A dor do mal trabalhar

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TRANSCRIÇÃO

Nuno Viegas: Olá. Eu sou o Nuno Viegas.

Este é um aviso à navegação: no Fumaça, produzimos séries audiodocumentais, de jornalismo de investigação, são longas e densas. Publicamos há um ano Desassossego, uma série de 13 episódios sobre saúde e doença mental. Dá muito jeito que a tenhas ouvido para ter contexto para este episódio. É lá que falamos em detalhe das condições de internamento psiquiátrico, as consequências da sobrelotação, os abusos e sobremedicação.

Vamos falar disto aqui, mas sem o contexto ou a nuance que merecem. Portanto, antes, ou depois, vai ouvir a série.

Por agora, põe phones ou auriculares. Vai para um espaço silencioso. E sugeria que ouvisses tudo de seguida. O episódio é narrado pla Margarida David Cardoso.

I

Joana Macedo da Cunha: Eu, se calhar… Estou aqui a pensar. Oh, Margarida, eu estou aqui a pensar que há uma parte do final do meu primeiro ano de internato… Eu, se calhar… Eu vou-te contar e depois se… E depois vou refletir um bocadinho melhor.

Margarida David Cardoso: Esta é Joana Macedo da Cunha, psiquiatra. Tem um pavor à ideia de que esta história possa girar à sua volta, mas anuiu a que falássemos sobre este episódio, porque ele não é apenas sobre a Joana.

Joana Macedo da Cunha: Eu passava muito tempo no internamento, não é? E havia o internamento… Tinha pouca gente. Tinha poucos enfermeiros, tinha poucas pessoas. Havia agitações psicomotoras e contenções físicas e químicas em excesso. Para além disso, quando tu tens um serviço com pouco staff e tens uma ou duas ovelhas negras… É muito difícil controlar o trabalho dessas duas ou três ovelhas negras que, às vezes, podem passar mais a linha do… Podem completamente passar a linha do razoável.

Margarida David Cardoso: Diz que havia denúncias de pessoas internadas.  E que não era infrequente doentes queixarem-se de que eram ameaçados.

Joana Macedo da Cunha: “Se não te portas bem… Se não te portas bem, vais fazer a injeção.” Ou “Se não comes”… Sei lá, “vais coercivo”. E toda a gente sabia. Toda a gente sabia. Toda a gente ouvia os doentes reportar.

Margarida David Cardoso: Joana usa a expressão “onde há fumo, há fogo”.

Joana Macedo da Cunha: Ou, pelo menos, tens a obrigação de ir ver o que é que está a acontecer. E eu incomodava-me muito, porque toda a gente dizia: “É muito difícil, é muito difícil. Não é assim tão frequente, é muito difícil. É a falta de staff.” Mas eu achava que nós não termos conversas frequentes sobre isso era absurdo. E, tipo, está bem, temos pouco staff, então não sei… Feche-se o serviço. Se não há condições para trabalhar em segurança com cuidados humanizados dos doentes… Eu também nessa, eu era.. Era e, se calhar, sou um bocadinho mais radical do que a maior parte dos meus colegas. Pronto, não há, não se faz. Porque a solução não pode ser nós recebermos os doentes para os tratar e os doentes serem mal-tratados. Não pode ser. Então, mais vale estar quietos, não é?

Margarida David Cardoso: Joana era daquelas pessoas que dizia “Eu vou para medicina para ser psiquiatra”. Sempre gostou de conversas filosóficas e discutir a fundo questões existenciais, e achava que a psiquiatria era a oportunidade de explorar isso com um grande número de pessoas.

Joana Macedo da Cunha: Era um bocadinho inocente essa minha perspectiva, agora eu percebo isso.

Margarida David Cardoso: Durante o curso, um fascínio inesperado por cirurgia ainda a fez hesitar.

Joana Macedo da Cunha: Lembro-me dos meus amigos dizerem: “Oh, Joana, eu não sei porque que tu vais escolher outra coisa, porque tu és aquela pessoa a quem toda a gente conta os segredos. Tem alguma coisa na tua personalidade que se calhar podia ser útil na psiquiatria”.

Margarida David Cardoso: Mas, logo no primeiro ano de internato, o primeiro de formação como médica especialista, as expectativas foram-se desencontrando da realidade. Foi em Faro que se confrontou com o que chama de ovelhas negras e relatos de ameaças de injeções. Era 2014 e o serviço tinha cinco psiquiatras a tempo inteiro e um a tempo parcial. Deviam ser 17.

Joana Macedo da Cunha: Foi um choque. Foi um choque, mas foi um choque lento, porque eu achava que ia encontrar uma maneira muito mais científica, com linhas orientadoras muito mais fixas de como falar com as pessoas, ou como extrair a informação que tu precisas, como… Mesmo até em termos de tratamento, eu achava que ia encontrar respostas certas. E, durante o primeiro ano, eu passei o ano inteiro a tentar… Falavam-me de um assunto, davam-me uma tarefa para eu estudar… Eu tinha que ir estudar sobre as perturbações do humor. E eu entrava a fundo nas perturbações do humor e, quando chegava ao fim, aquilo que toda a gente estava a repetir com tanta certeza, não era assim tão seguro, não era assim tão certo. E isso, para mim, foi um choque.

