Episódio 6/13

A fila do pão

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TRANSCRIÇÃO

Nuno Viegas: Olá. Eu sou o Nuno Viegas. E tu estás a ouvir o sexto episódio de Desassossego, uma série Fumaça sobre saúde e doença mental. Antes de começar este episódio, podes ouvir os cinco prólogos que abrem esta série. Estão disponíveis onde quer que estejas a ouvir-me. Isto foi escrito para ser ouvido com auriculares ou auscultadores. Fica a recomendação.

Vamos falar de suicídio, daqui a nada. Isso pode fazer-te sentir algo que não esperas. Se estiveres em perigo imediato, em Portugal podes ligar ao 112. Caso tenhas sintomas depressivos, o SNS 24 tem um serviço de acompanhamento psicológico no 808 24 24 24. Ainda há na transcrição deste episódio, em fumaca.pt, o contacto de várias linhas de apoio não governamentais. Também tens lá um glossário.

Dito isto, vamos ao episódio. Fica com Margarida David Cardoso.

I

Margarida David Cardoso: O círculo é perfeito, rigorosamente simétrico. As paredes completamente arredondadas e brancas. Não há sequer arestas nas superfícies dos bancos de pedra, assentes em betão, ou nos vãos das portas. José Maria Nepomuceno, o arquiteto, desenhou-os assim para que ninguém fosse bem sucedido ao tentar magoar-se.

Todo o edifício, rés-do-chão, se vira para um pátio a céu aberto, fechando-se em praça. De qualquer sítio, se pode vigiar ou ser vigiado. Os bancos esperam à porta de celas numeradas, protegidos por um alpendre de ferro e zinco. 

As portas de madeira são muito grossas, pintadas de verde. Dão para celas exíguas, que se fecham com tranca de ferro. É possível ver para dentro através de um óculo circular cravado na porta, que costuma ter, um pouco mais abaixo, uma portinhola para passar comida. Lá dentro, uma cama de metal, uma mesa-de-cabeceira, uma cadeira, um balde. No passeio em frente aos quartos, alguém desenhou estrelas no chão. Fotografias do final dos anos 60 mostram gaiolas de pássaros penduradas no tecto. E chegaram a cultivar-se pequenas hortas no pátio.

Neste sítio, até outubro de 2000, funcionou a enfermaria prisional do Hospital Psiquiátrico Miguel Bombarda – a 8.ª enfermaria, o Pavilhão de Segurança. Um lugar de exceção, acabado de construir em 1896, para “recolher e tratar” os chamados “alienados criminosos ou particularmente difíceis” da região de Lisboa. Os “loucos perigosos”. Pessoas que a Justiça considerou inimputáveis, que não podiam ser responsabilizadas pelos seus crimes por não terem capacidades para avaliar esses atos, e aquelas que adoeceram já presas. Pessoas que até então viviam na Penitenciária Central de Lisboa passaram a habitar um local pensado para assistir à sua condição de saúde.

O Miguel Bombarda foi o primeiro hospital psiquiátrico português. Fundado em 1848, num antigo convento, começou por ser Casa de Saúde de Rilhafoles. E foi um avanço civilizacional. Antes, a falta de condições para tratar os doentes mentais em Lisboa era tal que o duque de Saldanha, então presidente do Conselho de Ministros da rainha D. Maria II, os mandou retirar das duas enfermarias onde viviam, naquele que é hoje o Hospital de São José. Descreveu as condições que viu como piores do que “prisões de feras em todos os pátios de bichos”.

Em 1911, o hospital toma o nome de Miguel Bombarda, o psiquiatra que dirigiu a instituição e pegou naquele “armazém desordenado de alienados” para o transformar “num hospital psiquiátrico”, como disse Almeida Amaral, diretor do estabelecimento por altura do seu centenário. 

Miguel Bombarda foi determinante no desenvolvimento da psiquiatria portuguesa e do hospital, pensando nele um laboratório, que foi o centro de Histologia e Anatomia Patológica, uma sala de hidroterapia, um museu e uma oficina fotográfica. Escreveu em 1894: “O manicómio é […] asilo pelos incuráveis que abriga, prisão pelos doidos perigosos ou criminosos a quem tolhe a  liberdade, oficina pelo trabalho que exige a uma grande parte da sua população, laboratório pela ciência que é obrigado a produzir, e até quartel pela rigorosa disciplina que tem de  impor, e finalmente [é] hospital.” 

Durante décadas, as pessoas que ali se internavam eram chamadas “alienadas”. Gente de compleição estranha, violenta, indomável e perigosa. Homens e mulheres vistos como seres desprovidos de quaisquer possibilidade de razão ou discernimento; de capacidade ou génio. “Espíritos desvairados.” Estorvos ao progresso e à ordem. 

O que obrigava a que todo o contacto com a sociedade devesse ser evitado. Em registos públicos, perdiam muitas vezes os nomes, a identidade, como se deixassem de pertencer às suas famílias e à sociedade. Eram reduzidos ao diagnóstico, perdendo quase tudo o resto. Como Joaquim, de apelido A., 22 anos, classificado assim:

Ricardo Esteves Ribeiro: “Caldeireiro. Craneo ogival. Fronte estreita. Arrastado da fala. Nível intellectual baixo. Ataques epilépticos.”

Margarida David Cardoso: É a identificação que dele deixou o psiquiatra Luiz Cebola que, no início do século XX, estudou poemas, textos e cartas escritas pelos internados no hospital psiquiátrico, e os reuniu no livro Almas Delirantes. Ou Jacyntho E., “20 anos, trabalhador”.

Ricardo Esteves Ribeiro: De “craneo muito obliquo e pequeno em relação à face. Lóbulo da orelha direita, adherente. Maxilla inferior forte”.

Margarida David Cardoso: Ou Joaquim P. R., “40 anos, professor particular de instrução primária”.

Ricardo Esteves Ribeiro: “Loucura epiléptica. A maxilla inferior extremamente avançada desloca-se com facilidade. Vesgo do olho direito que converge para dentro. Rosto muito comprido, em desproporção com a cabeça.”

Margarida David Cardoso: Compreendia-se ainda pouco sobre a natureza e as causas das doenças mentais. Os pareceres clínicos “misturavam conceitos médicos e juízos morais”. Juntavam-se sintomas psiquiátricos com características e doenças físicas. Havia um interesse quase folclórico pela bizarria, o disforme, o diferente. As pessoas eram fotografadas, muitas vezes nuas, como forma de dar a ver os traços, as marcas físicas e anatómicas da sua degenerescência. Podiam ser “deformações” no formato do crânio, do nariz, das mandíbulas, atrofias musculares e “anomalias dos órgãos genitais”, mas também a forma errática como falavam, os impulsos incontroláveis e as “perversões sexuais”. Essas marcas eram, na psiquiatria europeia do século XIX, chamadas de estigmas.

E, durante muito tempo, pensava-se que as doenças mentais eram incuráveis e nada se podia fazer para as prevenir. Doentes eram abandonados dentro destes enormes asilos isolados da sociedade, mesmo depois da alta clínica. Armazéns onde se arrumavam pessoas sem sítio para onde ir – a não ser a rua ou a cadeia – e ali permaneciam anos a fio, quando não para toda a vida. Era difícil ocupar esse tempo infinito. 

Ricardo Esteves Ribeiro: “O manicómio é um cemitério sem sepulturas, onde os mortos passeiam o seu infortúnio.”

Margarida David Cardoso: Se dos internados de há pouco sabemos o primeiro nome, deste o psiquiatra Luiz Cebola deixou apenas escrito, em 1925, o diagnóstico: psicopata com sífilis. De uma outra pessoa, classificada como “demente catatónico paranóide”:

Ricardo Esteves Ribeiro: “Não degosto da vida do manicómio, porque um doido, se não tem direitos, também não tem deveres: é zero.”

Margarida David Cardoso: De um outro “doente sifilítico”:

Ricardo Esteves Ribeiro: “Eu sou um novo Cristo, porque já fui crucificado n’um colete de forças!”

Margarida David Cardoso: “Dum débil mental”:

Ricardo Esteves Ribeiro: “Na minha terra, disia o meu irmão que eu vegetava; mas aqui… animalejo.”

Margarida David Cardoso: Com o tempo, a sobrelotação e escassez de recursos devolvem ao Miguel Bombarda o rótulo de “depósito de alienados”. Em fotografias tiradas no final dos anos 60, por um jovem médico chamado José Fontes, vêem-se filas de homens sentados ou deitados ao sol; alguns que vagueiam, outros que espreitam sobre o muro os edifícios que crescem no mundo lá fora. Vivem em condições descritas como desumanas, aquartelados e vigiados permanentemente. 

RTP Arquivos, 1976
José Tropa, psiquiatra: Talvez, principalmente, a razão fundamental para esta segregação, para este isolamento do doente mental da sociedade, seja o medo que a Humanidade sempre teve de enlouquecer.

Margarida David Cardoso: Esta hipótese, que o médico José Tropa levantava no programa sobre saúde que tinha nos anos 70 na RTP, alinha com alguns dos escritos do filósofo Michel Foucault, que dedicou parte da sua atenção académica à análise crítica da psicologia e da psiquiatria e à sua História da Loucura. Como este de 1954: “A nossa sociedade não quer reconhecer-se num doente que ela rejeita ou encerra; no próprio momento em que diagnostica a doença, exclui o doente. Logo, as análises dos nossos psicólogos e sociólogos – que fazem do doente um desviante e buscam a origem do mórbido ao anormal – são, acima de tudo, uma projeção de temas culturais.”

