Episódio 2/13

Não, não, não, não vou conseguir

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TRANSCRIÇÃO

Nuno Viegas: Olá. Eu sou o Nuno Viegas. Estás a ouvir o segundo episódio de Desassossego, uma série Fumaça sobre saúde e doença mental. Recomendo que oiças com auriculares ou auscultadores.

Vamos falar aqui de sofrimento psicológico e também de suicídio. Continuares a ouvir pode fazer-te sentir algo inesperado. Se estiveres em perigo, em Portugal, liga para o 112, o número de emergência. Se tens sintomas depressivos, há acompanhamento psicológico no SNS 24: é o 808 24 24 24. Na transcrição deste episódio, em fumaca.pt, há o contacto de várias linhas de apoio a que podes telefonar. Como o Telefone da Amizade.

E, agora, vamos à história, gravada em junho de 2020.

I

Pedro Coquenão: Lembro-me uma vez de ir num avião, de estar a atravessar o oceano num voo de para aí 14 horas ou 13 – sei lá quantas é que são para São Paulo. Ia trabalhar. E estava-me a sentir mal. Mas habituas-te a estar mal, habituas-te a sentires-te mal e pensar “Pronto, estou-me a sentir mal. E então? Daqui a bocado o avião aterra, e eu vou para o hotel, e vou fazer o sound check, e vou falar com não sei quem e atuo”. Pronto. Mas comecei-me a sentir tão mal, tão mal, tão mal, que comecei a tentar quase meditar e acalmar-me, porque estava no meio do oceano, já estávamos com cinco ou seis horas de voo. Ainda faltavam sete ou oito. Eu, na altura, não me apercebi que isso me estava a afetar a cabeça. A coisa de não poder sair dali, de ter o voo esgotado, de não conseguir dormir, não tens espaço, o ar não é bom, a comida não é boa, nada é bom. E vais já para trabalhar, e sabes que vais aterrar em São Paulo e, no dia seguinte, com fuso horário todo trocado, vais agarrar e vais para o Recife. E depois do Recife voltas outra vez para cá. Se calhar, daqui vais para Gotemburgo.

Eu fui educado a não dar bandeira. “Foi tipo, tens que te controlar, não dês trabalho aos senhores.” Como criança, eu vim de uma situação de pessoas que vieram de um sítio para outro em condição de refugiado etc., então, eu era tipo “Não perturbar”. Não digas que estás só incomodado. 

E tanto me controlei naquele voo. E, às tantas, vejo uma senhora a vir lá do fundo. Tipo, eu estava no meio do avião sensivelmente. E estava uma hospedeira lá ao fundo, duas filas, sei lá, dez metros de mim e ela começa a vir, a vir, a vir, mas estava muito longe ainda. Estava a vir, a vir, a vir. Estava toda a gente sentada, a dormir ou a descansar com as janelas fechadas. Ela veio, veio, veio. Só a certa altura que eu percebi que ela estava a vir muito para aqui e estava a olhar para mim. “Mas que estranho, ela está mesmo a vir para aqui e está mesmo a olhar para mim. Olha. Ah. Olha, vai-me dirigir a palavra.” E perguntou-me só: “Está tudo bem consigo?” E eu respondi: “Estou ok, mas porquê?” E ela insistiu, disse: “Quer alguma coisa? Quer…” E eu percebi que ela estava stressada. “Mas que raio? O que é que se passa comigo?” O meu amigo que estava comigo, que ia trabalhar comigo, olhou para mim e disse-me: “Tu estás verde”, e ficou preocupado também. E eu só me apercebi que estava mal por olhar para a cara dos dois e por, de repente, começar a perceber que à volta as pessoas começaram a stressar comigo, as pessoas que estava à minha volta. 

E isso é um bocado quase um retrato do que é tu teres um problema mental e as pessoas não conseguiram lidar com ele. Eu estava quieto. Eu não queria chatear ninguém. Elas olharam para mim e, pela minha cara, que não faço ideia qual é que era, mas aparentemente, segundo diz o meu amigo, eu estava verde, lívido, com tons de verde, roxo e lilás, e estava com uma cara de quem não estava bem de todo. 

