Episódio 3/13

Há sempre barulho

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TRANSCRIÇÃO

Nuno Viegas: Olá. Eu sou o Nuno Viegas. Este  é o terceiro episódio de Desassossego, uma série sobre saúde e doença mental. Deves ouvir com auriculares ou auscultadores, já agora.

Neste episódio falamos de forma bastante explícita de suicídio. Se quiseres continuar a ouvir, pode ser que algo mexa contigo. Se estiveres em perigo liga ao 112 o número de emergência, em Portugal. Se pensares em fazer mal a ti próprio, há um serviço de acompanhamento psicológico no SNS 24: é o 808 24 24 24. Podes ver na transcrição deste episódio, em fumaca.pt, o número de várias linhas de apoio não estatais. Como a Voz de Apoio, por exemplo.

Ora, vamos ouvir. A gravação é de setembro de 2020.

I

Nico: Eu não consigo fazer nada sem antes pensar 3000 vezes no que vou fazer, criar todas as más possibilidades na minha cabeça… Mas eu acho que a minha ansiedade vem mais em surtos físicos: eu tenho muitos ataques de ansiedade, de pânico, não sei bem a distinção… Mesmo aquela falta de ar, sentimento de que vou morrer naquele momento… Mesmo muitos. Agora que estou a tomar medicação, eu tenho noção que isso tem a ver com os meus picos de stress. E depois eu tenho outra coisa que são o que a minha psicóloga chama pensamentos obsessivos, talvez conhecido por algumas pessoas como “vozes na cabeça”… 

Eu acho que eu me apercebi recentemente que eu sentia um grande distanciamento entre mim e o meu cérebro – o eu e o meu cérebro –, porque eu sentia que o meu cérebro era uma entidade separada que falava um bocado comigo e tinha aqueles pensamentos muito repetitivos… A coisa é: se uma pessoa tiver um pensamento mau uma vez por dia, não faz muito mal. Uma pessoa fica tipo “Ok, não estou mesmo a pensar nisto”. Mas quando é muito repetitivo, a martelar, há sempre uma espécie de barulho, de ruído, de autosabotagem, de autodano, acaba por ser um grande peso…

E foi por isso que eu também procurei ajuda, não só psicológica, mas psiquiátrica também. Porque eu já não estava mesmo a aguentar. Era um ruído de tal maneira. Não estava a conseguir dormir, não estava a… pronto.

Margarida David Cardoso: Que te dizia o quê?

Nico: Principalmente, mata-te.

II

Ah, acho que talvez aos 16, 17. Depois de eu ter uma tentativa, pronto… Uma tentativa de suicídio, para ser mais claro. Comecei-me a aperceber um bocado que isso não era normal, quer dizer, não era uma coisa muito saudável e comecei a pensar um bocado sobre… 

Comecei a ficar um bocado preocupado comigo mesmo e com o facto de ir fazer alguma coisa que pudesse magoar a minha família, magoar os meus amigos, por… Ia dizer que me arrependesse depois, mas depois não me podia arrepender, não é?

E comecei a pensar em procurar ajuda psicológica nessa altura. Acabei por não começar, por muitas razões. Porque eu estava severamente deprimido e não queria sair de casa. Também porque os meus pais, desde sempre, têm uma espécie de alergia a psicólogos, sempre tiveram… Então, durante muitos anos, eu não procurei ajuda e também os meus pais deixaram a coisa andar. Eu sei que eles estavam preocupados comigo… Mas eu acabei por só ir a primeira vez aos 20 anos. 

Eles vivem um bocado – toda a minha família – em negação dos seus próprios problemas do foro psiquiátrico e psicológico. É uma coisa que eu me lembro claramente de eles dizerem, quando eu era muito mais novo, era que os psicólogos inventavam doenças. E tu podias ir lá e dizer que tiveste um mau dia no trabalho e eles diziam “Pronto, está deprimido, tome lá dois comprimidos”. Então, eu acabei sempre por ter um pé atrás. E como também não estava numa fase muito proativa de ir procurar ajuda acabei por adiar muito, muito, muito isso até ter voltado a ficar bastante mal. Eu vivo com o que eu sempre achei que era só depressão – só depressão desde os 14, talvez até agora… Recentemente descobri… Eu sempre pensei “Epa, ok, tudo bem, eu tenho depressão, mas, pelo menos, não tenho ansiedade”, E eu recentemente descobri que eu tenho depressão, porque tenho um quadro ansioso. O que foi muito interessante. 