Quando o escritor e psiquiatra António Lobo Antunes decide escrever sobre o hospital onde trabalhava, por onde tinham passado também o pai e tio-avô, chama a esse livro, de 1980, o Conhecimento do Inferno. E descreve-o assim:

Ricardo Esteves Ribeiro: “Os doentes do Hospital Miguel Bombarda […] não soluçam, não protestam, não choram: são cadáveres cinzentos, pobres cadáveres castrados que respiram de leve, entretecidos de calmantes, gordurosos de comprimidos e cápsulas, movendo-se em lentos acenos de algas de compartimento em compartimento, a arrastar as alpercatas nas tábuas, côncavas de uso, do soalho. […] Em consequência da falta de água, os autoclismos não funcionam, os dejectos acumulam-se nas retretes, a urina apodrece, a espumar, nos urinóis […] O cheiro ia e vinha na sala, mas os psiquiatras suportam corajosamente sem pestanejar, sem mudar de expressão, o cheiro dos outros, a loucura dos outros, o desespero, a ansiedade, a agonia e o medo dos outros.”

Margarida David Cardoso: Em 1988 – quase dez anos depois da criação do Serviço Nacional de Saúde –, o Miguel Bombarda tem perto de 700 internados. É o hospital a que podem recorrer um milhão e 700 mil habitantes do sul do país. Uma reportagem da RTP à época diz que tem um enfermeiro para cerca de 70 a 80 doentes. Psiquiatras são poucos.

RTP Arquivos, 1988
Jornalista: Por falta de acompanhamento e de assistência adequados, os doentes sofrem uma segunda alienação, pedindo esmola, deitando-se no chão, apanhando beatas, e tudo porque não há um esquema de ocupação dos tempos livres.

Margarida David Cardoso: Nesta altura, apenas uma pequena parte das pessoas tem acesso aos serviços públicos de saúde mental. É difícil aceder a consultas, especialmente fora dos grandes centros urbanos, o que aumenta a ida à urgência, em situações limite, e o internamento, muitas vezes feito a centenas de quilómetros de casa, em enormes depósitos de pessoas. Na segunda metade do século XX, esta ordem das coisas, este mundo dos manicómios, deixa de bater certo com o saber científico. O aparecimento de medicamentos psiquiátricos modernos, nos anos 50 e 60, revoluciona a forma como são tratadas as doenças mentais, abrindo a porta ao tratamento mais próximo, na comunidade. Caminha-se para um modelo cada vez menos centrado no hospital. José Tropa, de novo, resume. 

RTP Arquivos, 1976
José Tropa: Os modernos métodos de tratamento […] não só modificaram quase totalmente o comportamento dos doentes como também o prognóstico, a esperança de cura dessas doenças psiquiátricas […] fazendo com que o doente seja mais próximo de nós.

Margarida David Cardoso: Em poucas décadas, a psiquiatria muda drasticamente. Passa a ter respostas mais eficazes para mais gente e torna-se possível prevenir doenças, conter a deterioração e perda de capacidades, evitar a chegada a estados crónicos, reabilitar e reinserir as pessoas arrancadas do seu meio. Interná-las em instituições anos a fio que fora, durante décadas, vista como a única forma de controlo sobre a doença mental, é ultrapassada pela ideia de tratamento junto de casa ou mesmo em casa. A reabilitação torna-se possível e desejável. E isso serve de alavanca para que, nos anos 80, vários países europeus iniciem os seus esforços de desinstitucionalização e evoluam para um novo paradigma nos cuidados de saúde mental.

RTP Arquivos, 1992
Jornalista: Os compromissos existentes desde abril de 1985, data em que os ministros da Saúde reunidos em Estocolmo na 2.ª Conferência de ministros europeus de Saúde, deram particular importância à saúde mental e ao desenvolvimento de programas diversificados de prevenção, entre outras medidas.

RTP Arquivos, 1994
Jornalista: Todos concordam que o importante agora é criar uma rede de reabilitação e reintegração de doentes que sofrem de perturbações mentais, sejam elas mais ou menos graves.

Margarida David Cardoso: Quando o regresso a casa não é possível, desenham-se possibilidades de vida em pequenas residências ou lares adequados às necessidades de cada pessoa. Entendem-se os hospitais como sítios de doença aguda, não lugares para viver.  Em Portugal, a necessidade deste novo paradigma motiva anos de discussões, avanços e recuos. 

RTP Arquivos, 1990
Jornalista: No fundo, é a velha questão da política de saúde mental […]: que tratamento, que prevenção, o que é mais eficaz, mais humanizado e menos dispendioso? Os clássicos estabelecimentos como o Conde de Ferreira e o Júlio de Matos? Ou a psiquiatria social, as ações comunitárias, representadas pelos Centros de Saúde Mental? No meio, variadíssimas nuances.

Margarida David Cardoso: Criam-se grupos de trabalho, fazem-se vários relatórios, conferências e promessas. A reforma dos cuidados de saúde mental assume várias formas.

RTP Arquivos, 1992
José Miguel Caldas de Almeida: E o que é preciso, hoje que nós sabemos, é que haja uma estrutura – chame-lhe o nome que quiser – em que numa fase o doente possa ser internado no hospital geral, e noutras fases possa ter hospitais de dia na comunidade, perto de onde as pessoas vivem, possam ter estruturas de reinserção profissional, etc. 

RTP Arquivos, 1990
Representante da Ordem dos Médicos: Não há legitimidade para uma única escola de psiquiatria se transpor para uma política de saúde mental e configurá-la totalmente. […] Só motivos políticos, no mau sentido da palavra, é que têm permitido que isso aconteça. 

RTP Arquivos, 1992
Jornalista: Hoje, mais de 300 médicos, assistentes sociais e enfermeiros estiveram a debater o que eles chamam de crise na saúde mental.

RTP Arquivos, 1995
Jornalista: Hospitais como o Conde Ferreira têm sido alvo de polémica: há quem defenda estruturas mais leves, a integração social, uma prevenção e uma terapia próxima da família.

Arquivo do Parlamento, debate parlamentar, 1999
Maria de Belém Roseira, então ministra da Saúde: Não vim aqui traçar um cenário de «oásis», porque os problemas, além de serem muitos e enormes, radicam em questões estruturais e complexas que implicam mudanças de atitudes e de comportamentos difíceis de alcançar em prazo curto.

Arquivo do Parlamento, debate parlamentar, 1999
Maria José Nogueira Pinto, então deputada do CDS-PP: Julgo que a preocupação subjacente a todas as bancadas […] é exatamente a alternativa a um sistema que foi considerado ultrapassado não estar construída […]. Ou seja, o doente mental é atirado para uma comunidade, e essa comunidade é um conceito vago, um conceito abstracto […]. Isso significa que ele pode ser atirado para coisa nenhuma.

Arquivo do Parlamento, debate parlamentar, 1999
Jorge Roque Cunha, então deputado do PSD: A demagogia de prometer apartamentos terapêuticos para todos, numa realidade de terríveis constrangimentos financeiros e de recursos humanos, não nos parece séria.

RTP Arquivos, 2000
Luís Gamito, psiquiatra e então diretor clínico do Hospital Júlio de Matos: O Júlio de Matos já há muito tempo que está para acabar. E ele não acabou ainda. […] O Júlio de Matos foi inaugurado em 1942 quando se dizia que ele ia substituir o…
Maria Elisa Domingues, jornalista: O Miguel Bombarda…
Luís Gamito: …o Hospital Miguel Bombarda…
Maria Elisa Domingues, jornalista: Exatamente.
Luís Gamito: …que ia acabar. 

Margarida David Cardoso: Em 1998, desenha-se uma Lei de Saúde Mental que verte para o papel a intenção de reformar os cuidados para os prestar “no meio menos restritivo possível”. Entende a saúde mental como algo que se cuida, trata e reabilita na comunidade, sempre que possível nos centros de saúde, em visitas domiciliárias, no trabalho, nas escolas. Com psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, e não só médicos. Os hospitais como locais reservados para estabilizar e acompanhar a doença mental grave. 

Mas é preciso esperar até 2006 pela definição dos moldes em que se faria esta reforma, 20 anos depois dos compromissos assumidos na Conferência de ministros europeus de Saúde, em Estocolmo.

O Governo reúne, então, duas dezenas de especialistas que desenham um Plano Nacional de Saúde Mental, com medidas concretas para implementar esta ideia de uma nova forma de tratar problemas mentais. O Conselho de Ministros aprova-o, em 2008, com a intenção de o ver concretizado em menos de uma década, até 2016.

Em julho de 2011, mais de 160 anos depois da abertura, saem do Hospital Miguel Bombarda os últimos doentes.

Antena 1, 2011
Jornalista: Fechou o primeiro e mais antigo hospital psiquiátrico português. […] Foi convento, foi manicómio […] Teve ala prisional, teve doentes condenados por crimes e outros abandonados pelas famílias.

SIC, 2011
Jornalista: Restam menos de 30 doentes. Vivem no Hospital Miguel Bombarda. Alguns há 40 anos.

Margarida David Cardoso: E, até ao final de 2012, fecham-se mais dois dos seis hospitais psiquiátricos portugueses. O Centro Psiquiátrico de Recuperação de Arnes, em Coimbra, e…

RTP, 2012
Jornalista: Também o Hospital Psiquiátrico de Lorvão, entre Penacova e Coimbra, vai fechar as portas.

Margarida David Cardoso: E um quarto, o Hospital Sobral Cid, é integrado no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. Define-se como reorganizar os serviços; abrem-se consultas, internamentos e urgências psiquiátricas em hospitais que não as tinham; lançam-se as bases para a criação de cuidados continuados para tirar os doentes mais graves dos hospitais e avançam os primeiros projetos-piloto.

Há urgência, pois não é exagero considerar as doenças mentais o maior desafio da saúde do século XXI, como têm feito uma série de relatórios internacionais. A depressão, em particular, é, há décadas, uma das principais causas de incapacidade no mundo. No meio disto, Portugal é dos países europeus com maior prevalência de perturbações psiquiátricas. Estima-se que quase um quinto da população tenha uma doença mental.

Mas 15 anos depois do lançamento político de um Plano Nacional de Saúde Mental, que vem de três décadas de discussão e que deveria ter sido implementado até 2016. Ele continua por cumprir. Falharam-se objetivos e metas durante anos a fio. Depois de revistos erros e alargado o prazo até 2020, caducou novamente. A saúde mental só encontrou, por causa de uma pandemia, a visibilidade pública que lhe permitiu conquistar algum do investimento e das mudanças estruturais que reclamou durante décadas.

