

“Que desperdício.” Eu lembro-me de ter um bocado esta sensação: “Que desperdício.”

E, portanto, levam-me e eu estou lá e não consigo dizer nada, e só choro… Chorava, estava calada, parecia… Não sei, não existia. É a única coisa que te consigo dizer. É o teu corpo estar lá e tu não estares.

Eles deram-me… Já não me lembro. Qualquer coisa para me porem num estado… Não sei se era um ansiolítico, uma cena qualquer, para eu conseguir dormir, sabes? Porque era outra coisa terrível, porque eu já não dormia bem há meses, e meses, e meses. E então, naquele momento, a prioridade era: “Esta rapariga tem que conseguir dormir e, no dia seguinte, ir ao psiquiatra. É isto que vai acontecer, este é o plano.” E, então, foi isso que aconteceu. Eu dormi e depois fui ao psiquiatra.

E a partir daí, o que aconteceu foi aceitar… Nessa altura, é quase mais resignar, que é tipo: “Tem que ser. Eu tenho que perceber que agora é isto. Agora, Joana, tu és uma miúda que está muito doente, já não vai ao Hot, já não vai às aulas, já não vai fazer os exames – na altura era janeiro, portanto ia haver exames das disciplinas –, já não vai dar concertos. E agora, pronto, ficas aqui. E vais ter que ficar aqui e as coisas vão melhorar devagar. Muito devagar.”

Desta vez, eu fiquei meses a fio sem conseguir ouvir música, meses a fio sem conseguir ler um parágrafo até ao fim. E isso era… bem. Não sei… Aterrorizava. 

“Se eu não consigo ter isto na minha vida, caramba… Então o que é que me vai fazer sentir viva?” E, por outro lado, esta coisa de “Eu já não consigo”. “Será que isto significa que agora eu vou ser esta pessoa? Será que nunca mais eu vou conseguir…” De repente, há todo este medo: “Então, o que é que eu sou? O que é que eu sou sem os livros?” Claro que sou milhões de coisas para além disso, mas é um bocadinho difícil quando é uma coisa tão importante para ti.

E depois tu vais lidando com isto de forma muito ambivalente, porque há dias em que aceitas e pensas “Sim, senhora, eu estou doente, por isso tenho que estar a descansar, como uma pessoa que tem gripe e tem que ficar na cama”. E isto faz tudo muito sentido. E depois tens dias em que te sentes… Sentes-te culpada, sentes uma culpa atroz. “Como é que é possível eu estar um dia inteiro na cama? Como é que é possível?” Isto é cruel para ti mesma, sabes?

“- Temos é que ir beber uns copos. Temos é que ir a uma jam, vamos aí a uma jam session.”

“- Tu tens tudo. Tu és uma miúda bonita, tu és inteligente, tens uma voz do caraças, ta ta ta.”

VIII

Margarida David Cardoso: Quero perguntar-te mais uma coisa que é se vais voltar a cantar? Ou se voltaste a cantar?

Joana Lima: Eu quero tanto, sabes? E vou, vou. É um progresso muito difícil, porque eu tenho uma grande dificuldade em termos de legitimidade para com a criação e com a arte. Mas eu vou, porque se não fizer isso… Também não sei o que é que faço, sabes? Isto é quase uma confissão. Mas, mas sim, mas vou. E felizmente eu tenho muitas pessoas que querem estar comigo nesse processo de regressar à minha voz e de cantar. E tenho muita sorte nisso, porque tenho malta que me manda mensagens e me diz “Vá, bora lá, obriga-te. Vem cá a casa, eu toco e tu não sei quê…” E eu tenho muita sorte nisso. 

E eu vou voltar a cantar, só que tenho que ser muito paciente comigo mesma enquanto vou preparando esse caminho. Porque não é fácil… É estares a recuperar a tua vida toda, quando estás a recuperar de uma queda destas e de uma depressão grave, tens que recuperar a tua vida toda.