E o que eu disse foi só “Por favor, pode-me trazer uma água com gás?” E ela foi buscar água com gás. E, enquanto não chegou, eu, do nada, vomitei. Consegui ter tempo para agarrar no saco e vomitei, que é uma coisa que raramente me acontece. Vomitei-me todo e tentei ao máximo não chamar a atenção. Fiz aquilo de forma sossegada. E disse: “Pronto, então dê a garrafa, agora preciso ir à casa de banho”. E fui do género: “Saiam-me da frente. Deixem-me estar que eu trato de mim.” Levantei-me, fui para a casa de banho e percebi que estava super mal disposto, instável. Entretanto tinha ficado sujo com o vomitado. E que não me estava a sentir mesmo nada bem. E que ainda vinham ali seis horas de voo e que eu tinha que me organizar. 

Então, tirei a roupa, lavei a roupa na casa de banho, e eles arrombaram a porta três ou quatro vezes, até que eu cheguei à última e tive que dizer: “Eu vou deixar a porta aberta, mas deixem-me tê-la encostada, para eu poder estar à vontade.” Porque eles, por questões de segurança, não te deixam estar mais do que x minutos na casa de banho. E como eu estava… Ou seja, eu devia estar num estado tal que eles temiam que eu tivesse um ataque de qualquer coisa e que pusesse em causa a segurança do voo. Não aconteceu nunca nada disso. Não tive perto disso, não chateei ninguém, mas depois tive meu próprio que os acalmar.

E quando voltei para o meu lugar, tive que fazer um ar de que “Está tudo ok, tive só uma indisposição. Sou alcoólico, uma coisa qualquer. Tive uma overdose”, não sei, uma coisa qualquer, uma coisa que vocês conheçam. E sentei-me no avião e pronto, e depois seguir lá com o meu amigo mais preocupado comigo, mas tudo bem. 

Mas estive ali tipo uma hora, se calhar, entre esta coisa toda, e em que ninguém soube lidar muito bem a não ser arrombar a porta e verificar se eu estava vivo, se estava inteiro, se não estava a fazer alguma coisa louca com aquilo. E percebi que as próprias pessoas que eram assistentes de bordo, se calhar já tinham tido alguma experiência, estavam assustadas comigo. E depois ficaram preocupadas e trataram muito bem, mas naquela fase de “Não consigo entender o que é que tu tens”. Porque eu não disse nada. Elas perguntaram-me: “O que é que tu tens?”. E eu disse: “Não sei. Estou-me só a sentir muito mal.”

Podes ter o coração um bocadinho mais acelerado. Podes estar a suar. Podes estar com uma cor estranha, mas não se consegue traduzir aquilo para nada que descanse as pessoas. 

Pronto, e eu saí, e depois percebi que tinha sido um ataque de pânico, porque não havia razão nenhuma para aquilo. Ninguém teve problemas no voo, fui só eu.

Depois lembro-me de, ato contínuo, ter ido parar ao Recife. Era Carnaval. A cidade compacta, cheia de gente. Eu fiz o que tinha a fazer. Fiz duas performances lá, correram bem, eu diverti-me, gostei, foi bom, mas depois só queria ir era ir para o hotel e ficar quieto.

Depois eu tinha tipo a Nação Zumbi a querer estar comigo e eu ainda tentei, porque estava com o meu amigo. Disse: “Bora lá, é a Nação Zumbi, caramba. Eles estão-me a dizer para ir ter com eles, caramba, ao backstage para estarmos juntos.” Eu tentei. E cheguei à entrada da cidade e aquilo tinha uma massa tão compacta de pessoas, que é uma coisa que eu nunca vi. Eles ainda disseram: “A gente manda-te um segurança para atravessares este mar de pessoas.” Não, não, não, não vou conseguir. E não consegui.

Isso aconteceu mais vezes depois – ter esse tipo de fobia a ajuntamentos de pessoas, não conseguir estar com as pessoas, não conseguir falar com pessoas, não ter vontade de socializar. E isso mantém-se a espaços ainda até hoje. 