Governantes e responsáveis da área dizem que nunca como agora houve organização e dinheiro para avançar com uma protelada reforma. Ela retomou a marcha à medida que fomos escrevendo esta série, que tenta olhar para um passado recente de promessas semelhantes. Esperança talvez tenha passado a ser uma palavra mais realista. Em 2021, o governo inscreveu a conclusão da Reforma da Saúde Mental como uma das linhas do Plano de Recuperação e Resiliência, a concretizar até 2026. O PRR é uma bolha de oxigénio, que não cobre todas as necessidades da saúde mental, diz o atual coordenador das políticas nesta área. Paga paredes, não recursos humanos. O investimento público terá de duplicar dentro de alguns anos. Nos que já passaram – que talvez nos ensinem a olhar para os que aí vêm – há algo que sustentou um lugar comum de falta de investimento e de visibilidade.

Não podemos contar esta história sem antes falarmos de estigma.

Este é o episódio seis: A fila do pão. Seja toda a gente bem-vinda ao Fumaça.

II

Sara Miguéns: O meu pai era um homem… Ele só tinha a 4ª classe, mas era extremamente culto. O meu pai lia imenso, imenso, imenso, imenso. Ou seja, toda a vida ele fez um esforço para colmatar aquilo que ele não aprendeu na escola, porque não pôde, porque teve que ir trabalhar como era apanágio naquela altura. Para colmatar isso lendo imenso, sabendo falar sobre vários temas, via programas de televisão para se instruir. Infelizmente nunca conseguiu lidar pessoalmente com o facto de não controlar a cabeça dele. Eu demorei muito tempo a dormir sozinha, no meu quarto. Anos. Imagina: eu tinha 13 anos e não queria dormir sozinha. Tinha medo. E minha mãe, a dada altura, achou “Bem, vamos ter que levar a Sara ao psicólogo”. Eu lembro-me do meu pai ter discussões de meia-noite com a minha mãe pela ideia de me levar a um psicólogo. “Psicólogo? Mas a miúda não tem nada? Mas porque é que vamos à psicóloga? Entendes?” Não era só para ele. Era com o conceito geral de tu não teres controlo sobre a tua cabeça, disso ser um não tema. “Se eu não controlo, passo a controlar.”

Margarida David Cardoso: Esta é Sara Miguéns, na altura desta entrevista com 30 anos. Teria uns 13 ou 14 quando o pai teve uma depressão grave. Foi a primeira vez que ela pensou no assunto. Foi pesquisar, ler, perceber o que era aquilo e porque é que era aquilo. E as depressões foram-se repetindo. O pai esteve algumas vezes de baixa. Quando piorava, ia à médica de família. E, por duas ou três vezes, foi acompanhado por um psiquiatra. 

Sara Miguéns: Muitas das nossas discussões eram sobre “Pai, olha, eu acho que tu estás um bocado estranho. Se calhar já não vais ao psiquiatra há muito tempo. Se calhar estás a tomar a mesma medicação, se calhar devias ir rever”. Ele ficava super ofendido comigo. Mesmo. E tinha discussões enormes comigo: “Eu não sou maluco. Eu não vou ao psiquiatra”, aquelas coisas. 

Margarida David Cardoso: Em 2018, tinha o pai 64 anos, Sara lembra-se particularmente de uma nova chamada de atenção e uma nova discussão. O pai estava com um comportamento estranho, a dizer coisas despropositadas, fora do que era habitual nele. Até que um dia, em julho, nada do que dizia fazia qualquer sentido. Ligou-lhe a meio de um dia de trabalho.

Sara Miguéns: Eu ouvia os carros a passar, ele estava completamente desorientado, a dizer que queria sair de casa e que não voltava para casa e que eu tinha que lhe fazer uma mala e levar algum dinheiro, porque ele não ia voltar para casa. Eu juro-te que, na altura, achando que ele estava meio desaustinado, mas que podia ser por ter bebido; imagina, por ter tido aqueles vaipes de meia idade “Pronto, vou-me separar. Bebi aqui um bocado mais, percebi que a minha vida não faz sentido, vou-me separar.” Pronto, achei que fosse uma coisa deste género. E, nesse dia, lá fiz aquele papel super ingrato de chegar a casa dizer à minha mãe. “Olha mãe, aparentemente o pai não quer vir para casa.” Uma coisa do além. Lá fizemos uma mala e eu lá fui ter com ele ao carro, perto da nossa casa. 

Eu entrei no carro, ele estava assim meio sério. E eu disse: “Olha, estão aqui as coisas, também te pus algum dinheiro. Como tu não queres ir para a Charneca – que era a nossa casa de férias – reservei-te hoje uma noite no hotel.” Amanhã segue para a Charneca. Ele disse-me: “Está bem, não te preocupes com isso. Eu já liguei a um amigo e vou ficar em casa de um amigo. Mas não te preocupes. Está bem, vamos falando.” Assim, super escorreito.

Entretanto, nessa noite, começou-me a telefonar. Eu percebi que ele não estava em casa de amigo nenhum. Percebi que ele estava na rua. Fui buscá-lo à rua. Fui levá-lo ao tal hotel que tinha reservado. Às cinco e tal da manhã, ligaram-me do hotel a dizer que ele tinha saído e que não o tinham conseguido parar. Eu ligava-lhe e ele não me atendia. Portanto, eu nem sei por onde é que ele andou.

Margarida David Cardoso: No dia seguinte de manhã, Sara continuava sem encontrar o pai. Ele não atendia, mas, pelo caminho, outras pessoas iam encontrando o telemóvel, viam que a filha ligava à procura dele e davam-lhe indicações.

Sara Miguéns: Ligaram-me da Procuradoria-Geral da República. Ligaram-me do Campus da Justiça. Ligaram-me deste tipo de sítios. Porque o meu pai, basicamente, o que se passou foi que o meu pai encarnou outra personalidade. O meu pai sempre foi muito político e tinha um posicionamento de Abril muito vincado. Era um grande defensor da liberdade. E portanto ele encarnou ali uma espécie de Salgueiro Maia e andava por todas as instituições do país, na cabeça dele, a denunciar corrupções. E ele estava… Das vezes que ele me atendia o telefone, ele estava completamente fora dele. Completamente.

Margarida David Cardoso: Sara andou horas para trás e para a frente. Quando chegava a um sítio onde lhe diziam que o pai estava, ele já tinha ido embora. Terá chegado a andar com o carro, depois a apanhar táxis.

Sara Miguéns: Houve um taxista que me disse para onde é que o estava a levar, a dada altura, e que o ia deixar não sei onde. Não o conseguiu deixar não sei onde, porque o meu pai deve ter ouvido a conversa e fugiu. Mas pronto, lá foi perto de não sei onde, eu fui parar a não sei onde, dei ali umas voltas e acabei por encontrá-lo. Mas só o encontrei porque ele achou que lhe tinham roubado o carro. Porque ele tinha deixado o carro num sítio naquela noite, esqueceu-se que tinha ido de madrugada buscá-lo e levá-lo para outro sítio, então, achou que lhe tinham roubado o carro. E por causa disso teve uma quebra. E, então, parou. E foi só por isso que eu o conseguiu encontrar, se não eu acho que ele tinha continuado a andar. 

Margarida David Cardoso: O pai de Sara tinha um daqueles relógios que contam os passos e, já de manhã, a filha viu que tinha andado vários quilómetros. O que se passou com ele naquela noite foi um episódio psicótico, um surto – o primeiro, que Sara saiba. Este é um estado de alteração do pensamento e da percepção que pode provocar este tipo de mudanças de comportamento, delírios, alucinações.

Sara Miguéns: Aí foi mau, sabes? Foi pior do que… Foi muito mau. Quando eu olho para a pior imagem que eu tenho do meu pai é aquela, porque… é uma coisa física. O teu corpo muda quando tu estás em surto: a maneira como tu andas, a maneira como tu pões os teus ombros, a maneira como tu olhas… és outra pessoa. 

Margarida David Cardoso: Sara levou o pai às urgências de um hospital público. Depois de vários exames que descartaram a possibilidade de ser um problema neurológico, esteve dois dias internado na psiquiatria. O episódio psicótico foi algo completamente extremado, que não podia ser ignorado. O diagnóstico de doença bipolar veio pouco depois. E explicava os estados emocionais intensos; os períodos, de dias, de semanas, em que estava profundamente deprimido: em que deixava de comer, de se querer levantar, ficava apático. 

Sara Miguéns: E depois, se fosse preciso, andava dias inteiros em que tu chegavas a casa e falava, falava, falava, e queria dançar e eu não sei o quê… E eu uma pessoa ficava “Ah, está contente, está animado. Que bom” – como a nossa preocupação era sempre que ele não estivesse deprimido, quando ele estava assim contente “Ah, fixe, porreiro”. Às vezes era um bocado demais, mas percebes… Então, sim, variava muito. Agora que eu olho para trás consigo ver que sim, que variava muito.

Margarida David Cardoso: Estas eram fases de mania: de humor anormalmente feliz ou irritável, de euforia; em que a pessoa se sente o topo do mundo, fica hiperativada, fala muito, pensa de forma acelerada, dorme menos, tem reações excessivas. Flutuações de humor que podem durar semanas ou meses. Depois do internamento e do diagnóstico, o pai de Sara foi encaminhado para consultas de psicoterapia, que nunca tinha feito, e começou a ser seguido em psiquiatria no Hospital Júlio de Matos, no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa. Os primeiros meses foram muito difíceis. O tratamento para prevenir novas crises e estabilizar a doença bipolar exige um equilíbrio complexo na medicação. Os medicamentos atuam para corrigir falhas na forma como o cérebro regula o humor e os pensamentos. É preciso combater o humor depressivo, sem deixar a pessoa resvalar para os píncaros da euforia. E isso exige, muitas vezes, várias tentativas e ajustes.  Nesse processo, o pai de Sara foi muitas vezes às urgências.