Porque eu nunca me considerei uma pessoa ansiosa. Stressado sim, mas uma pessoa ansiosa… Porque eu sempre vi retratado em todo o lado a ansiedade como sendo aquela coisa de “Ah, não consigo ir ao balcão falar, ou não consigo falar em público”… Eu sempre tive muita facilidade em fazer essas coisas, nunca foi nada que me preocupasse muito. Eu sou uma pessoa extrovertida, sou uma pessoa com facilidade em falar. E para mim, até eu ter começado a tratar-me, a ansiedade era isso, eram aquelas pessoas mais tímidas, mais acanhadas, que acabavam por ter ansiedade social.

Muitos pensamentos impulsivos, do género eu estar ao pé da linha do metro e o meu cérebro começar “Porque é que não te atiras? Porque é que não dás o passo em frente e te mandas para a frente do metro?” Ou eu estar ao pé de uma autoestrada e o meu cérebro começar a dizer mais ou menos a mesma coisa. Ou num sítio alto e o meu cérebro começar “Ok, atira-te. Atira-te. Porque é que não te atiras?” 

III

Para mim, a analogia que eu costumo fazer é como se houvesse um barulho de ruído sempre no meu cérebro e quando eu me deixo distrair alguém aumenta o barulho. E eu não consigo voltar a baixar, ele vai só aumentando, aumentando, aumentando. E, por exemplo, eu passava o dia todo a distrair-me com coisas, com aulas e sair com amigos… Depois, chegava à noite, eu deitava-me na cama e, de repente, eu não tinha nada para me distrair e aquilo aumentava de tal maneira que eu não conseguia dormir.

“És inútil. Não fazes nada bem. Ninguém gosta de ti.” Assim, muito… Eu tenho noção que não é verdade, mas era o que o meu cérebro me estava a dizer. E tão repetidamente que acabava por, às tantas, eu já não saber… “Ok, onde é que eu começo? Onde é que estes pensamentos começam? Qual é que é a distinção?”

De tal maneira que eu não conseguia dormir. Não conseguia mesmo. E eu sou uma pessoa que, no geral, no meu quadro psicológico, eu tenho o que se chama hipersónia, eu durmo demasiado. E, pela primeira vez na minha vida, eu tive insónia. Eu não conseguia mesmo dormir por causa dos pensamentos. E tive que tomar uma coisa para isso, porque durante dois meses eu não conseguia dormir. 

Margarida David Cardoso: Isso foi em que altura?

Nico: Foi no início da pandemia. Com tudo o que aconteceu, com todo o descontrole, a sensação de “Ok, eu neste momento não tenho controlo de nada”. O facto de eu ser estudante de Biologia não ajuda. E depois ter ficado em casa… Eu desde os 16 anos que não parava em casa. Eu não ficava em casa mais do que dois ou três dias de seguida. E ter estado em casa três ou quatro meses com os meus pais, com o meu irmão, todos fechados numa lata de sardinha pequena, em que estamos todos na mesma divisão, o dia todo… Foi um grande, grande pico de stress.

IV

Eu sei, agora, olhando para trás, que eu estive a entrar e sair de episódios depressivos para aí desde os 14 anos. E sei que a culpa não é de ninguém, mas que os fatores externos são uma coisa que influencia muito a saúde de uma pessoa. Neste caso, o meu principal fator de influência, para além do bullying que eu sofri na escola, sempre foi a minha família. Os meus pais discutiam muito; ali entre os 14 e os 16 anos, os meus pais discutiam muito entre eles, discutiam muito comigo. E, então, eu andava sempre um bocado miserável. E, pronto, nessa altura eu tentei-me matar. Não fiz nada. Fiquei três horas no cimo de um prédio a olhar cá para baixo e acabei por não me atirar, porque depois comecei a pensar um bocado também nas pessoas que gostam de mim, mesmo os meus pais. Eu tenho perfeita noção de que eles gostam de mim e que eles não fazem por mal. 