II

Então, olha, como é que eu me posso apresentar… Tipo rádio: Olá, eu sou o Pedro Coquenão. Em princípio, desconhecem-me como Batida. Costumo trabalhar com esse nome em áreas criativas. Gosto muito da designação que tinha no recibo verde quando comecei a trabalhar que era: “Artista de rádio, televisão, dança, teatro e sei lá mais o quê.”

III

Pedro Coquenão: A primeira vez que percebi que artista era uma palavra boa foi quando atuei em França e alguém me chamou d’artiste. E eu fiquei tipo uou, je suis un artiste. E fiquei todo contente. Epá, sou um artiste. E depois expliquei ao jornalista que me chamou artista várias vezes, artiste, que soa bem: “Sabes que em português artista soa muita mal.” E ele: “Mas tipo o quê?” Tipo: “Não sei.” Eu não digo, eu sou artista, não me sai facilmente. Agora consigo dizer, mas nunca conseguiria dizer numa entrevista esta frase que acabei de dizer: “Sou artista.” Dava-me vontade de rir.

Margarida David Cardoso: Achas que soa a quê?

Pedro Coquenão: Soa a artista. Faz-me logo lembrar teatro de revista. “Olha-me este artista.” Os filmes portugueses antigos: “Saíste-me cá um artista.” Nunca é… Na melhor das hipóteses é um avô que te diz isso: “Epá este tipo é um artista.” É uma criança que te faz rir. 

E depois há essa coisa da saúde mental em que o artista normalmente é associado a alguém que já é, à partida, apanhado da cabeça. E não é que é verdade. É mesmo preciso ser-se um bocado maluco, porque tens que te dar à morte e tens que perceber que provavelmente a tua vida financeira vai ser muito instável e o teu reconhecimento público vai depender de fatores que não têm nada que ver com a qualidade do teu trabalho. E isso é uma equação insuportável de lidar.

Tal como o agricultor que planta e não sabe se vai colher. Ele sabe que, na vida inteira, pode não ficar rico, mas o príncipio é esse. Pescas e vai haver um peixe a certa altura. E no caso da arte não há ciclos assim tão naturais. Tem que ver com montes de coisas: com boa comunicação, com uma boa vida social, com contactos, com teres apoio ou não teres, teres saúde ou não teres.

Eu fui a Nova Iorque, atuei no Central Park e atuei no Webster Hall, que é o equivalente ao Coliseu, e atuei no Lincoln Center, que o equivalente, não sei, ao CCB. E eu cá para conseguir isso demora muito tempo, custa muito tempo, custa muitos contatos sociais, custou muita coisa, que eu, enquanto artista, não me sinto na obrigação de ter que dar. Acho que eu tenho que só fazer bem o meu trabalho e isso não chega cá. Se houvesse um momento agora de lágrima no canto do olho era este. Porque magoa um bocado. Tu teres que, às vezes, ter que ir tão longe para teres um reconhecimento, não tem ser muito grande nem pequeno, é o que for… 

E depois é um ciclo, porque se tu estiveres esses anos a sofrer, a dar tudo e a não teres nada, podes ficar irremediavelmente afetado, para conseguir voltar a fazer o quer que seja. É quase como se a tua tentativa de plantar coisas das quais não colhes nada, inviabilizasse o campo em que tu trabalhas.

Dás por ti a falir. Eu fiz tudo o que era preciso, eu dei tudo o que tenho, não tenho mais do que isto, e não chegou… Isso é tipo “Ok, então você falhou. Você não chega.” Esta conclusão acho que é a pior de todas. “Tu não chegas. Para isto não chegas.”

IV

Eu ouvi esta anedota sobre alentejanos, para onde irei morar, espero eu. Havia aquela coisa do quando acordas, tens que ter uma cadeira ao lado da cama para descansar um bocado. E quem fez a piada, se calhar, não fazia a ideia do quão certo isso poderia estar. Há noites que são tão cansativas na pouca qualidade de sono e na ansiedade que tu tens na tua psique, que tu acordas e tens que estar o tempo que a vida te permitir a descansar. Ou no banho, ou a beber um café, se não é mesmo super violento. E quando chegas a um nível de burnout não tens como o fazer, porque não o consegues fazer. É simples. Não vai dar. 