Sara Miguéns: Porque se sentia péssimo ou porque sentia que, de alguma maneira, estava a começar a ficar demasiado eufórico.

Margarida David Cardoso: Mas era ele que ia?

Sara Miguéns: Aí sim. Aí a minha mãe já notava. Neste último ano, já não foi aquela conversa de “Já não quero ir. Não vou”. Isso nunca mais aconteceu. Eu acho que ele se lembrava daquilo que tinha acontecido. E acho que ele queria evitar a todo o custo que aquilo acontecesse mais uma vez. Havia ali uma parte consciente da cabeça dele que, infelizmente, foi-se tornando mais pequena, mas houve ali uma parte consciente que tentou, que fez o que pôde para se manter.

III

Margarida David Cardoso: Aceitar que se tem uma doença mental grave é muito difícil. Uma psicóloga com quem falei para esta série caracteriza-o como uma das coisas mais complicadas de se fazer. É intrinsecamente difícil perceber que se está doente. A chamada falta de insight é, aliás, um dos sintomas mais comuns de determinadas fases da doença bipolar e outras doenças mentais, assim como a tendência para recusar o tratamento.

Sara Miguéns: E eu acho que também é uma construção pessoal daquilo que é ser um homem. -E eu acho que isso tem a ver com a educação, tem a ver com os valores que passaram, tem a ver com a altura em que tu viveste. Eu acho que nós continuamos a criar uma sociedade em que é tranquilo uma mulher ser frágil – até é expectável que uma mulher que tenha ali um toque de fragilidade – e que um homem seja o provider, ele providencia. “Portanto, como assim ele está triste? Ele não pode estar triste.” Ele providencia. Quanto muito a mulher está triste e ele consola. Não é o consolado.

Margarida David Cardoso: Isso é uma prisão.

Sara Miguéns: Eu acho que sim, eu acho que sim. O meu pai reformou-se. Depois teve um problema, teve tromboflebite. Portanto sentiu que, de alguma forma, a saúde física também estava afetada. Na sequência disso, ele fazia karaté, era cinturão preto, deixou de poder fazer karaté. Ou seja, o que eu sinto que ele – e, claro, isto são processos mentais muito complexos, no final do dia, nós vamos sempre concluir que é uma doença e que nada disto é suficiente para o desfecho… Mas quando tu analisas isto tem muito a ver com o teu constructo do que é um homem e do que é tu seres um homem e seres um homem inteiro. E eu acho francamente que ele sentiu a determinada altura, na sequência destes fatores todos, que não o era. E portanto que não fazia sentido.

Margarida David Cardoso: O segredo em que muitas pessoas vivem a sua doença mental é outra forma de prisão. E não tem que ser uma doença catalogada, com diagnóstico. Há pessoas com muito sofrimento, que têm dores emocionais e físicas associadas à ansiedade e depressão, que, por não atingirem uma intensidade ou duração suficientes, não encaixam nos critérios médicos de uma doença psiquiátrica. Nestes casos, pode dizer-se que as pessoas sofrem de problemas psicológicos ou emocionais. 

O estigma em relação à doença mental não é nada de físico como as deformações no corpo a que se chamavam de estigmas no século XIX. Mas também não é algo esotérico ou intangível. Tem consequências palpáveis.

Faz com que as pessoas não falem sobre o assunto.

Joana Lima: Os problemas de saúde mental ainda não são doenças em que tu possas dizer “Eu tenho isto” e as pessoas aceitem que é uma doença.

Margarida David Cardoso: Faz com que escondam.

Gonçalo Pereira: Felizmente porque não me foi dada a opção de esconder – eu digo felizmente porque se eu tivesse tido ocasião, a ocasião de me esconder eu ter-me-ia escondido. 

Margarida David Cardoso: Faz com que desvalorizem.

Cláudia R. Sampaio: Estás é a queixar-te. És é mimada.

Margarida David Cardoso: Faz com que as pessoas doentes se sintam sozinhas e incompreendidas.

Pedro Coquenão: E acho que é um bocado de medo, é medo de seres posto de parte. No limite, é medo de te tornares inviável e de não conseguires sobreviver.

Margarida David Cardoso: E é um enorme obstáculo à procura de ajuda. 

Nico: Os meus pais, desde sempre, têm uma espécie de alergia a psicólogos, sempre tiveram… Então, durante muitos anos eu não procurei ajuda e também os meus pais deixaram a coisa andar. 

Margarida David Cardoso: A forma como o estigma inibe a procura de ajuda é particularmente clara no caso de Beatriz Reis.

Beatriz Reis: Eu tenho um histórico de doença mental na família. E a minha avó deveria ir a um psicólogo ou psiquiatra ao longo da vida. E o que a minha avó diz “É os nervos”. A minha avó vai ao neurologista. E nós fartamo-nos de dizer “Não é os nervos, avó. Isso é a cabeça. O que tens não se resolve a ir ao neurologista”. Mas ela admitir que pode ser um problema mental é ela dizer que é maluquinha, não é? 

Margarida David Cardoso: Beatriz é natural de Beja. Quando falamos, tinha 25 anos, era assessora de comunicação no Banco Mundial.

Beatriz Reis: A minha avó no outro dia, eu por acaso até lhe admiti que ia ao psicólogo, e ela olhou para mim com um ar muito estranho e disse “Mas e o quê? Eu falo sobre a minha vida com uma pessoa? Para quê? O que é que a minha vida tem?” E eu “Ó ‘vó, mas o objetivo é esse. É tu conseguires perceber o que é que está por detrás das coisas que sentes” E ela só olhava para mim. É muito também aquela coisa que a minha avó, e muitas avós viveram muito, de “Quem é ela na fila do pão?” Era a mulher, a pessoa menos importante na dualidade mulher-marido. Qual é a importância da vida dela para ela falar com um psicólogo sobre essa vida? O que é que ela tem de especial para falar sobre a vida dela? Também é muito essa noção de inferioridade com que viveram ao longo dos anos, que não consegue conceber a ideia da vida dela ser importante o suficiente, e os problemas mentais dela serem importantes o suficiente, para alguém a ouvir. E para alguém os analisar. É nervos, pronto.

Margarida David Cardoso: Desde pequena que Beatriz tem consciência de que a sua cabeça trabalha muito depressa e é difícil ter descanso. Tinha momentos depressivos na adolescência, crises de ansiedade que iam e vinham. A mãe sofre de depressão. E as duas sempre partilharam uma certa luta para explicar à família que isso era algo mais concreto do que “adoecer dos nervos”.

Uma pessoa com doença mental tem, em muitos casos, um desequilíbrio dos seus neurotransmissores cerebrais – as substâncias que as células do cérebro usam para comunicar entre si, que fazem os pensamentos fluírem. Um desses neurotransmissores que tem efeito no humor é a serotonina, sobre a qual atuam os antidepressivos.

Beatriz Reis: A vocês dói-vos… têm um problema nos olhos vão ao oftalmologista. Pá, eu tenho um problema nos meus níveis de serotonina e vou ao psicólogo e ao psiquiatra. Pronto. É um distúrbio. É um transtorno.

Margarida David Cardoso: É uma doença, sim.

Beatriz Reis: É uma doença. Até me custa a mim dizer doença. Eu própria fico… Porque quando eu digo as palavras “doença mental”, eu própria ativo aqui um estigma em mim, que fico “Uau, doença mental”.

Margarida David Cardoso: Para Beatriz, foi muito complicado aceitar que talvez beneficiasse de ser medicada, durante um período de ansiedade extrema e incapacitante, que fez com que deixasse de conseguir dormir. E, sem dormir, não conseguia fazer nada.

Beatriz Reis: Então, a minha mãe dizia “Tens que ir ao psiquiatra. Vamos falar com ele para teres medicação para dormir”. E eu estava “Não, eu tenho 25 anos. Eu não vou tomar comprimidos para dormir. Eu não vou tomar comprimidos para dormir.” Mas não dormia. E tive que respirar e ir ao psiquiatra. A um psiquiatra recomendado pela minha psicóloga, privado. Eventualmente comecei a melhorar a parte do dormir, comecei a dormir, mas a minha ansiedade não melhorou e entrei aqui numa crise depressiva e a minha psicóloga aconselhou começarmos a tomar antidepressivos e falar com o psiquiatra para tomar antidepressivos. Eu estive um mês e tal para falar com ele, porque eu não tinha coragem para dizer a mim mesma que ia tomar antidepressivos. E a minha mãe dizia-me “Tu tens que tomar”; e as minhas amigas diziam-me “Tu tens que tomar”. E eu só pensava “Não, porque eu vou ficar viciada nisto para minha vida”, mas depois levantava-me de manhã e não tinha vontade de estar viva quase. E, então, percebi que tinha que acabar com este estigma e fui ao psiquiatra e comecei a tomar.

Margarida David Cardoso: Um profissional da área faria aqui uma pausa para dizer que o tratamento não passa sempre pela medicação. Especialmente nas doenças mentais ligeiras. E a medicação psiquiátrica é complexa. Nem toda provoca adição. Os sedativos e os ansiolíticos, entre os quais as benzodiazepinas, sim. Estes medicamentos utilizados no tratamento da ansiedade e dos problemas de sono – “os comprimidos para dormir” –, induzem tolerância (torna-se necessário aumentar progressivamente a dose para que ela continue a fazer efeito). E podem provocar também dependência física e psicológica quando usados durante muito tempo. O uso crónico tem mesmo efeitos nas capacidades psicomotoras, aumentando o risco de quedas e de acidentes.