Há muito tempo que a minha técnica para evitar fazer alguma coisa é pensar: “Ok, a minha mãe não se ia conseguir recompôr disso, o meu pai e o meu irmão iam ter saudades minhas, os meus amigos…” Começo a fazer uma espécie de contagem do número de pessoas que eu sei que se importa comigo e acabo por descalar a minha cabeça. 

Margarida David Cardoso: Pensavas também em ti?

Nico: Não.

Margarida David Cardoso: Nunca?

Nico: Nunca. Nunca. E eu sei que isto pode parecer um bocado egoísta, mas eu acabo sempre por meter o peso nos outros. Aliás, eu tenho uma lista de pessoas a quem ligar se pensar em fazer alguma coisa que eu sei que me vão ajudar a descalar a situação, que vão falar comigo… Mas normalmente o que eu faço é mesmo isso, é pensar “Ok, quais eram as consequências de eu levar isto para a frente?” Para além de eu morrer, que na altura não é uma coisa que me pareça assim tão má quando eu estou a pensar nisso.

V

Nós estávamos na rua, eu comecei a chorar, fui para casa sozinho e enquanto ia para casa eu passei por cima de uma ponte. E eu pensei, pela primeira vez em quatro ou cinco anos, seriamente em mandar-me. Então, eu cheguei a casa, liguei à minha psicóloga e disse: “Não aguento mais. Por favor, passa-me para a psiquiatria. Porque eu tenho mesmo medo do que eu possa fazer neste momento.”

Margarida David Cardoso: Porque te sentias no limite?

Nico: Mesmo no limite.

AVISO

Joana Batista: Olá. Uma nota: caso sintas que estás em perigo, que te podes magoar a ti próprio, liga ao 112. Se precisares de ajuda não urgente, tens na transcrição deste episódio, em fumaca.pt, o número de várias linhas de apoio. Regressemos ao episódio.

VI

Margarida David Cardoso: Um, dois, um dois. Ok. Posso-te pedir que te apresentes?

Nico: Podes.

Margarida David Cardoso: Diz o que quiseres.

Nico: Olá. O meu nome é Nico, tenho 22 anos. Sou uma pessoa não-binária e uso pronomes só masculinos. Sou estudante, trabalhador, artista, um bocado de tudo…

Eu, aos 16 anos, assumi-me, pela primeira vez, como pessoa não-binária, com o meu nome Nico, mas na altura não pegou. Eu só contei a duas amigas, a minha melhor amiga de infância e, na altura, não foi uma coisa muito prevalente. Do género “Ok, eu não me sinto desconfortável com pronomes femininos, portanto, na realidade, não tem muita relevância eu estar a dizer isto às pessoas, se eu me vou continuar a vestir de ‘mulher’ ou… Não vale a pena eu estar a dizer isto às pessoas, que é para ser mais complicado”.

Mas depois comecei a ter bastante disforia. E comecei a – como é que se diz… Cada vez mais a sentir-me desconfortável com pronomes femininos e com o meu nome de registo. Então começou a ser uma coisa mais importante para mim de contar.

Aliás, o que aconteceu também foi que eu fui ao acampamento LGBT no ano passado – LGBTI+ – e, durante uma semana, eu apresentei-me como Nico, os meus pronomes eram masculinos e toda a gente me tratou assim. Na altura, eu ainda não estava muito disfórico com os pronomes femininos, mas senti o contrário. Senti-me identificado. Eu senti-me visto, com aqueles pronomes, com aquele nome. Senti-me eu. E então, fiquei um bocado “Ok, está na altura de eu dizer ao mundo uma coisa que eu já sei há muito tempo…” Porque realmente para eu ficar mais confortável, já vale a pena.

E houve reações melhores, reações piores. A melhor reação, na realidade, foi do meu irmão, que disse que se eu era um quarto rapaz explicava porque é que eu deixava o tampo da sanita para cima… Que foi só ótimo. A minha mãe, na altura, não levou muito bem e levou um bocadinho a peito, acho eu, eu não lhe ter contado antes e ter contado assim um bocado do nada. Porque, para ela… Para eles todos, foi do nada. Mas para mim, já era uma coisa que tinha muitos anos de pensamento e de tentar descobrir-me em cima. E eu sei, pelo menos da experiência dos meus amigos que são homens trans binários, que eles sentem a mesma coisa muitas vezes.