A sensação é de olhares à volta e teres a ideia de que não vale a pena – não tens energia para andar mais. Se eu tiver que explicar mais o que é que eu senti com o burnout foi ter chegado a um momento, mais do que uma vez, em que eu sentia que não consigo fazer nada. Não consigo mexer-me. E isso pode-te dar… De repente, tens sintomas que não percebes quais é que são. Eu tive sintomas, como ataques de pânico, que não sabia o que é que eram. Não fazia ideia. 

Eu já tive… Acho que já tive mais do que um momento desses. Mas o que tu sentes… Há momentos diferentes: o momento mais radical deles todos é quando tu olhas para a frente e não vês qualquer saída. Não vês nenhuma possibilidade das coisas ficarem melhor.

Quando começas a não dormir ou dormir mal, a ter dificuldade em adormecer ou em acordar, e a fazeres tudo isso ainda mais doloroso, ou por acumular, ou porque já era mesmo assim, porque estavas a adormecer triste. A pessoa não adormece triste por estar doente. Às vezes adormece triste, porque tem razões para isso: perdeu alguém, morreu alguém, a pessoa sente-se frustrada com qualquer coisa, não tem emprego, as coisas normais. Então, tu podes começar por não dormir bem por causa disso, mas, depois, de repente, já começas a estar pior, porque também não dormiste bem. É mais ou menos uma espiral. Começas a andar, andar, andar, andar… E quando dás por ti já nem te apercebes o porque é que estás mal e já estás só mal. 

E já achas que aquilo é uma coisa sem saída, portanto já não confias no sono para melhorar. Já não tens essa perspectiva. E já estás mesmo metido num buraco. Quando não vês saídas, o que é que te ocorre na cabeça? É destruíres-te.

Quando alguém pergunta “Mas pensaste em suicidar-te?” O que tu pensas, na altura, é só – penso eu – que é tipo anulares o que estás a sentir. Há quem beba até cair para o lado, há quem se drogue, há quem se destrua de várias maneiras, sendo com substâncias, ou só sendo o mesmo o próprio processo de pensares, de isolares-te. Como os bichinhos fazem: escondes-te, isolas-te, revoltas-te, autodestruires-te psiquicamente, que é tipo a coisa mais horrível que podes fazer. Porque não é tangível, não é observável, assim tipo como a perna partida, mas estás a fazê-lo e é muito doloroso.

O que a doença põe em causa é a tua própria existência. Porque, de repente, põe a tua vida em causa. Quase que te diz para tu te autodestruíres, porque não estás a funcionar bem. Como um robô. “Autodestruição em dez segundos. Afastem-se, afastem-se.”

Um baterista se disser que ficou sem um braço, porque torceu, partiu, é aceitável que ele não toque. Se ele disser que está com a cabeça partida num sítio, a alma dele quebrou mesmo, o profissionalismo dele vai ser posto em causa. Digam-me o que disserem. Sem braço, se ele tocar mal com um braço, porque vai tocar mal: “És incrível, que esforço.” Mas se a pessoa estiver com a cabeça partida em dois braços mentais, vai ser… “Ele anda um bocado instável.” Essa falta de tangência, de ser uma coisa palpável na doença mental é o grande obstáculo. 

V

Eu já entrei de urgência na psiquiatria e sei que não é o que as pessoas pensam, mas não é pêra doce, nem é propriamente uma coisa… Dá para brincar. Aliás, devo dizer que me fartei de rir e de me divertir, porque, de repente, percebes que “Ok, eu estou no sítio, onde tenho tudo para cuidarem de mim. Então, já posso ser parvo outra vez”. Até lá chegar nem tanto. 