Um problema que tenha sido muito grave é quase como se deixasse ali um pintinha, uma pintinha preta que está sempre ali, e tu vais ter que ter atenção àquela pintinha que está dentro de ti para sempre. Porque senão ela pode ir expandindo-se. Se lhe cai um pinguinho de água ela vai expandir. E tu tens que estar sempre com atenção. Eu digo a mim própria: “Joana, tu para toda a tua vida, vais ter que ser uma pessoa que tem que tomar atenção extra à tua saúde mental, à forma como tu te sentes.” E é verdade. E eu estou ok com isso. Aceito.

Gosto de pensar que continuarei sempre a ser a pessoa que vai continuar a trabalhar para me ser ao máximo, ao tutano. Ser-me totalmente, o máximo possível. Eu gosto de sentir que sou uma pessoa que trabalha todos os dias e que tem a cabeça centrada nesta ideia: “Eu quero ser a pessoa que quero ser, da forma mais livre possível e mais confortável possível, ao mesmo tempo.”

IX

Margarida David Cardoso: Joana Lima é artista, mora em Lisboa. Da primeira vez que falamos vinha de vestido às flores e cesta de vime debaixo do braço, com um livro dentro; a parte de cima do cabelo preso num puxo. Tinha 27 anos nesta altura em que gravamos, em junho de 2020, 28 quando voltamos ao estúdio, em agosto de 2021. 

Estudou Psicologia, e saiu antes de acabar o curso, para se dedicar à música. Em tempos, teve um canal de youtube, onde falava sobre doença mental. Mas a exigência das redes sociais tornou-se uma avalanche tal, que o decidiu apagar, em 2020. Desconstruir o estigma é algo que já não faz dessa forma, a gravar em frente a uma câmara, mas que tenta fazer de outras maneiras. Como esta.

X

Bernardo Afonso: “Estou caindo, depois do alçapão lá em cima, por todo o espaço infinito, numa queda sem direção, infinitupla e vazia. Minha alma é um maelstrom negro, vasta vertigem à roda de vácuo, movimento de um oceano infinito em torno de um buraco em nada, e nas águas, que são mais giro que águas bóiam todas as imagens do que vi e ouvi no mundo – vão casas, caras, livros, caixotes, rastos de música e sílabas de vozes, num rodopio sinistro e sem fundo.”

Citação de Livro do Desassossego, de Bernardo Soares

CRÉDITOS

Nuno Viegas: Acabaste de ouvir o primeiro de cinco prólogos da série Desassossego, sobre saúde e doença mental. Este chama-se Eu já não quero amanhã. Se quiseres ouvir já o próximo episódio e todos os seguintes basta fazeres uma contribuição mensal para o Fumaça. Quem nos apoia já tem acesso à série completa de 13 episódios. Vai a fumaca.pt/contribuir e ajuda-nos a ter a primeira redação profissional portuguesa totalmente financiada pelo público.

Este episódio foi escrito pela Margarida David Cardoso que fez a entrevista que lhe deu origem. Bernardo Afonso compôs e interpretou a banda sonora original, fez a edição e o desenho de som e é ainda a voz que ouves a recitar excertos do Livro do Desassossego de Bernardo Soares. O Pedro Miguel Santos fez a edição e revisão de texto. Eu, Nuno Viegas, fiquei com a verificação de factos. A Joana Batista criou a identidade visual. A Maria Almeida e o Ricardo Esteves Ribeiro, a estratégia de marketing. O Fred Rocha fez o desenvolvimento web. Todas estas pessoas participaram na construção coletiva da série. Podes encontrar em fumaca.pt a transcrição de todos os episódios, fontes, documentos e imagens relacionadas. Fazem ainda parte da equipa Fumaça: Danilo Thomaz e Luís Marquez.

A produção desta série foi parcialmente financiada por bolsas de apoio ao jornalismo de investigação da ARIS da Planície – Associação para a Promoção da Saúde Mental, do Sindicato dos Jornalistas, em parceria com a Roche e da Fundação Rosa Luxemburgo. Podes ver os contratos em fumaca.pt/transparencia.

Até já.

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