Margarida David Cardoso: Por ter o poder de privar alguém da sua liberdade, Joana precisava de confiar no modelo que usava para decidir. Mas marcaram-na em particular as condições de internamento.

Joana Macedo da Cunha: Aquilo que me aconteceu ao longo do 1.º ano foi pensar: “Eu não sei como é que é, mas assim não pode ser. Não pode ser assim, não, assim não é. Como é que as pessoas vão melhorar assim? As pessoas não vão melhorar assim. Eu não melhorava assim”.

Margarida David Cardoso: Joana quer tirar o foco de casos particulares. Isto não é sobre ela nem sobre os sítios onde trabalhou. É maior. Por isso, arrisca apenas uma ou outra descrição concreta, como aquela com começamos este episódio. Estava a chegar a última semana de trabalho em Faro daquele primeiro ano de internato.

Joana Macedo da Cunha: Lembro-me que eu ensaiei tantas vezes o que é que havia de dizer… Tantas vezes em frente ao espelho – ridículo, mas pronto. Tantas vezes, tantas vezes, e eu lembro-me que… Aconteceram uma série de coisas com alguns doentes com quem eu estive mais envolvida no cuidado, e eu pensei: “Eu tenho que dizer. Eu tenho que dizer”. E estava nesta… Até com as lágrimas nos olhos, a subir umas escadas, e a minha diretora de serviço cruzou-se comigo. E ela disse: “Joana, está tudo bem?” E eu disse: “Não, não está tudo bem. Não está tudo bem. Não está tudo bem. E eu tenho que lhe dizer que os doentes queixam-se muitas vezes do tratamento agressivo por parte das equipas do internamento, e de uso de força excessiva, e de ameaças verbais. E toda a gente sabe e eu não sei… Eu não sei se se sabe isto, ou se isto é uma novidade para si, portanto, tenho que lhe dizer eu”.

Mas eu lembro-me que isto foi… Eu acho que até foi um bocado… Eu sou um bocado impulsiva. E acho que foi um bocado a minha impulsividade, eu não… Eu não consigo aguentar isso mais tempo, sabes? Porque a nossa diretora disse: “Não estou a perceber o que é que está a acontecer. Vamos parar tudo e vamos todos para a sala de reunião, porque eu preciso de perceber o que é que está aqui a acontecer”. Bem, eu gelei por dentro. Pensei “Agora vou eu ter que explicar”…

Margarida David Cardoso: Ficar em cheque.

Joana Macedo da Cunha: E pronto. E tivemos uma conversa. Eu lembro-me perfeitamente de que nessa reunião os outros profissionais de saúde, terapeutas ocupacionais, estavam a saltar para cima da mesa, a relatar relatos. Relatar coisas que tinham acontecido e o que é que os doentes tinham dito. E aí toda a gente… Aí, já toda a gente falava e toda a gente dizia, não é?

Opa, mas, na verdade, eu só fiz isso, porque na semana a seguir ia-me embora. E fugi. Porque eu tenho a certeza que, nunca na vida, eu ia conseguir trabalhar com esta equipa de internamento depois de ter dito aquilo.

Margarida David Cardoso: Joana foi para Lisboa fazer estágio num hospital maior. Nos anos a seguir, quando tinha que voltar a Faro para fazer exames da especialidade, evitava visitar o internamento.

Joana Macedo da Cunha: Eu não ia lá acima. Não ia. Não ia ao internamento, eu morria de medo do que é que… Percebes? Do que é que ia acontecer, que é… Eu, hoje em dia, olho para trás, penso nisto e penso assim: “Mas por que é que era eu que tinha medo?”

Mas, quer dizer, eu sempre fui vista como “a que arranja confusão”, não é? “A pessoa que arranja confusão.”

E ao mesmo tempo, eu, naquela altura, pensei: “Eh pá, mas foi bem, foi bem. Fui corajosa e não sei o quê.” E hoje olho para trás, ao mesmo tempo, e penso assim: “Mas não fui nada, não é? Só disseste aquilo que te estavam a dizer. Devias ter dito a primeira vez que te disseram alguma coisa. Porque é que esperaste pelo fim do ano e pelo momento que te ias embora para dizer?”

Margarida David Cardoso: Este episódio conta os debates internos de duas profissionais de saúde perante o sofrimento ético e o burnout, a solidão da denúncia e a doença mental em quem se dedica a tratá-la. Seja toda a gente bem-vinda ao Fumaça.