É tipo criança: “Agora já tenho a vossa atenção. Então, vamos lá. Estou aqui um bocado magoado com isto, isto e isto.” Não tens esse tempo das pessoas, mas tens a parte técnica que é muito importante, que é teres um médico que consegue diagnosticar-te o que pode ser o teu maior problema, e se a falta de sono é uma questão, se a falta de comida é outra, se a falta de descanso geral é outra, e pode ser passada uma baixa, etc. E sim, há cuidados, mas lá está. É complicado haver espaço e cuidado, como houve esse pânico para o Covid, não há o pânico em relação à doença mental, porque ela está controlada no tempo. Outra vez: as pessoas não vão ficar malucas todas ao mesmo tempo, não vão descobrir que estão mal todas ao mesmo tempo. Vão descobrindo. Vão falando.

É menos visível e não estão todos na urgência ao mesmo tempo. Porque se houvesse esse perigo, havia o mesmo confinamento em relação à doença mental que houve em relação a este. “Epá, fiquem todos em casa e enquanto não se perceber quem está deprimido e não está, ninguém sai à rua.”

VI 

Lembro-me sempre do meu avô me dizer qualquer coisa como “Quando mais te baixas, mais se te vêem as cuecas”. Isto não quer dizer nada, quer dizer tudo. Eu utilizo-a aqui nesta situação, na medida em que a maior parte das pessoas quando te ouvem a falar sobre fragilidade mental, colocam-te logo numa posição frágil. É quase como uma coisa animal. És posto fora do grupo, estás estranho.

Porque parece que há uma necessidade quase industrial, ou sei lá do quê, de nós mostrarmos que somos capazes. A pessoa tem que estar sempre pronta para o quer que seja a premissa social daquele momento.

Só o falares sobre o problema em si coloca-te já numa posição de chato, de aborrecido. Mas se disseres a alguém, como me aconteceu a mim: “Olha, eu vou ter que cancelar este show porque não consigo fazê-lo”, “Mas porquê?”, “Não consigo”. Eu ensaiei-o, tenho-o completamente pronto, saí do ensaio há um bocado. Fiz o ensaio em esforço – montar, desmontar, fazer tudo, falar com toda a gente. Dei a minha energia a todas as pessoas que tinha para dirigir: bailarinos, som, vídeo, fiz tudo. Chego a casa, sento-me e digo: “Eu não vou conseguir fazer este espetáculo.” 

Está super preparado, está no ponto, mas a minha cabeça não aguenta lidar. Não sei. Podem-me insultar. “Ah, menino. Artista!” Não, não consigo. Não consigo encarar o sair de casa. Não consigo encarar apanhar um avião. Não consigo encarar fazer malas outra vez, carregar tudo, chegar até lá. E não é preguiça, porque entretanto estive a trabalhar que nem uma besta durante uns anos, sem férias… Então é tipo, mais, não sei, mas não vou conseguir. 

E tu comunicas isso e, de repente, começas a lidar com algumas coisas: solidariedade, pessoas que gostam de ti. Mas depois é-te pedido uma declaração, porque para efeitos contratuais tens que ter uma declaração que te diz que tu não estás bem da cabeça e que precisas de um tempo para descansar. Se quiseres mesmo parar, não podes fazer nada e tens que ganhar 400 euros por mês ou qualquer coisa do género, que não te permite viver nem pagar a tua saúde mental. E as coisas começam a ficar um bocado complicadas. 

E as pessoas com que tu cancelaste… Se a pessoa for incrível, extraordinária, para lá do inacreditável, vai achar que foi só um azar. Uma pessoa comum, que tem filhos, vida familiar, amigos, e outras coisas com que se preocupar, pensa: “Pronto, olha, este não vai dar. Pronto, ele que se organize, desejo-te o melhor, quero o melhor para ti e para os teus. Que sejas feliz”. Mas és posto numa prateleira. E depois para sair de lá é muito complicado.

“Epá, este pessoal fritou de vez. Ninguém vai conseguir ouvir isto. Não isto não vai… Nenhuma rádio vai tocar isto.” E passa-se à frente.