Já os antidepressivos, que atuam no equilíbrio dos neurotransmissores, controlando os sintomas depressivos, não causam este tipo de dependência. O que sublinham profissionais de saúde é que a medicação psiquiátrica atua sobre a forma como a pessoa se sente, e quando bem utilizada, não muda quem ela é. O mesmo fármaco pode ter efeitos muito diferentes de doente para doente. Há uma percentagem significativa que não responde à primeira receita de medicamentos. E, por isso, é necessário tentar vários, fazer combinações e ajustes. Mas ainda haverá um pequeno grupo sobre o qual os fármacos não respondem cabalmente.

Apesar dos enormes progressos na medicação nas últimas décadas, que permitiram tornar doenças com traços psicóticos que antes seriam completamente incapacitantes em doenças crónicas, estes não se traduziram ainda na criação de medicamentos radicalmente diferentes. Há antipsicóticos, por exemplo, usados no tratamento da esquizofrenia e prevenção de episódios psicóticos, que ainda comportam efeitos colaterais muito significativos. É preciso encontrar um equilíbrio ténue entre os benefícios e os efeitos secundários. 

Mas, mais uma vez, o tratamento não passa só, e nem sempre, por medicamentos. Há sofrimento psicológico ligeiro que se pode resolver internamente ou sem necessidade de ajuda especializada. Mas quando esse sofrimento dá origem a problemas mais graves e prolongados do que umas noites mal dormidas, ansiedade ligeira ou uns dias “em baixo”, há várias vias terapêuticas. A psicoterapia foi uma das que mais se generalizou – e dentro dela há diferentes abordagens. É uma forma de, através da conversa, desenvolver estratégias para gerir e travar sintomas, destapar processos mentais inconscientes e alterar padrões de pensamento ou comportamentos. Esse processo é feito por um psicólogo clínico, um psiquiatra ou um enfermeiro especialista com formação numa determinada psicoterapia.

E dependendo da intensidade e do tipo de doença mental ou problema psicológico, há pessoas que arranjam diferentes formas de lidar com o sofrimento. Haverá sempre quem prefira falar com alguém que não conhece, em anonimato. E muitas vezes fá-lo por medo ou por vergonha. E isso é o estigma outra vez.

IV

Margarida David Cardoso: Pode-se apresentar, por favor?
Francisco Paulino: Posso, com certeza. Então, o meu nome é Francisco Paulino e o motivo desta entrevista é porque sou presidente da Associação SOS Voz Amiga já há seis anos. Estou ligado à associação há 23 anos. Comecei como voluntário. Fui à procura de respostas, atendendo a um caso próximo de tentativa de suicídio. Tive… Eu digo a sorte, porque, desde que lá estou, este projeto faz parte da minha vida e é um privilégio continuar por ali. E como fui à procura de respostas, que ainda não encontrei… A única coisa que eu posso dizer é que o sofrimento é abrangente, é transversal. Cada um tem o seu particular. E a solução de um, não dá para os outros.

Margarida David Cardoso: Francisco Paulino é um homem de barba e cabelos brancos, com um enorme sorriso, que se vê mesmo atrás da máscara. É casado, tem dois filhos e um neto que lhe substitui as idas ao ginásio. Trabalhou desde os 16 anos numa empresa portuária, onde chegou a responsável pelo licenciamento e fiscalização de obras. Aproveitou mudanças na empresa para se reformar aos 47 e fazer do voluntariado o emprego a tempo inteiro. 

Falámos em julho de 2020, quando era presidente da SOS Voz Amiga, uma linha de prevenção do suicídio, feito por voluntários. Trabalham com o objetivo de dar apoio emocional pontual a pessoas num momento agudo de sofrimento. Depois de oito anos no cargo, Francisco deixou a presidência da associação em 2022. 

Foi aquele caso próximo de tentativa de suicídio que o trouxe para o voluntariado. Uma pessoa com quem nunca sentiu que havia motivos para se preocupar.

Francisco Paulino: Bem casada, uma profissão que gostava, sem problemas financeiros, duas filhas e, de repente… Depois do caso se dar, começamos a pensar “Olha, afinal, aquela manifestação disto ou daquilo, se calhar, já tinha a ver”. E tudo isso fez uma impressão enorme. Porque é que alguém, que parece ter tudo para ser feliz, e depois toma esta atitude…

Parecemos que estamos bem. Temos amigos, temos família. Sofremos para dentro e não conseguimos pôr cá fora. E foi por aí… Quando descobri que neste serviço se trabalha atendendo, respeitando o anonimato e que isso facilita que a pessoa coloque cá fora tudo o que vai lá dentro. As pessoas escondem. A sociedade também impõe. Também faz alguma pressão para que sejamos todos felizes, com uma vida bem conseguida, um emprego, um bom casamento, tudo em harmonia. Mas isso não é verdade, não é verdade.

Margarida David Cardoso: Francisco atendeu milhares de chamadas ao longo destes anos. Nos primeiros meses da pandemia, o número de contactos quadruplicou. Os voluntários conseguiam atender menos de um quarto das 4000 chamadas mensais que chegavam. Entretanto, houve alguma acalmia. Em meados de 2021, voltaram a atender cerca de 800 chamadas por mês, durante as nove horas de funcionamento da linha.

Como outras linhas telefónicas de SOS, estão dependentes do apoio de privados e do trabalho voluntário. Têm horários limitados e muitas vezes falta de gente, não conseguindo atender todas as chamadas ou operar 24 horas, todos os dias. Desde abril de 2020, na sequência dos impactos da pandemia Covid-19, a Linha SNS 24 disponibiliza um serviço de aconselhamento psicológico permanente, prestado por profissionais de saúde, que também dá resposta a pessoas em crise.

Para a Voz Amiga, ligam maioritariamente pessoas entre os 45 e os 55 anos, sós, que precisam de conversar por uns momentos. Algumas são habituais, como o senhor açoriano que ligava todas as madrugadas antes de ir para a pesca. É uma rotina: pessoas que ligam para linhas de apoio, para o 112, para as rádios locais. 

E muitas chamadas são pedidos de ajuda. De acordo com o Plano Nacional de Prevenção do Suicídio, cerca de 10% dos telefonemas para as linhas de prevenção são pedidos de ajuda de pessoas em risco efetivo de suicídio.

Francisco Paulino: Nós dividimos as chamadas de suicídio em três situações diferentes: aquela mais simples que nós chamamos ideação – a pessoa já pensou, já lhe passou pela cabeça; no patamar seguinte, tem aquelas pessoas já têm um plano – “Eu já sei como é que vou fazer” – e contam-nos. Os primeiros e os segundos facilmente nós conseguimos – não é dar-lhes a volta, mas é fazê-los repensar e desistir. Pelo menos, naqueles momentos. O mais complicado é a pessoa que nos liga e diz: “Eu liguei, mas não preciso de ajuda. Eu só liguei porque quero ter companhia nos meus últimos momentos. Eu tenho aqui tudo preparado e é hoje. É agora.” Mas mesmo estes, se ligaram, é um último pedido de ajuda. A sério. E quantas vezes nós conseguimos que não aconteça naquela noite.

Margarida David Cardoso: Francisco Paulino acredita que muitas pessoas ligam para a linha por preferirem falar com um desconhecido que nunca irão ver. Que não faz perguntas, que não é um amigo, nem um terapeuta. É só alguém do outro lado do telemóvel a ouvir.

Francisco Paulino: Eu uso sempre um… É daquelas coisas que ficam. Quando fiz a minha formação de voluntário, um dos técnicos, um dos psiquiatras ensinou-nos um provérbio árabe, que diz assim: “O que não conseguires contar ao teu melhor amigo, conta-o ao viajante na estalagem.” E esse é o nosso lema, porque nós nunca nos vamos encontrar com aquela pessoa.

Margarida David Cardoso: Os voluntários da SOS Voz Amiga recebem formação e acompanhamento de psicólogos para saberem devolver as palavras certas. Acontece perceberem que um determinado voluntário não tem condições emocionais para fazer esse trabalho. Ou a pessoa reconhece que não está pronta.

Margarida David Cardoso: E acontece também voluntários estarem nisto há dez, 15 anos, e depois perceberem “Não consigo mais”.

Francisco Paulino: É o meu caso. É tão simples como isso. Simplesmente, há um dia em que apanhei uma chamada que me toca, principalmente, porque eu estava a viver uma situação semelhante. 

Margarida David Cardoso: Foi a última chamada que Francisco fez. Quando não conseguiu separar o seu sofrimento do do outro, sabia que estava na altura de interromper.

Margarida David Cardoso: A receita ou a resposta que procurava…
Francisco Paulino: Ainda não encontrei. É bom que a pessoa que tentou nunca mais o fez. Ela lá encontrou a solução dela. Mas eu nunca vou encontrar respostas. Por isso, vou ficando, se calhar…

AVISO

Maria Almeida: Olá. Queria deixar-te só uma nota: em fumaca.pt, na transcrição deste episódio, tens o contacto de várias linhas de apoio a que podes telefonar se tiveres sintomas depressivos. Se sentires que tens ideação suicida, telefona ao 112. Regressemos ao episódio.

V

Margarida David Cardoso: A invisibilidade e estigma em volta da doença mental faz com que haja muita gente que nem sequer tenha referências para equacionar que possa estar doente. Ouvimos várias vezes a descrição de quem se sentia a única pessoa a sofrer daquela forma. Mas o último relatório sobre saúde mental da Organização Mundial da Saúde estimou que as perturbações mentais afetassem uma em cada oito pessoas no mundo, em 2019. Na Europa, 14,2% da população. Para Portugal, dados de 2016, do relatório Health at a Glance, da OCDE, apontavam para 18,4%. Um milhão e 900 mil pessoas. A ansiedade e a depressão eram as mais comuns – cada uma a afetar 6% da população; 2% tinha uma doença bipolar ou esquizofrenia, outros 2% perturbação de abuso de álcool e outras drogas.

Em Portugal, foi apenas feito um estudo de âmbito nacional para medir a prevalência de perturbações mentais. Neste Estudo Epidemiológico Nacional de Saúde Mental, realizado em 2008 e 2009, mais de um quinto dos entrevistados – 22,9% – cumpria os critérios mínimos para o diagnóstico de uma perturbação psiquiátrica no ano anterior. Isto colocava Portugal na segunda prevalência mais elevada na Europa, logo a seguir à Irlanda do Norte. 