II

Joana Macedo da Cunha: As doenças psiquiátricas roubam-te tudo, não é? Tu deixas de ter a capacidade de decidir por ti próprio sobre coisas simples, como a tua capacidade de te manteres seguro, a capacidade de manteres a tua integridade física intacta. As pessoas levadas por delírios e alucinações muitas vezes ficam desconfiadas das pessoas que são mais próximas, e dizem coisas muito difíceis, rompem as ligações, porque estão muito doentes.

E depois a resposta a isto é muitas vezes com julgamento e com castigo. E quase como se a pessoa tivesse feito aquilo a ela própria, como se a pessoa se estivesse a portar mal.

E claro que isto não é toda a gente. E eu sei que a maior parte das pessoas não pensa assim, mas é o que o sistema faz. Estão lá no fundo das prioridades de toda a gente. E, em vez de ajuda, têm crítica e… E punição. E menos. E, quer dizer, ficam numa posição em que… Sei lá, um par de sapatos é um luxo.

Margarida David Cardoso: Notavas isso particularmente no internamento?

Joana Macedo da Cunha: No internamento, nota-se muito, porque há coisas que se fazem e que eu percebo porque é que não se consegue fazer de outra maneira com os recursos que têm.

Quer dizer, tu estás no pior momento da tua vida e põem-te num sítio com pessoas que tu não conheces, que também estão no pior momento da vida delas, e não tens nada para fazer. Não tens o teu quarto. Não tens as tuas coisas. Não tens acesso a ninguém. E estás ali a olhar para as paredes ou a ver televisão, numa televisão longe que ninguém consegue ouvir o som. Quer dizer, como é que… Sei lá. Não há. Não há nada.

Margarida David Cardoso: A função dos internamentos psiquiátricos é estabilizar sintomas graves e intensos. O que ainda pode exigir uma estada longa. Em média, quase 22 dias no Serviço Nacional de Saúde, pelos dados mais recentes, de 2022. Nas restantes especialidades hospitalares, a média não chega a nove dias de internamento. Há quem esteja internado na psiquiatria várias semanas ou meses.

Joana Macedo da Cunha: Eu posso-te dar um exemplo que é uma coisa bastante comum nos serviços de psiquiatria, que é: a pessoa não pode ter o telemóvel. Tu tens doentes que se estão, portanto, numa fase muito difícil da doença, se calhar vão fazer uma má utilização do telemóvel, o que lhes vai trazer a eles próprios mais dificuldades no futuro. Lembro-me que havia pessoas que tentavam fazer compras, comprar carros ou pronto, coisas que nós obviamente sabemos que estão ligadas com a doença, e temos que as proteger desse tipo de… Pelo menos tentar mediar isso, não é? E tu não podes ter um internamento em que está toda a gente desocupada e uns têm telemóvel e os outros não têm, porque senão o que aquilo que acontece é: os que não têm e que estão, se calhar, por motivo da sua doença, um bocadinho mais desinibidos, vão atormentar os que têm para poderem usar o telemóvel deles. E tu, como não consegues gerir isso, a solução é: ninguém tem telemóvel.

Parece que estamos a falar de um grupo de miúdos, não é? E tu dizes: “Ah, tu não sabes usar o teu telemóvel, agora portaram-se todos mal, portanto fica toda a gente sem telemóvel”, que é… Quer dizer, é inacreditável que isto… Mas, ao mesmo tempo, eu quando estava naquela situação e naquele serviço, eu fui uma das pessoas que dizia: “Epa, se não dá, não dá. Mais vale não ter ninguém.” A alternativa era gritos constantes. Percebes? Não havia uma alternativa decente.

Margarida David Cardoso: Joana acredita que, se houvesse mais pessoal, espaço e ocupações, as coisas seriam melhores.

Joana Macedo da Cunha: Mas eu acho que não é só isso. Acho que não é só isso. Acho que é o facto de tu estares a tratar pessoas que não conseguem defender-se. E que, quando se tentam defender, muitas vezes ninguém acredita nelas.

Margarida David Cardoso: As pessoas já têm menos agência pelos contornos psicóticos de algumas doenças. A somar a isso, o estigma.

Joana Macedo da Cunha: Mas depois não há nada no sistema que as ajude a decidir por elas. O caminho mais fácil é tirar-lhes o bocadinho de resto da agência que eles têm. É roubar-lhes esse bocado, porque é mais seguro. Permite que as coisas continuem a funcionar. Permite manter todos como um grupo seguros, mas aquela pessoa individual está roubada desse bocadinho.

Elas já tem pouco e o sistema, às vezes, parece que, sob a alçada de os manter seguros, ainda lhes tira o resto.

E se tu tens um serviço em que começas a normalizar estas coisas, já não é só a falta de profissionais. O que tu tens é: o que é normal, já não é normal. E o teu limiar de dizeres “Epa, isto não é ok” começa a mudar.