É muito ensinado. É muito socialmente martelado na tua cabeça que tu tens que ser aquilo e, às tantas, tu já não sabes se és tu ou se é uma imposição da sociedade. É puxado…

VII

Durante cinco anos, desde o meu 5.º até ao meu 9.º ano, havia um rapaz na minha turma que começou uma piada no início do 5.º ano que era – isto é difícil de explicar, porque eu não quero dizer o meu nome morto: “Cala-te”. Começou a dizer “Cala-te” e o meu nome morto, de que eu já não gostava. E isto começou a alastrar para toda a turma. Às tantas, qualquer vez que falasse – e mesmo quando eu estava calado a escrever –, alguém virava-se “Cala-te, nome morto”. E era tão repetitivo, tão horrível, que, às tantas, no final do 9.º ano, eu não conseguia falar. Não conseguia subir a minha voz, não me conseguia impor. Deixei de conseguir fazer apresentações em público, porque cada vez que eu falava alguém me mandava calar. Eu sou uma pessoa que fala alto, falo muito. E eu já estava a falar assim.

VIII

Eu tenho uma amiga que é severamente deprimida, e nós temos este acordo de que nenhum de nós – isto é um bocado macabro, mas é verdade – se pode matar, porque temos que viver com a consciência de que se um de nós se matar, o outro se mata. Então, nós mantemo-nos um bocado assim… Um bocado pela culpa.

Pode não parecer, mas só o facto de nós questionarmos a identidade que nos é entregue quando nascemos é logo uma pressão, e é um desconforto depois de andar na rua… Acho que não conheço ninguém ou que não tome nada, ou que não tenha tomado, ou que não seja acompanhado por psicólogos, porque, lá está, é uma coisa que… Eu não imagino que uma pessoa, um homem que não pode dar as mãos ao namorado na rua senão apanha, que se sinta seguro… Eu conheço muita gente que já apanhou na rua ou que leva muitas bocas. A mim já me cuspiram e já me chamaram “fufa”. Em Lisboa. À frente dos Armazéns do Chiado. Eu tinha 15 anos.

IX

Uma vez, estava a ir para a minha psicóloga, quando ainda era presencial, eu passei no meio de dois rapazes que estavam à porta do metro, estava um de cada lado, e eu levava brinco só de um lado. E quando eu passei eles começaram a questionar: “O que era aquilo? O que era aquilo?
– Ah, era mulher.
– Não, não, era homem, mano. 
– Não, era mulher, claro que era mulher.”

E depois começaram a gritar assim: “Opa, o que é tu és?” E eu fiquei… 

Há tantas microagressões assim, há tantas coisas que ao longo do dia vão pesando na saúde mental, eu acho. Acaba por ser um bocado pesado no geral a vivência como pessoa LGBT na sociedade de hoje. Não é tão fácil como as pessoas tentam fazer parecer. Não é… Basta olhar: ainda há tantas pessoas que tentam ameaçar o meu direito de existir ou o meu direito de ama. Como é que uma pessoa se pode sentir segura assim, não é?

X

Eu tenho perfeita noção que se eu fosse mulher cis ou qualquer outra coisa cis, se isto não fosse uma coisa tão prevalente na minha vida, que eu provavelmente não teria esta… Não é gravidade, porque eu não acho que seja assim uma coisa muito grave… Esta intensidade de problemas do foro psicológico. Acho que seria bastante mais suportável, mais manageable.

Eu acho que eu ainda teria os problemas psicológicos que tenho, mas eu acho que seriam menos agudos nalgumas coisas. Porque a realidade é que todo o processo de transição, todas as minhas relações com a forma como a sociedade me vê, com as minhas interações com as pessoas são grandes motivadores de stress. E eu já percebi que realmente picos de stress são as coisas que mais me afetam. É como se fosse uma ondinha que está ali normalmente – a minha ansiedade existe, às vezes está mais turbulenta –, mas quando eu tenho um pico de stress é tipo tsunami. 