As perturbações de ansiedade, onde se incluem as fobias, perturbação obsessivo-compulsiva e stress pós-traumático, afetavam uma em cada seis pessoas, 16,5% da população; e as perturbações de humor, onde se inclui a depressão e a doença bipolar, uma em cada treze, 7,9%. E este estudo não conseguiu contabilizar diagnósticos importantes como a esquizofrenia e outras psicoses, a perturbação esquizoafetiva – em que coexistem sintomas de esquizofrenia e perturbação do humor –, défices cognitivos ou debilidades mentais.

Os impactos destas doenças tem vindo a aumentar significativamente desde os anos 90. A Organização Mundial da Saúde estima que a depressão seja em 2030 a principal causa de carga de doença, que considera a perda de anos de vida e a incapacidade associada.

Não tendo perceção da necessidade ou possibilidade de tratamento, muitas pessoas doentes demoram muito tempo a procurar cuidados. Em 2013, promovida pela Organização Mundial da Saúde e uma série de universidades e investigadores, foi publicada uma análise a inquéritos feitos na década anterior em 24 países, incluindo uma amostra representativa da população portuguesa. Concluiu que esta falta de perceção da necessidade de ajuda era a principal barreira. Especialmente entre pessoas com casos leves e moderados. Nos doentes graves, os obstáculos mais significativos eram barreiras estruturais – dificuldades de acesso aos serviços e dificuldades económicas. Mulheres e pessoas jovens eram as mais propensas a reconhecer a necessidade de tratamento. 

E demorar a ter ajuda pode significar, em muitos casos, formas mais avançadas da doença. Quando estivemos em Portalegre, no interior do Alto Alentejo, no início de 2021, isso ficou muito claro. E aqui há um contexto muito específico: o Norte Alentejano é das zonas mais carenciadas do país em termos de cuidados públicos de saúde mental. Vamos falar disto mais à frente, mas só uma ideia: havia três psicólogos a meio tempo para toda esta região de 105 mil habitantes, que abarca os 15 concelhos do distrito de Portalegre. E, além disso, há fatores sociais e culturais que inibem as pessoas de procurar cuidados.

Ana Samouco: É uma população que não tem, além das suas fragilidades, não tem acesso a cuidados de Saúde Mental, nem percebe que está doente, nem tem quem lhe diga “Olhe, o senhor está doente, está a precisar de ajuda”. Não tem família que note e que o traga ao hospital. Não tem, se calhar, meios para vir ao hospital.

Afonso Homem de Matos: É que depois, a população mais idosa está associada a um certo sentimento de resignação. “Olhe, pronto, olhe, isto é assim.”

Margarida David Cardoso: Ana Samouco e Afonso Homem de Matos eram médicos no Hospital Distrital de Portalegre, nesta altura, em janeiro de 2021, em vias de se tornarem especialistas em psiquiatria. Ana veio do Porto, Afonso de Lisboa, e encontraram concorrência: o soldador.

Afonso Homem de Matos: O soldador. Não será um bruxo, mas é assim alguém que faz assim um místico, um medium, algo deste género. Há situações em que as pessoas, de facto, estão doentes com doenças graves e as hipóteses são todas postas. Antes da doença mental vem tudo o resto. Vem a bruxaria, vêm quadros de possessão demoníaca, coisas deste género… E as pessoas procuram ajuda nos tais soldadores e só em último recurso é que vêm aqui à psiquiatria. Portanto, isto espelha um bocadinho aquilo que ainda é o conhecimento das pessoas sobre estas doenças. Não só sobre as doenças, mas aquilo que é a oferta médica para estes problemas. Porque se essas pessoas percebessem que são coisas que cada vez… cada vez mais há melhores fármacos, cada vez mais nós temos melhores capacidades e melhores respostas para oferecer aos doentes. Mas se eles não souberem que essas respostas existem, e se não souberem que muitas dessas coisas têm soluções e nós podemos, de alguma forma, ajudar a resolvê-las, é difícil que eles procurem ajuda também.

Margarida David Cardoso: A comunidade pode ter uma ação importante. Estudos da OMS, citados no livro A Saúde Mental dos Portugueses, do psiquiatra José Caldas de Almeida, apontam que, por exemplo, líderes religiosos e cabeleireiros podem ter um papel relevante no apoio psicológico a pessoas com depressão e no encaminhamento dos casos mais graves para os serviços de saúde.

Em Portugal, as condicionantes culturais ao acesso estão pouco estudadas, mas baseada na sua experiência Ana Samouco compara aquilo que vê no Alentejo com o que conheceu no Porto, onde fez alguns estágios do internato: um maior peso da fé católica e uma relação mais próxima com a Igreja.

Ana Samouco: Lá, as pessoas recorrem muito aos padres, ao apoio da comunidade religiosa. E aqui nem tanto. Por isso, acho que também não contamos com esse apoio que muitas vezes – isto, digo eu, da minha experiência no Porto – muitas vezes são os padres que indicam “Olhe, não, isto já não é da minha parte”. Além de que, há outro aspeto no Alentejo que é: as pessoas guardam tudo para si, não têm tanta capacidade de verbalizar aquilo que sentem, de dar nome às emoções que estão a sentir. E há muitos segredos relacionados com a saúde mental, nomeadamente os suicídios… que chegam até a ser vistos, em alguns casos, como atos de coragem e que, de facto, pesam aqui na herança de toda a população. E, nesse sentido, também a tornam mais vulnerável à doença mental. Mas que, por uma questão mais cultural, acaba por não ser imediatamente procurado o apoio da Saúde Mental.

Margarida David Cardoso: O final da adolescência, início da idade adulta é um dos picos de incidência do primeiro episódio psicótico, que pode ser indicador de esquizofrenia. O que Ana e Afonso reparam é que é comum aparecerem pessoas em que o primeiro contacto com os serviços de saúde mental acontece ao fim de vários anos de doença. E, quanto mais tarde, pior o prognóstico.

Ana Samouco: As pessoas que chegam, que aparecem, são já com vários anos de evolução da doença. Que tem impacto, causa deterioração cognitiva, funcional, social. Tem marcado impacto na vida da pessoa. Pode torná-la totalmente dependente de outras. Isso tudo poderia ser perfeitamente evitado com tratamento desde o início.

Margarida David Cardoso: Na ausência de tratamento, além de a pessoa doente se poder pôr em risco ou aos outros, a deterioração é progressiva e pode mesmo ser irreversível. Não é por acaso que a esquizofrenia começou por ser designada demência precoce. O próprio estado de descompensação psíquica pode ser neurotóxico, o que significa que pode provocar danos no cérebro. E quanto mais tempo persistir, mais difícil é voltar ao estado prévio.

Ana Samouco: Muitas vezes é interpretado de outras maneiras pela comunidade. “Olha, é estranho. É esquisito. Ou tem que ir ao soldador.” Mas, enfim… É dramático. É um potencial de vida totalmente perdido.

Margarida David Cardoso: Serão cada vez menos, mas ainda há pessoas que andam assim uma vida toda. Com um tratamento errático ou tardio, ou sem tratamento de todo. A imagem coletiva que temos delas é, muitas vezes, a do “louco” ou da “louca” da aldeia. O “maluquinho”.

Um estudo com dados de 2015, produzido por investigadores da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e da Católica Lisbon School of Business and Economics, calculou que havia 48 mil pessoas com esquizofrenia em Portugal. Destas, perto de 7900 (cerca de 16%) não seriam acompanhadas com regularidade num sistema de saúde, público ou privado.

VI

Margarida David Cardoso: O estigma é transversal. Os próprios profissionais de saúde reproduzem estereótipos, preconceitos e discriminações. Está documentada a tendência para desvalorizar queixas de sintomas físicos em doentes psiquiátricos, o que pode levar a um subdiagnóstico ou diagnóstico tardio de problemas graves.

Há um estudo recente que analisa o estigma em relação à saúde mental por parte de psiquiatras e médicos de família em Portugal, publicado em março de 2021 no International Journal of Social Psychiatry, por uma equipa de quatro psiquiatras, incluindo Ana Samouco, e um economista. Perguntaram a 122 profissionais de saúde até que ponto concordavam com frases como “Pessoas com doenças mentais graves são geralmente mais perigosas”. E concluíram que médicos de meia-idade – 40, 50 anos – demonstraram menos estigma do que profissionais mais jovens e mais velhos.

José Miguel Caldas de Almeida: O estigma não é o problema deles, é o nosso, o nosso problema.

Margarida David Cardoso: José Miguel Caldas de Almeida, psiquiatra e professor jubilado da Universidade Nova de Lisboa, recorda a forma como alguns colegas reagiram a um restaurante onde trabalham pessoas com doença mental. Foi inaugurado em 1994, no Hospital São Francisco Xavier, em Lisboa.

RTP Arquivos, 1994
Jornalista: Já vai longe o tempo em que os doentes de foro mental eram internados para toda a vida. A aposta hoje é a da reinserção social e profissional. A provar isso mesmo está a inauguração do restaurante Psico-Prato.

José Miguel Caldas de Almeida: Que eu, por exemplo, ia religiosamente lá almoçar todos os dias – para já, porque a comida era boa, e também porque estávamos ali, convivíamos e tal. Havia vários psiquiatras que se recusavam a ir lá. E diziam: “Então eu já ando todos os dias a aturar os doentes, nas consultas, e ainda vou à hora de almoço para lá?” Portanto, o estigma existe. Existe.

Margarida David Cardoso: Pedro Morgado, psiquiatra no Hospital de Braga, investigador e professor na Universidade do Minho, tem tentado compreender isso. Falámos em junho de 2020. Em 2022, passou a ser coordenador regional da saúde mental na Administração Regional de Saúde do Norte.