III

Joana Macedo da Cunha: Olha, eu lembro-me que, uma vez, mandaram-nos uma doente. No hospital de Faro, os doentes chegavam pela urgência geral e tinham que ser enviados de ambulância para o serviço de psiquiatria. E era uma senhora que tinha feito uma tentativa de suicídio, e ela tinha análises, mas não tinha as análises que nós achávamos que precisávamos para a internar com segurança. Mas a senhora estava muito sonolenta, numa cadeira de rodas, e nós tínhamos enfermeiros, tínhamos tubos de sangue. E eu disse: “Vamos colher o sangue e mandamos o sangue para cima”. Disseram-me: “Não, não pode ser, não pode ser. Tem que ir a doente, tem que ir lá acima”. “Mas a doente tem que ir lá a cima porquê? Nós temos os tubos, temos o sangue, temos tudo, temos o enfermeiro para colher o sangue, porque é que a doente tem que ir lá acima?”, “Porque não temos a máquina de imprimir as etiquetas da urgência”, “Vocês estão a brincar comigo. Eu não vou mandar a doente lá acima, porque nós não temos uma máquina de imprimir etiquetas. Quer dizer, a ambulância vai lá a cima, leva o sangue para o laboratório. Qual é a lógica de ir a doente, que não se consegue segurar de pé, lá acima, quando pode subir imediatamente para o internamento e descansar, que é o que ela precisa? Eu não vou mandar o doente lá acima”.

Claro que depois o meu orientador, que era bastante tolerante com estas minhas incursões pela justiça, disse-me: “Oh Joana, olha, queres tentar resolver? Vai tentar resolver”. E eu estive mais de duas horas… Eu consegui, no fim, eu consegui. Pus uma etiqueta, selei o envelope com os tubos de sangue lá dentro e consegui, mas estive duas horas de volta disto. Obviamente que se eu fosse a única médica de urgência… Se eu não fosse uma interna do primeiro ano, era impossível. E toda a gente estava muito chateada, irritada comigo – por que é que eu estava a insistir naquilo?

Quão insensíveis à experiência destas pessoas temos que nós estar para achar, porque o laboratório ou não sei quem acha que tem que ter a etiqueta… – é que nem é a etiqueta identificadora do doente, é a etiqueta da urgência – que nós vamos mandar o doente lá cima?

Eu acho que é um exemplo de como o sistema está: está toda a gente adormecida. Ninguém consegue ver já, está tudo… Está tudo a tentar sobreviver e ninguém vê estas coisas.

Margarida David Cardoso: Em 2016, nove mil médicos responderam a um inquérito da Universidade de Lisboa sobre sintomas de burnout. Dois terços reportaram níveis altos de exaustão, cansaço e desgaste emocional. Quase 40% denunciaram elevada despersonalização. Tinham sentimentos de frieza e distância face aos doentes.

E em 2023, o Conselho Nacional do Médico Interno inquiriu 1700 médicos em formação. Quase um quarto apresentavam sintomas já graves de burnout. Pior nos médicos mais avançados no internato.

IV

Margarida David Cardoso: O que foi acontecendo ao longo do teu internato, quando te percebeste da maneira como as coisas funcionavam e com isso ia contra aquilo que tu achavas que era possível fazer, o que devia ser feito, ou o que as pessoas mereciam?

Joana Macedo da Cunha: Olha, eu tive uma reação muito pouco saudável, muito pouco saudável. A minha reação foi: “Ok, isto não está bem, vou fazer eu. Eu vou fazer tudo. Vou… Vou viver no internamento. Vou lá estar sempre e vou tentar controlar o maior número de coisas que eu conseguir”.

E chegava a casa e o que eu fazia era ler sobre psiquiatria, e falava sobre psiquiatria ao fim-de-semana. E pronto, era isso, era a minha vida. Era tentar perceber o que é que estava a acontecer e tentar fazer melhor. Mas não só isso não é uma boa ideia – é a receita ideal para o burnout –, como irrita as pessoas à volta. Irrita. Eu percebo porquê. Estás a entrar no papel que não é o teu. “Joana, estás a tentar fazer coisas que não são o teu papel como médica.” Mas isto não é uma questão de ser o meu papel. Isto é decência humana básica, não é… Não é o papel de ninguém e é o papel de todos.

Claro que eu, hoje em dia, com um bocadinho mais de maturidade e mais experiência, olhando para trás, penso “Epá, realmente, não era o meu papel”. E eu, se calhar, não ajudei. Se calhar não, de certeza: não ajudei, não fiz diferença nenhuma. Só aliviei a minha própria consciência naquele momento, de achar que estava a fazer alguma coisa.

Mas ao mesmo tempo que digo isso, e que reconheço isso, também não sei o que é que eu conseguia ter feito, porque não fazer nada para mim também não era uma opção. Porque eu não conseguia. Eu não conseguia.

Margarida David Cardoso: Mais tarde, falo a Joana de uma outra psiquiatra, mais velha, que nos contou uma vez como denunciou o assédio moral de uma chefia. Como se sentiu isolada a denunciar algo que toda a gente sabia.