XI

Eu queria só contar um caso que já me aconteceu muitas vezes que é uma coisa que eu acho que é muito normal principalmente para as pessoas cis fazerem e para uma pessoa trans acaba por ser uma concentração de stress gigante que é ir ao barbeiro. Eu, uma vez, tentei ir a um barbeiro ao pé de minha casa e ele literalmente mandou-me para o caralho, porque não atendia mulheres. Eu tentei explicar-lhe “Mas eu tenho corte de homem, eu pensava que a distinção era só a especialização em cortes de homem ou cortes de mulher”, mas ele recusou-se completamente. E isto é uma coisa que já me aconteceu várias vezes. É eu tentar ir cortar o cabelo e ser rejeitado porque tenho este ar ou tenho aquele. A última vez que fui cortar o cabelo a um cabeleireiro foi num daqueles cabeleireiros mais de cadeia e eles tiveram de me levar um bocado à parte para não dar mau ar, porque eu vou sempre à zona de barbeiros. 

E, para mim, foi uma coisa tão dura, tão… Uma chapada na cara completamente – “Ok, tu continuas a ser visto como mulher, continuas a não poder estar nos espaços” – que eu chorei até casa. Eu fiquei mesmo, mesmo mal e tive que ligar de emergência à minha psicóloga, porque eu estava “O que é que eu faço quanto a isto?”. Eu não estava à espera, eu não estava mesmo à espera.

XII

Eu sou acompanhado por uma psicóloga que é especializada em assuntos trans. Nós fazemos duas coisas: exploramos a minha saúde mental e a minha transição. Eu acho que ter um diagnóstico foi mesmo… Foi um ponto de viragem. Foi um alívio. É muito libertador… A doença não desaparece, mas tem um nome. É uma coisa mais palpável do que “Não me levantei da cama durante duas semanas, nem para tomar banho”.

“Ok, isto está-te a acontecer, mas isto não é tudo o que tu és. É uma coisa que te acontece, não é o teu ser, tu não és assim.”

E depois a psiquiatria… A psiquiatria ajudou-me mesmo muito. Eu tomo ansiolíticos e tomo comprimidos para as insónias, quando tenho. E isso para mim foi, honestamente, o maior alívio que eu já senti. Eu conheço muita gente para quem estas coisas não funcionam – os ansiolíticos e tudo mais nem sempre funcionam, nem sempre as doses são certas, é uma coisa muito difícil de se acertar para cada pessoa.

Mas o meu psiquiatria foi impecável. Cada vez que eu me queixo de alguma coisa, ele muda-me as doses. E, no início, eu comecei a tomar, e não senti muita diferença – aliás, senti que piorou um bocado nalgumas coisas. Uma coisa que ninguém nos avisa é que quando se começa a tomar ansiolíticos, antidepressivos, antipsicóticos, no primeiro mês a coisa piora.

E ele acabou por me subir a dose e tudo mais. E, pela primeira vez em muito tempo, eu sinto que o meu cérebro está calado. Isto, para mim, é uma coisa que não tem valor, é mesmo… Eu consigo pensar. Eu como ser, indivíduo, consigo-me ouvir, consigo não estar sempre focado naquelas coisas. Ter espaço. Ter um bocado de espaço para existir para além dos pensamentos obsessivos, para além da vontade de fazer alguma coisa que me magoe. Consigo existir, e isto para mim…

Margarida David Cardoso: É impagável.

Nico: É mesmo impagável.

XIII

Eu tenho noção que as pessoas olham para mim e veem uma “ela”. E isso faz-me um bocado de confusão, mas eu percebo, eu tenho noção da minha aparência neste momento. Mas quando eu comecei a fazer transição social, no final do ano passado, eu mandei-me completamente para o espectro masculinizante, das roupas, do cabelo, tudo, para tentar passar. Que também é uma palavra que eu detesto, mas pronto, é um facto. Durante ali alguns meses eu usei binder, porque parecia que – e eu até falei sobre isto com a minha psicóloga – a partir do momento em que tu te assumes, mesmo eu não me identificando como binário – identifico-me ali mais na zona do neutro, mais para o masculino – parece que há uma lista de tarefas, de coisas que tens que fazer: cortar o cabelo, check; usar binder, check; querer tomar hormonas, check… Mas não é. A experiência é uma experiência individual, eu acho. E durante ali alguns meses, eu sentia que eu tinha que provar a toda a gente que “Ok, eu sou mesmo trans. Olhem para mim, estou só a usar roupa de homem. Eww, roupa de mulheres.”