VII

“Se tu não consegues, alguém vai conseguir. Se tu não queres, alguém vai querer.” Pronto, então somos um bocado predadores uns dos outros e há sempre alguém que tira um bocado de partido disso, dessa luta por tentar ter atenção, a tentar conseguir corresponder.

No caso das artes, tu vês muito disso: o artista que toca mais não é necessariamente o que é mais inspirado, o que é mais transpirado ou o que está num momento a ter uma visão qualquer diferente, ou a ser qualquer coisa de muito particularmente interessante. Normalmente é o artista que consegue dar mais consistência, tipo fábrica de salsichas: consegue dar mais shows, consegue dar discos de x em x tempo, principalmente na fase em que se está a construir. E consegue aturar não sei quantos shows seguidos, não sei quantas entrevistas, não se droga, não bebe, não fuma, não faz nada. Ou, então, se o faz, faz de uma maneira que o próprio universo à volta dele consegue sustentar. E tu percebes como é que isso é importante… Porque toda a gente colapsa na indústria.

Nós todos dançamos uma dança super perigosa, que é de queremos tudo quando queremos, como queremos, na medida certa em que queremos, apenas e só. Não há assim tanto espaço para o subjetivo, não há assim tanto espaço para o inspirado. Então, é natural que… Andamo-nos todos a alimentar de fast tudo.

E é disso que estamos a falar: é sempre do número de bilhetes que tu vendes, do que é que tu consegues fazer. E quando é posto em causa essa sanidade, o cuidado que têm contigo é proporcional ao dinheiro que tu deste a ganhar. Se não deste muito, não vão investir muito. Se deste muito, há interesse em que tu voltes, porque já se percebeu que essa cabeça maluca, vai dar qualquer coisa que pode ser interessante. Uma Amy Winehouse que, de repente, está a morrer à nossa frente… “Queres ver que vai morrer cá, aqui no Rock in Rio?”

Porque aquilo não era música, não era nada. Era sofrimento. Parecia um coliseu romano, uma tourada, em que estamos ali a ver alguém completamente em falência psíquica e nós achamos que aquilo tem algum interesse. Artístico não tem nenhum. Porque ela não estava… Não estava a cantar bem, ela não estava bem. Mas, não, a indústria reclama um bocadinho isso e depois há essa lógica, se o artista morrer é quase poesia. Há sempre assim um perigoso romance à volta da saúde e da não saúde mental nesta área em particular. 

VIII

Acho que tu não tens que aprender por sofrimento. Acho que não tens que aprender por dor. Acho que tens que aprender com experiência e ela não tem que ser sempre dolorosa.

Em princípio, tu podes-te autoregenerar. Mas com o passar do tempo, da idade, etc, não é tão claro ou tão certo que a tua saúde mental se autoregenere sozinha. Tem que ter qualquer coisa. Tens que ter descanso, para começar. Que às vezes não tens. Tens que ter dinheiro para comprar esse descanso.

Há coisas em que eu melhorei. Até fiquei mais forte. O simples facto de já saber mais ou menos os sintomas torna-me mais forte. E de não esticares a corda em montes de coisas. Saberes “Olha, esta não dá para fazer”, que é uma coisa que tu, até certa idade, achas que podes fazer tudo e aguentas tudo. E a sociedade diz-te que, não só tu deves, mas como tens, podes e vais. 

No meu caso, é mais tipo só isso. É perceberes que és muito frágil ali, isto é super importante e há coisas das quais não podes abdicar. Como por exemplo – e ainda falho em algumas – comer bem, dormir muito bem e teres contacto com pessoas que gostem muito de ti e com a natureza. 

A ida à praia não é só uma ida à praia. É andares com os pés na areia, é estares com os pés na terra, é olhares para as estrelas. Coisinhas que não têm que ser místicas, são só o que são. É seres os bichinhos que tu és. Cada um depois lá sabe o que é que lhe quer chamar. Mas que elas são essenciais, são. Esse contato com a natureza, o contacto com outros bichos.

E, antes disso tudo, gostares muito de ti, que é, se calhar, mais difícil, pelo menos para mim. E isso é toda uma cena. É aprenderes a viver, basicamente. Não é mais nem menos do que isso. 