Joana Macedo da Cunha: É isso. A solidão dessa posição é horrível, porque tu começas a duvidar da tua própria sanidade. E pensas: “Mas será que sou eu que estou a ser má para os meus colegas e não consigo perceber que eles também têm dificuldades?” Mas, quer dizer, ao mesmo tempo eu percebo: eu tenho que defender os meus colegas, mas eu estou aqui para proteger os doentes. Eu não posso proteger os meus colegas em detrimento do mínimo para os meus doentes. Não posso. Isso é muito triste. Ainda me deixa muito triste isso. Confesso.

Margarida David Cardoso: No final desse 1.º ano, Joana sentia que já não conseguia mais, que precisava de sair dali e ver outra coisa. É aqui que decide ir para Lisboa.

Pergunto-lhe que consequências teve tudo isto para ela, se se pode chamar sofrimento ético – quando o trabalho implica fazer coisas com os quais não concordamos, ou sentimos que estamos, de alguma forma, a compactuar com elas, sem capacidade de sair.

Joana Macedo da Cunha: Eu acho que é uma daquelas coisas que vai acontecendo aos bocadinhos. Tu vais mudando a tua linha. Vais mudando a tua linha. E vai-te mudando a ti, não é? Vai-te mudando a ti. E aquilo que tu pensas de ti. Porque estas coisas que eu digo, ou que eu aponto aos outros, quando tu fazes parte do sistema, tu também és parte do problema. Tu também estás… Estás a permitir que isto aconteça.

Lembro-me, por exemplo, quando os doentes dizem: “Vai-me internar, vai-me matar”. E tu pensas: “Eu não tenho outra solução, mas eu percebo o que tu me estás a dizer.” E és tu que estás a tomar essa decisão. É horrível, é horrível. Morres um bocadinho por dentro.

Eu lembro-me que houve um senhor que, na altura da desinstitucionalização de muitos doentes da psiquiatria, que morava no Miguel Bombarda, e a maneira como ele contava era: “Eu morava no Miguel Bombarda e um dia, olha, eles resolveram que eu podia, podia ir morar para outro sítio.” E morava na rua. Nunca mais fez medicação. E ele estava muito desorganizado e estava, estava… Não vivia em condições humanas. Ele torceu um pé, foi a urgência e os médicos de ortopedia pensaram: “Olha! O que é que se passa aqui? Este senhor não está bem, ele tem que ser visto pela psiquiatria”.

Quando eu o vi era a meio da noite e pensei “O que é que eu faço? Eu sei que este senhor tem uma doença crónica, mas ele mora na rua. Eu agora vou deixar este senhor ir para a rua assim? Sem sequer falar com um assistente social? Qual é a alternativa que eu tenho?” E eu achei que não tinha outra alternativa, que a alternativa que eu tinha era interná-lo. E eu nunca mais me vou esquecer que este senhor, quando lhe disse que ia ficar internado… Olha, ele disse: “Eu não acredito que me vai fazer isso”. E começou a correr e foi direto, tipo… Foi direto à parede. Começou a correr em direção à parede, percebes? E deu com a cabeça na parede, do desespero que ele teve quando eu lhe disse que ele tinha que ficar internado. Pensei: “O que é que é isto? O que é que eu estou a fazer?”, sabes?

E chorei o resto da noite, escusado será dizer. Sempre que penso no sofrimento moral, penso neste doente. E penso: “O que é que eu devia ter…?” Eu devia ter feito outra coisa, devia-o ter deixado, devia ter dado alta, devia ter assumido esse risco. Pronto, dava-lhe alta. Ele queria ir embora, dava-lhe alta. Mas ao mesmo tempo, percebes? É… É horrível. É horrível.

Margarida David Cardoso: A opção de mandar a pessoa para casa e pedir à família para lhe monitorizar a medicação não existia. Joana não encontrava forma de gerir o risco.

Joana Macedo da Cunha: Tu vês-te a ser uma pessoa que tu não queres ser. E os doentes dizem-te que tu és essa pessoa e tu não podes dizer-lhes: “Não, não, eu não sou. Eu não… Acredite em mim que eu até sou boa pessoa e até quero mesmo ajudá-lo”. Eu quero mesmo ajudar, mas eu não posso dizer que não sou essa pessoa, que não sou parte desse sistema. Eu sou parte desse sistema.

Margarida David Cardoso: Então, Joana decidiu ir estudar o problema à procura de uma solução.

Joana Macedo da Cunha: Se toda a gente tivesse uma melhor compreensão do que é que são as doenças mentais na realidade – ou seja, como é que uma pessoa tem alucinações? O que é que o cérebro faz para a pessoa alucinar? Ou o que é que o cérebro faz para a pessoa ter delírios? Se calhar, se houvesse uma compreensão sobre o mecanismo da doença, se calhar havia menos estigma e havia mais apoio. E as pessoas percebiam realmente que isto é das doenças mais graves da humanidade, não é um… Um desviante moral.

Margarida David Cardoso: E ela, que nunca se imaginou a ser académica, começou um doutoramento.