Mas eu apercebi-me que isso também não me estava  a fazer confortável, porque eu sinto-me mais confortável com a zona da androgenia… Eu agora uso a roupa que me apetecer, depende do dia, é um bocado como eu acordar virado.

O meu objetivo é as pessoas olharem no metro e ficarem “O que raio é aquela pessoa?” É mesmo o meu objetivo, aquelas pessoas que são atraentes e tu ficas: “Não me importo que aquilo seja um homem ou uma mulher, gosto!”

XIV

Margarida David Cardoso: Esta entrevista, como as anteriores que ouviste, foi feita há muito tempo. Era setembro de 2020. Nico trazia um vestido vermelho comprido, com pequenas flores brancas, que lhe ficava um pouco acima do tornozelo, e dois brincos com um par de cerejas vermelhas, na moldura do cabelo curto. “Aposto que não era o que estavas à espera”, atirou mal o vi à porta da redação. 
Já era habitual Nico chegar-se à frente para falar na sua experiência de pessoa trans não-binária. Mas nunca tinha pensado fazê-lo por causa dos seus problemas de saúde mental. Encontramo-nos através da Casa Qui, uma associação em Lisboa com respostas na área da saúde mental, ação social e educação, especializada em questões de orientação sexual, identidade e expressão de género. É lá que Nico tinha consultas de psicologia e, mais tarde de psiquiatria, a preços que podia pagar.

XV

Bernardo Afonso: “Tenho ganas de gritar dentro da cabeça. Quero parar, esmagar, partir esse impossível disco gramofónico que soa dentro de mim em casa alheia, torturador intangível. Quero mandar para a alma, para que ela, como veículo que me ocupassem, siga para diante só e me deixe. Endoideço de ter que ouvir. E por fim sou eu, no meu cérebro diretamente sensível, na minha pele arrepiada, nos meus nervos postos à superfície, as teclas tecladas em escalas, ó piano horroroso e pessoal da nossa recordação.”

Citação do Livro do Desassossego, de Bernardo Soares

CRÉDITOS

Nuno Viegas: Acabaste de ouvir o terceiro dos cinco prólogos da série Desassossego, sobre saúde e doença mental. Este chama-se “Há sempre barulho”. Se quiseres ouvir já o próximo episódio e todos os seguintes basta fazeres uma contribuição mensal para o Fumaça. Quem nos apoia já tem acesso à série completa de 13 episódios. Vai a fumaca.pt/contribuir e ajuda-nos a ter a primeira redação profissional portuguesa totalmente financiada pelo público.

Este episódio foi escrito pela Margarida David Cardoso que fez a entrevista que lhe dá origem. O Bernardo Afonso compôs e interpretou a banda sonora original, fez a edição e o desenho de som e é ainda a voz que ouves a recitar excertos do Livro do Desassossego de Bernardo Soares. O Pedro Miguel Santos fez a edição e revisão de texto. Eu, Nuno Viegas, fiquei com a verificação de factos. A Joana Batista criou a identidade visual. A Maria Almeida e o Ricardo Esteves Ribeiro, a estratégia de marketing. O Fred Rocha fez o desenvolvimento web. Todas estas pessoas participaram na construção coletiva da série. Podes encontrar em fumaca.pt a transcrição de todos os episódios, fontes, documentos e imagens relacionadas. Fazem ainda parte da equipa Fumaça: Danilo Thomaz e Luís Marquez. 

A produção desta série foi parcialmente financiada por bolsas de apoio ao jornalismo de investigação da ARIS da Planície – Associação para a Promoção da Saúde Mental, do Sindicato dos Jornalistas, em parceria com a Roche e da Fundação Rosa Luxemburgo. Podes ver os contratos em fumaca.pt/transparencia.

Até já.

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