IX

Margarida David Cardoso: Pedro Coquenão é o nome comum do artista Batida. Depois deste primeiro burnout, foi trabalhar com o amigo, rapper e ativista luso-angolano Luaty Beirão – preso em Angola entre 2015 e 2016, com outros 16 ativistas, por ler um livro. Juntos criaram o projeto IKOQWE. Não lhes apetecia fingir normalidade, fingir que nada se tinha passado. Então Pedro aparece como se estivesse queimado: tem uma máscara, feita de ligadura, que cobre toda a cara, e por cima da testa um autocolante que diz “Frágil”. Como um aviso: “Esta pessoa está frágil da cabeça.”

Pedro nasceu no Huambo, no centro de Angola, a mais de 600 kms de Luanda. Foi crescer para os subúrbios de Lisboa, entre a Amadora e Carcavelos, mas a mãe sempre fez questão de lhe falar da terra, da linha do horizonte, do espaço e do tempo que parecem ser diferentes num sítio com poucas pessoas. Quando gravamos esta entrevista, no verão de 2020, Pedro Coquenão estava a planear a mudança para o Alentejo, o lugar onde encontrou sempre algo de Angola. Aí esperava encontrar alguma dessa paz – que não tem que ser mística, é o que é.

X

Bernardo Afonso: Acordei hoje muito cedo, num repente embrulhado, e ergui-me devagar da cama sob o estrangulamento de um tédio incompreensível. Nenhum sonho o havia causado; nenhuma realidade o poderia ter feito. Era um tédio absoluto e completo, mas fundado em qualquer coisa. No fundo obscuro da minha alma, invisíveis, forças desconhecidas travavam uma batalha em que meu ser era o solo, e todo eu tremia do embate incógnito. Uma náusea física da vida inteira nasceu com o meu despertar. Um horror a ter que viver ergueu-se comigo da cama. Tudo me pareceu oco e tive a impressão fria de que não há solução para problema algum. Uma inquietação enorme fazia-me estremecer os gestos mínimos. Tive receio de endoidecer, não de loucura, mas de ali mesmo. O meu corpo era um grito latente. O meu coração batia como se soluçasse.

Citação do Livro do Desassossego, de Bernardo Soares

CRÉDITOS

Nuno Viegas: Acabaste de ouvir o segundo de cinco prólogos da série Desassossego, sobre saúde e doença mental. Este chama-se “Não, não, não, não vou conseguir”. Se quiseres ouvir já o próximo episódio, e todos os seguintes, basta fazeres uma contribuição mensal para o Fumaça. Quem nos apoia já tem acesso à série completa de 13 episódios. Vai a fumaca.pt/contribuir e ajuda-nos a ter a primeira redação profissional portuguesa totalmente financiada pelo público.

Este episódio foi escrito pela Margarida David Cardoso, que fez a entrevista que lhe dá origem. O Bernardo Afonso compôs e interpretou a banda sonora original, fez a edição e o desenho de som e é ainda a voz que ouves a recitar excertos do Livro do Desassossego, de Bernardo Soares. O Pedro Miguel Santos fez a edição e revisão de texto. Eu, Nuno Viegas, fiquei com a verificação de factos. A Joana Batista criou a identidade visual. A Maria Almeida e o Ricardo Esteves Ribeiro, a estratégia de marketing. O Fred Rocha fez o desenvolvimento web. Todas estas pessoas participaram na construção coletiva da série. Podes encontrar em fumaca.pt a transcrição de todos os episódios, fontes, documentos e imagens relacionadas. Fazem ainda parte da equipa Fumaça: Danilo Thomaz e Luís Marquez.

A produção desta série foi parcialmente financiada por bolsas de apoio ao jornalismo de investigação da ARIS da Planície – Associação para a Promoção da Saúde Mental, do Sindicato dos Jornalistas, em parceria com a Roche e da Fundação Rosa Luxemburgo. Podes ver os contratos em fumaca.pt/transparencia.

Até já.

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