Joana Macedo da Cunha: Muito com o apoio de um psiquiatra que infelizmente já faleceu, de Faro, e de quem eu gostava muito. Eu lembro-me que ele me trazia artigos para ler. Trazia-me artigos científicos para eu ler, de coisas da neurociência cognitiva, de teorias de como é que se formam as alucinações do cérebro…

Margarida David Cardoso:  E Joana contou esta história a si própria: se eu fizer o meu bocadinho para a melhoria do conhecimento psiquiátrico, consigo ir trabalhando no hospital com os recursos que tenho, porque pelo menos há este refúgio, estou a tentar algo diferente.

Passou por Lisboa e por Londres, até que chega o final do 4.º ano de internato.

Joana Macedo da Cunha: Ok, eu já tive anos que chegue fora. Eu agora vou como mais autónoma. Vou fazer as coisas mais à minha maneira. Vou voltar para Faro. E fui mais um ano.

Margarida David Cardoso: Achou que o serviço estava diferente, muito melhor.

Joana Macedo da Cunha: Faro tinha muito mais gente nessa altura. E tinha a Mafalda, que foi uma agradável surpresa.

Margarida David Cardoso: Mas achou que havia coisas que continuavam iguais.

Joana Macedo da Cunha: Depois, quando tu começas a decidir, quando começa a ser tua a decisão, esse sofrimento moral é pior, porque tu estás a decidir coisas com as quais tu não concordas. E então aí é que a tua autoimagem começa a mudar. Tu começas a sentir-te mais indiferente aos problemas dos doentes. Eu lembro-me de pensar, uma altura, que eu só queria… Eu não queria ir para a consulta, eu não queria falar com as pessoas, eu só queria era estudar as minhas investigações, e fazer as minhas coisas, e seguir para a frente.

E depois há aqueles breves momentos em que tu olhas para ti e dizes: “Mas quem é esta pessoa? Não é? O que o que é que aconteceu à…? O que é que aconteceu à Joana? Onde é que está a Joana?

Margarida David Cardoso: No fim desse ano, muda-se para novamente para Londres.

Joana Macedo da Cunha: No fim desse ano, estava destruída. Os primeiros seis meses que eu vim para o Reino Unido estava… Não estava bem. Só de pensar em qualquer coisa relacionada com a psiquiatria, eu ficava em pânico. Total. Total. Não conseguia respirar. Eu não… Eu não quero saber. Eu não quero pensar sobre isto. Nada. Nem a investigação nem a clínica. Nada.

Margarida David Cardoso: Passaram-se dois anos sem psiquiatria. Entretanto, foi mãe a tempo inteiro, aprendeu a programar com Pithon, fez cursos de user experience design, foi procurar outras coisas.

Joana Macedo da Cunha: Pensei: “Não dá, eu não consigo, não quero mais. Não quero mais. Eu não posso, não posso ficar assim”. E não dá.

Mas, mas, afinal, afinal… Afinal, até dá.

Margarida David Cardoso: Posso-te perguntar, se quiseres ir por aí: como é que fizeste essas pazes? Como é que voltaste?

Joana Macedo da Cunha: Primeiro, dei-me a liberdade de pensar que nunca mais ia fazer isto. Permiti-me a ganhar sentido da minha vida de outras maneiras, e eu acho que isso foi muito importante.

Margarida David Cardoso: E depois, aos bocadinhos, foi deixando que lhe voltassem a falar sobre isto. Ela própria voltou a pensar na possibilidade de voltar. Quando se viu do lado da utente, numa consulta em Londres, numa clínica com atendimento em português, deu conta do aconchego que é ser cuidada na sua própria língua. E voltou, aos bocadinhos, a dar consultas.

Joana Macedo da Cunha: Comecei muito, muito esporadicamente. E eu vinha… Vinha nova. Comecei outra vez a embalar, na coisa de… Daquilo que eu gostava, percebes? De repente, comecei outra vez a redescobrir o quão eu gostava de falar com as pessoas.

Olha nisso, acho que tenho a agradecer a Mafalda, porque ela… Eu sempre que a encontrava, ela dizia duas ou três coisas. E dizia qualquer coisa como: “Eu sei que tu não consegues, mas era uma pena se tu nunca mais conseguisses”. E isso ajudou bastante, não é? Tu também tens as pessoas ao teu lado a dizerem “Opa, pois, se não quiseres, não faças, mas…

Margarida David Cardoso: Mas fazes falta.

Joana Macedo da Cunha: A gente gostava… Mas fazes falta.

V

Mafalda Corvacho: Eu não sei explicar muito bem porquê, mas eu, desde pequenina, que me interessava por cuidados de saúde mental. E quando tinha, à volta dos 12 anos, lembro-me de ter dito à minha mãe que queria ser psiquiatra. Acho que só me interessava por cuidar, se calhar, de coisas que eu não compreendia muito bem na altura.