Pedro Morgado: E reparem que não é porque as pessoas sejam mal formadas, ou que tenham uma má vontade, é porque de facto nós temos tantos estímulos ainda para tornar negativa a doença psiquiátrica, que depois temos dificuldade em nos abstrairmos dessa marca, dessa etiqueta que é colada à pessoa. E também acontece, muitas vezes, quando um profissional de saúde tem dificuldades a gerir a personalidade de uma pessoa, dizer: “Ah, se calhar, é uma pessoa com uma doença psiquiátrica.”
Até a própria origem da palavra estigma é muito curiosa. Porque a palavra estigma vem da Grécia, era um carimbo que se punha com ferro a uma temperatura brutal, no braço ou na perna dos escravos. E estigma significa, era uma marca que impedia aquelas pessoas de algum dia serem cidadãos. E, portanto, era dizer assim: “Porque tu tens este estigma, tu já não podes ser mais nada que não o que este estigma diz.” E na doença psiquiátrica é a mesma coisa. Tu tens o rótulo de ser um doente psiquiátrico ou de ter uma doença psiquiátrica, já não podes ser mais nada, vais ser um doente psiquiátrico para sempre. E isto é brutalmente errado, porque, de facto, as pessoas não são a sua doença nem a doença é a pessoa. É algo estranho que se aloja na pessoa temporariamente.

Margarida David Cardoso: Os meios de comunicação ajudam, muitas vezes, a solidificar algumas destas ideias. Uma delas é a associação frequente do crime à doença, como se esta sempre o justificasse ou explicasse.

Pedro Morgado: Não, a doença psiquiátrica muito raramente explica ou é a causa de um comportamento criminoso. É mesmo muito raro. É tão raro que nós até quase conseguimos nomear as situações mediáticas em que isso aconteceu. É mesmo muito raro. O que é comum acontecer é que as pessoas têm características de personalidade, da sua maneira de ser – como uns são altos e baixos, outras pessoas têm características de personalidade E essa personalidade é que é disfuncional, e dentro das características de personalidade das pessoas, também existe a maldade. E portanto há pessoas que, de facto, têm entre as suas características, algumas que nós não apreciamos. Mas isso não tem a ver com doença psiquiátrica. A doença psiquiátrica instala-se em todos, em todas as personalidades de uma forma mais ou menos democrática.

Margarida David Cardoso: Algo de que ainda não falamos é a diferença entre a generalidade das doenças mentais e os traços ou as perturbações da personalidade. Doenças mentais como a esquizofrenia podem implicar um corte com a realidade, alterações do estado de consciência e da capacidade de controlar impulsos e comportamentos – nada que tenha a ver com personalidade. Em si, não tornam as pessoas mais violentas nem mais perigosas do que aquelas sem anomalias psíquicas, afirma Pedro Morgado. 

As perturbações da personalidade, embora englobadas nas classificações internacionais de doenças mentais, são padrões comportamentais considerados disfuncionais/perturbados face às expectativas da cultura em que se inserem. Antissocial, borderline, narcisista, para dar apenas três exemplos. São características da personalidade, desenvolvidas na infância e adolescência, relativamente estáveis ao longo da vida. 

Em caso de crime, pode ser pedida uma perícia psiquiátrica para avaliar a inimputabilidade em cada caso: se, por causa da doença ou perturbação mental, a pessoa se encontrava, na altura do crime, incapaz de avaliar os seus atos ou se, sabendo que estava a fazer algo ilícito, não tinha capacidade de se comportar de outra forma – não tinha capacidade de autodeterminação. Em qualquer uma destas situações, não é considerada culpada nem sujeita a uma pena judicial; é doente e o espírito da lei é que lhe seja atribuída uma medida de segurança para ser tratada. 

Há um estudo, publicado em 2018, coordenado pelo investigador Pedro Alcântara da Silva, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, que fez uma análise à forma como a saúde mental é retratada em jornais portugueses ao longo de cinco anos, até 2015. Concluiu que grande parte dos artigos se centrava em questões de justiça. Apenas um terço não referia nenhum ato violento ou um crime. 

E percebeu ainda que a maioria dos títulos tinha ideias estigmatizantes: associações entre a doença e a violência, mitos e preconceitos, retratos das pessoas doentes como socialmente disfuncionais ou ainda com interpretações ambíguas dos diagnósticos. E ainda não é raro o uso de doenças ou sintomas psiquiátricos como um insulto, muitas vezes na esfera pública, nos círculos de poder.

Margarida David Cardoso: Elina Fraga, então Bastonária da Ordem dos Advogados, em 2015.

SIC, 2015
Elina Fraga: Com esta produção esquizofrénica de legislação…

Margarida David Cardoso: Francisco Assis, então eurodeputado, em 2016.

SIC, 2016
Francisco Assis: E até instala uma situação de relativa esquizofrenia.

Margarida David Cardoso: António Costa, primeiro-ministro, em 2018.

RTP, 2018
António Costa: São propostas que ou diminuem a receita ou aumentam a despesa. Esta esquizofrenia é que não é possível.

Margarida David Cardoso: Augusto Santos Silva, então ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, em 2020.

Antena 1, 2020
Augusto Santos Silva: Nós não podemos voltar a ser, se me permite a expressão, apenas metafórica, esquizofrénicos.

Margarida David Cardoso: Fernando Medina, então Presidente da Câmara de Lisboa, em 2021.

SIC, 2021
Fernando Medina: Nós não podemos ter aqui um país, ó Carla, se me permite, um bocadinho esquizofrénico.

Pedro Morgado: Houve uma série de pessoas que dizia que a resposta que estes países estavam a dar à Covid era “esquizofrénica”. Isso é um absurdo e denota ignorância, porque denota que as pessoas não sabem o que significa a palavra “esquizofrénica” quando estão a usá-la. Se calhar, queriam dizer que as respostas foram incongruentes, inconsistentes, que foram confusas. Esquizofrenia não tem nada a ver nem com confusão, nem com incongruência, é uma doença que afeta algumas regiões do nosso cérebro, que afeta o nosso comportamento, mas que não tem nada a ver com aquilo que as pessoas queriam comunicar.

Margarida David Cardoso: A palavra “autista” era também tão frequentemente usada como arma de arremesso político na Assembleia da República que, em 2009, o protesto da mãe de uma pessoa com autismo levou os líderes parlamentares a desaconselhar o uso desta perturbação do neurodesenvolvimento como um insulto. Ainda assim… Em 2016, Wanda Guimarães, então deputada do Partido Socialista, e Adão Silva, deputado do Partido Social Democrata.

TSF, 2016
Wanda Guimarães: As direitas […] têm mudado o seu comportamento. E, de facto, assistimos primeiro a uma grande agressividade e agora passou para o que eu chamaria de transtorno psicótico político. Atenção, político!
Adão José Fonseca Silva: A Comissão [de Saúde] estava a decorrer nos termos que tinha que decorrer. E, vossa excelência, não tem o direito e, diria mesmo, não tem sequer a categoria, para insultar o grupo parlamentar do PSD. Porque nesta bancada, senhora deputada, não há psicóticos. Com a expressão que usou acaba a insultar o trabalho que tem vindo a ser feito nesta Comissão, pelo senhor ministro da Segurança Social e ele, também, seguramente, não merecia esta expressão errática, esta nódoa no meio desta intervenção.
Wanda Guimarães: Se gosta mais de autismo do que de um transtorno psicótico político, pronto.
Adão José Fonseca Silva: Gosto de educação.
Wanda Guimarães: Agradecia que não me interrompesse, porque essa é uma falta de educação.

VII

Margarida David Cardoso: O estigma é como um novelo que foge de mão e se vai desenrolando até perder de vista. Se a pessoa não consegue reconhecer que está doente; não fala no assunto; não o compreende ou não encontra compreensão nos outros; esconde para não perder o emprego ou sofrer represálias; resiste a procurar ajuda; se enquanto sociedade isto é, muitas vezes, um segredo – ainda que partilhado –, a doença mental torna-se invisível. E algo que é invisível não tem poder. Não tem poder reivindicativo, não tem poder político.

Pedro Morgado: Apesar de termos um bom Serviço Nacional de Saúde, de termos evoluído imenso ao longo dos últimos anos, temos aqui um conjunto de pessoas que sofre de doenças graves e para as quais ainda não temos um investimento que é necessário. E este investimento que é necessário é muito inferior ao investimento que se faz em doenças cardiovasculares ou em doenças oncológicas. Mas ele não é feito, porque estas pessoas não têm visibilidade.

Margarida David Cardoso: O orçamento público para a Saúde Mental em Portugal tem ficado consideravelmente abaixo do impacto que estas doenças têm. Embora a quantificação orçamental seja imprecisa: o Ministério da Saúde diz não ter dados uma vez que os serviços de saúde mental estão integrados na contabilidade dos hospitais; Miguel Xavier, coordenador nacional para as políticas de saúde mental, fala numa fatia de 4, 5% do orçamento do Serviço Nacional de Saúde. Mas o seu impacto pode ser medido em anos vividos com incapacidade, e é muito mais elevado: em Portugal, em 2019, as doenças mentais eram responsáveis por quase 18% dos anos vividos com incapacidade.

Pedro Morgado: Há um conjunto grande de pessoas que sofre de doenças graves, mas porque não têm visibilidade, não têm poder reivindicativo, por causa do estigma de que a pessoa e as suas famílias são vítimas, não encontram na sociedade uma voz que chegue ao poder político e que faça com que esse investimento aconteça.

Margarida David Cardoso: Ouvimos, muitas vezes ao longo desta série, a comparação com a atenção e consciência pública que merece a diabetes ou a doença oncológica. Não para apontar isso como algo errado, mas como um caminho que a saúde mental também tem que fazer. E havia uma imagem particularmente recorrente. A de José Carlos Saldanha, em 2015, em plena sessão parlamentar na Assembleia da República a exigir ao então ministro da Saúde, Paulo Macedo, o acesso a um medicamento inovador que lhe podia salvar a vida e a de muitas pessoas com Hepatite C.