Margarida David Cardoso: Mafalda Corvacho estava no 1.º ano de internato quando se cruzou com Joana, no 5.º. Diz que lhe aconteceu algo que não é raro na psiquiatria: ter uma ideia romantizada do trabalho, que depois não se concretiza.

Mafalda Corvacho: E o que aconteceu comigo… Pelo distanciamento tão grande entre o que eu idealizei e o que eu encontrei, e pela minha personalidade e maneira de ser e de ver as coisas… Isto resultou assim numa sopa um bocadinho complexa, que foi difícil de gerir, e é difícil de gerir, e ainda está a ser.

Margarida David Cardoso: Refugiou-se no trabalho ao mudar-se para uma cidade nova, onde não conhecia ninguém.

Mafalda Corvacho: Mas de uma forma que inicialmente até era bonita, eu acho. Nós também, às vezes, somos um bocadinho workaholics para fugir das coisas e achamos que, se nos dedicarmos mesmo muito às coisas, então estamos a dar um sentido às coisas e então estamos a fazer tudo bem, mas não.

Até que cheguei a um ponto de começar a perceber como é que funcionava realmente o tratamento, principalmente em contexto de internamento, do tratamento agudo da doença mental… Havia várias coisas que não me faziam sentido. Eu defendo muito a autonomia das pessoas em geral, e em particular dos doentes, não é? Que, principalmente nos serviços de psiquiatria, são postos numa situação muito mais vulnerável, porque podem perdê-la, o que não acontece muito nos outros…

Margarida David Cardoso: Mafalda achava que ia encontrar uma vertente psicoterapêutica mais desenvolvida e acessível, não uma ferramenta acessória. Achava que já não havia internamentos como os que via nos filmes. Achava que havia lugares com privacidade, confortáveis, com jardins.

Mafalda Corvacho: A maior parte dos doentes passa o dia a ver televisão, ou a jogar às cartas, ou a fumar cigarros. São internamentos à porta fechada. Mesmo aquelas pessoas que não estão internadas contra a vontade delas também não podem sair e ir ao bar como nos outros serviços.

Margarida David Cardoso: Os quartos são partilhados com várias pessoas. É muita gente fechada e desocupada.

Mafalda Corvacho: Mal tu entras no internamento, vêm logo cinco doentes a correr atrás de ti, para tentar falar contigo, porque estão ali sem fazer nada. E depois também vão tentar falar com os enfermeiros, porque estão aborrecidos ou começam a ficar ansiosos. Isto dá início aqui a um ciclo de cansaço por parte dos técnicos, porque também não conseguem dar resposta. E depois os doentes também estão cansados de estar lá. Depois os técnicos ficam irritados. E depois tratam mal os doentes…

Às vezes, as pessoas só queriam falar, ou queriam ouvir música, ou queriam ver uma coisa no Youtube…

Eu tinha uma colega que partilhava estas frustrações num nível muito semelhante ao meu. Então, nós falávamos muito sobre isto e, às vezes, trazíamos estas questões para a reunião de serviço.

Margarida David Cardoso: Mafalda começou a perceber o que Joana já conhecia: havia outros colegas que ou não pensavam da mesma forma, ou se pensavam não queriam que se falasse sobre isso.

Mafalda Corvacho: Quando começaram a haver mais incidentes, na altura com uma pessoa da enfermagem que estava, de certa forma, a castigar alguns doentes, e eu comecei a querer falar sobre isso com o serviço… Comecei a perceber que os conselhos que as pessoas me davam era… Eles tentavam descomplicar um bocadinho o assunto e dizer coisas do género: “Ah, mas tens de compreender, porque isto é assim, isto é assim, não sei o quê… E não te podes envolver tanto com os doentes, não te podes preocupar tanto, não te podes preocupar tanto se os doentes não têm isso, não têm aquilo”.

Eu honestamente acho que não me preocupava com coisas que eram assim tão extraordinárias. Estou a falar de coisas como um doente ser internado sem sapatos e ponderarem dar-lhe alta descalço. E eu tentei arranjar uns sapatos que lhe servissem e não havia nenhuns no hospital. Tentei que o serviço social comprasse. Não consegui. Então, eu própria fui comprar uns sapatos para o doente. Acho que não faz sentido uma pessoa sair para a rua descalça, pronto.

Estou a falar de coisas como não haver escovas dos dentes para os doentes lavarem os dentes no hospital, e não ser um problema para ninguém. E tens uma pessoa que de repente te diz que não lava os dentes há onze dias e… E tu tentas trazer estes assuntos para a discussão, e as pessoas continuam-te a dizer tipo: “Mafalda, não te podes preocupar tanto com isso… Tu és médica. Isso não é o teu problema. Tens que te preocupar se estás a medicar os doentes ou não.” E tipo… Não.

Margarida David Cardoso: Mafalda foi enchendo, ficando esgotada. Não era a única. Em 2021, perguntou-se a 200 profissionais de saúde do Hospital de Faro sobre sintomas de burnout. Quase 70% sofria de exaustão emocional. Um em cada seis estava em burnout. Pior entre os enfermeiros.