TVI, 2015
José Carlos Saldanha: Senhor ministro, tenho a dizer que a mãe do David morreu. Não me deixe morrer. Eu quero viver. Eu ofereci-lhe metade do dinheiro para o senhor me dar o tratamento, escrevi-lhe uma carta e o senhor não respondeu. Não há direito. Acabem com isto, por favor, de uma vez por todas.

Margarida David Cardoso: À porta do parlamento, umas dezenas de pessoas reforçavam a mensagem. O tema saiu da invisibilidade e uma semana depois de ter dado a cara, José Carlos Saldanha começava o novo tratamento. Morreu em 2020, vítima de uma infecção generalizada não relacionada com a doença da qual estava curado há quase cinco anos. A conclusão desta comparação é que a generalidade das pessoas com problemas graves de saúde mental não tem esta capacidade reivindicativa. Têm vergonha, esconde. E por isso não se ouve.

VIII

Margarida David Cardoso: Agora, olhando para trás, havia sinais de que o teu pai tinha ideação suicida? Ele falava sobre isso?
Sara Miguéns: Nada. Nada. Absolutamente nada. O meu pai nunca tinha, mesmo nas suas fases mais depressivas, nunca tinha feito uma referência a isso na vida.

Margarida David Cardoso: Em junho de 2019, uma familiar afastada, com quem Sara Miguéns e o pai já não falavam há bastante tempo, suicidou-se.

Sara Miguéns: Então, eu lembro-me de nós falarmos, de eu estar sentada à frente do meu pai e do meu pai me estar a dizer “Então agora foi fazer isso, os miúdos… Que coisa”. Sabes? Falamos sobre isto. Nada.

Margarida David Cardoso: Um mês depois, em julho, o pai de Sara suicidou-se. Tinha passado um ano desde aquele dia em que saiu de casa e a filha o procurou por todo o lado – o episódio psicótico, a que se seguiu o diagnóstico.

Sara Miguéns: E eu fui lá… A última vez que eu vi o meu pai foi num domingo, que nós fomos lá precisamente – almoçar todos, fui lá eu e o Nuno, o meu marido – fomos lá almoçar. Eu já o achei super estranho, confesso-te. Não tão estranho como já o vi, nem tão deprimido como o tinha visto noutras alturas, nem pouco mais ou menos. Mas estranho o suficiente para comentar com a minha mãe “Ó mãe, está tudo bem com o meu pai? Estou a achá-lo um bocado esquisito”, “Sim, olha, temos tido 15 dias incríveis. Ele tem ido à praia. Está todo contente…” Pronto, ok. Mas ela também me disse que, a determinada altura, ele quis cancelar as consultas com a psicóloga. Para aí 15 dias antes ou três semanas antes. O que também só me leva a crer que isto já estava planeado, porque eu acho que ele devia ter medo que ela fizesse perguntas que o fizessem denunciar a ideia que ele já tinha na cabeça.

Então, ele tinha dito à minha mãe e até tinham ligado para o [Hospital] Júlio [de Matos] e tinham-lhe marcado uma consulta com a psicóloga na quinta-feira a seguir. Só que eu acho francamente que foi manobra, sabes? Tu queres muito fazer aquilo e queres muito que as pessoas não achem que tu vais fazer aquilo. Portanto, tu fazes tudo o que tu achas que consegues para manipular as pessoas e para as pessoas não acharem que estás a ter algum tipo de comportamento mais final.

A primeira psicóloga com quem trabalhei dizia-me uma coisa que me fez sempre muito sentido, que é: “Há coisas pelas quais tu não precisavas de passar para aprender.” Ou seja, no limite, há determinadas coisas ou que tu não ias aprender e ias viver bem, na mesma, sem as saber. Ou que poderias aprender de uma forma que fosse muitíssimo menos difícil para ti e estaria tudo bem na mesma. Eu não acho que tenha nenhum benefício, nenhuma autoridade, nenhuma vantagem em ter passado por aquilo que passei. Ponto.

Dito isto, já que passei e já que aprendi algumas coisas, eu sinto que tudo o que eu possa fazer para contribuir para desmistificar isto, eu vou fazer, porque eu vi como é que acaba, sabes? Eu vi. Ninguém me contou. Eu não li artigos a dizer que é um estigma. Eu tinha o estigma em casa. 

Mas, se calhar, se estiveres a começar a ter determinado pensamento, a ter determinado sentimento recorrente, a sentir determinados sintomas que tu desvalorizas, a passarem-te determinadas ideias pela cabeça que tu desvalorizadas… E depois até lês sobre aquilo e percebes que “Se calhar estou deprimido… Mas qual deprimido. Então, mas agora estou deprimido porquê?” E passas. E se calhar até alguém percebe e dizes-te “Então não achas devias ir a um psicólogo ou a um psiquiatra?”, “Psiquiatra? Não sou maluco”. E, nessa fase, se calhar, se tu fores consegues-te tratar e viver muitos anos saudável.
Há muitos bipolares, e muitas pessoas que têm depressões, ou que têm surtos psicóticos, e que vivem muitos anos depois disso e são acompanhadas e vão vivendo bem. Portanto tudo o que eu puder fazer e falar e dizer para… para se falar sobre isto, seja em que contexto for, eu vou falar.

Margarida David Cardoso: No próximo episódio: o que é que contribui para que as pessoas fiquem doentes?

Teaser do próximo episódio:

Pedro Morgado: A resposta que nos preparava para fugir dos leões era uma resposta em que o leão vinha, e nós fugimos, e a resposta terminava. E agora nós estamos a ativar a mesma resposta para resolver o problema das contas para pagar, ou do trabalho, do excesso de trabalho, ou da precariedade do trabalho. E são fatores que não terminam.

SIC, 2012
Jornalista: Um aumento de impostos sobre os trabalhadores, do público e do privado; sobre pensionistas e reformados; sobre as empresas; sobre o património, sobre o capital, sobre o tabaco.

Paula Santana: Houve cortes orçamentais nos setores da saúde e de apoio social que influenciaram o acesso aos serviços de saúde.

António Coimbra de Matos: Começou a observar-se o pai e a mãe, a família estava toda doente. A criança era um sintoma daquela família.

Ricardo Mateus: E, depois, fez-se o clique: então eu já lido com isto desde que eu me lembro.

Susana Sousa Almeida: Estamos a criar aqui um caldo que inclui imensos fatores de predisposição para uma doença mental nessa geração seguinte.

João Madeira: Sentia muitas vezes “Estou a dar em… Estou a enlouquecer.” E tive medo, muitas vezes, de estar a enlouquecer.

IX

Bernardo Afonso: “Pensaste já, […] quão invisíveis somos uns para os outros? Meditaste já em quanto nos desconhecemos? Vemo-nos e não nos vemos. Ouvimo-nos e cada um escuta apenas uma voz que está dentro de si. As palavras dos outros são erros do nosso ouvir, naufrágios do nosso entender. Com que confiança cremos no nosso sentido das palavras dos outros. Sabem-nos a morte volúpias que outros põem em palavras. Lemos volúpia e vida no que outros deixam cair dos lábios sem intenção de dar sentido profundo. A voz dos regatos que interpretas, […] a voz das árvores onde pomos sentido no seu murmúrio — […] quanto tudo isso é nós e fantasias tudo de cinza que se escoa pelas grades da nossa cela!”

Citação do Livro do Desassossego, de Bernardo Soares

CRÉDITOS

Nuno Viegas: Acabaste de ouvir “A fila do pão”, o sexto episódio da série Desassossego. Se quiseres ouvir já o próximo episódio e todos os seguintes, basta fazeres uma contribuição mensal para o Fumaça. Quem nos apoia já tem acesso à série completa de 13 episódios. Vai a fumaca.pt/contribuir e ajuda-nos a ter a primeira redação profissional portuguesa totalmente financiada pelo público. Quem apoia o Fumaça também tem acesso a várias entrevistas extra… para explorar mais esta história.

O início deste episódio baseia-se, em grande parte, em A Psiquiatria em Portugal, Protagonistas e história conceptual (1884 a 1924), de José Morgado Pereira, na tese A Assistência aos alienados em Portugal: o Hospital de Rilhafoles (da fundação à Implantação da República), de Ana Catarina Necho e, ainda, nos estudos de Vítor Albuquerque Freire sobre o Pavilhão de Segurança do Miguel Bombarda. Ouviste ao longo da peça arquivos da Assembleia da República e trabalhos jornalísticos da RTP, SIC, TSF e TVI.

Este episódio foi escrito pela Margarida David Cardoso, que fez a reportagem e investigação da série. O Bernardo Afonso fez também investigação e ainda compôs e interpretou a banda sonora original, fez a edição de som e sound design. É também ele que lê os excertos do Livro do Desassossego de Bernardo Soares. O Pedro Miguel Santos tratou da edição e revisão de texto. Eu, Nuno Viegas,  fiquei com a verificação de factos. A Joana Batista criou a identidade visual. A Maria Almeida e o Ricardo Esteves Ribeiro, a estratégia de marketing. O Fred Rocha fez o desenvolvimento web. Todas estas pessoas participaram na construção coletiva da série. Podes encontrar em fumaca.pt a transcrição de todos os episódios, fontes, documentos e imagens relacionadas. Fazem ainda parte da equipa Fumaça: Danilo Thomaz e Luís Marquez. 

A produção desta série foi parcialmente financiada por bolsas de apoio ao jornalismo de investigação da ARIS da Planície – Associação para a Promoção da Saúde Mental, do Sindicato dos Jornalistas, em parceria com a Roche e da Fundação Rosa Luxemburgo. Podes ver os contratos em fumaca.pt/transparencia.

Até já.

DOCUMENTAÇÃO EXTRA

A Psiquiatria em Portugal
Protagonistas e história conceptual (1884-1924)
Hospital Miguel Bombarda
1968 – José Fontes
A Assistência aos alienados em Portugal: o Hospital de Rilhafoles (da fundação à Implantação da República)

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