Mafalda Corvacho: Até que chegou a um ponto em que comecei a perceber que, enquanto interna, tinha autonomia para imensas coisas, mas não tinha autonomia para tomar decisões como “Eu acho que este doente não deve estar compulsivo”, ou seja, internado contra a vontade. Ou “Eu acho que este doente não deve fazer medicação contra a vontade”. Ou “Eu acho que não devíamos pôr esta medicação, se o doente não quer”.

Margarida David Cardoso: Estas coisas começaram a pesar. Mafalda conta que, um dia, tinha um doente a cargo internado compulsivamente, mas discordava que ele tivesse critérios para isso. Já a equipa clínica com quem discutia achava que sim, que o utente estava muito doente a esse ponto.

Mafalda Corvacho: E ela não queria fazer uma medicação específica, que é um antipsicótico injetável, porque já tinha feito no passado um injetável, que não era o mesmo, e tinha tido imensos efeitos secundários, então, para ela aquilo era uma coisa… Ela não queria, pronto.

Já que ela estava internada contra a vontade e eu tinha que estar com ela no internamento, eu queria pôr-lhe a medicação que fosse menos incómoda para ela. E esta pessoa, quando eu tive a conversa… Porque me disseram “Não, vai ter que fazer o injetável e tu tens que lhe dizer isso”, e eu disse “Ok”. E fui falar com ela e esta pessoa disse-me, depois de ter ficado muito irritada, ela começou a chorar e disse-me… E eu nunca mais me esqueço, porque ela estava sentada à minha frente e olha-me nos olhos, mesmo fixamente, e disse-me: “Já viste o quão irónico é. Tu, por seres médica, podes decidir a vida de uma pessoa.”

E lembro-me que fiquei completamente petrificada. E pensei só: “Eu concordo contigo, mas não posso dizer.” Isto foi uma daquelas gotinhas de água.

Estás num lugar em que és tu que falas com as pessoas, és tu que falas com os doentes, com a família e depois discutes com os orientadores ou com quem está contigo, que é responsável, que são especialistas. E depois, no limite, a decisão é dessas pessoas, mas és tu que levas isso para casa no final do dia. E eu acho que aí foi o ponto em que eu entrei, pela primeira vez, mesmo em rutura. E foi no final do meu 1.º ano de internato. E fiquei de baixa pela primeira vez, porque percebi que não consigo fazer isto.

Margarida David Cardoso: Como Joana, Mafalda defende que as decisões terapêuticas têm que ser discutidas e partilhadas com as pessoas doentes. Diz que normalmente isso não acontece, na psiquiatria, como na medicina em geral.

Mafalda Corvacho: E obviamente que, se tens uma pessoa que está extremamente psicótica, tu não lhe consegues ir dizer “Eu vou-te por esta medicação”, porque tu estás psicótico. Eu percebo isto, mas, se calhar, numa fase posterior isto deve ser falado, e discutidos os efeitos secundários, o que ela pode esperar que aconteça. Eu acho que, se calhar, se mais médicos fossem ao médico, se calhar, começavam a discutir.

Eu faço medicação agora e é completamente diferente quando falo com a minha psiquiatra abertamente sobre isso e discutimos isso em conjunto. Obviamente que eu sou psiquiatra e ela consegue ter uma discussão, se calhar, diferente do que conseguiria com outras pessoas que não têm o mesmo nível de conhecimento. Mas não importa. É coisas tão básicas como: “Vais começar a fazer esta medicação e, se calhar, vais engordar. Estás ok com isso? Ou vais perder a líbido. É um problema para ti? Ou preferes correr o risco de ir para um fármaco que, se calhar, vai ser menos eficaz, mas não tem esses efeitos secundários? E aí, se ele não resultar, é que vamos para este”. E aí tu sentes que… Pelo menos, eu sinto que faço parte do processo terapêutico e sinto que tenho agência sobre o que está a ser feito. E se a medicação falhar, aquela que eu escolhi que provavelmente tinha menos eficácia, a responsabilidade também é minha, porque eu também a escolhi.

Margarida David Cardoso: A primeira baixa durou um mês. Mafalda decidiu rapidamente que estava pronta para voltar.

Mafalda Corvacho: E voltei para o internamento e percebi que não conseguia fisicamente entrar no internamento. Comecei a ter ataques de pânico. Basicamente sempre que entrava naquele sítio, só o cheiro deixava-me logo a tremer. E eu dava por mim a enfiar-me na casa de banho a chorar. “Ok, eu não estou bem para tratar pessoas.”

E eu acho que fui-me aguentando, porque comecei a fazer medicação. Comecei a fazer psicoterapia e saí do internamento.

Margarida David Cardoso: Mafalda fez ano e três meses seguidos de estágio no internamento e, por sorte, calhava agora o momento de mudar.

Mafalda Corvacho: E então eu comecei a fazer outros estágios: fui para a comunitária, para o hospital de dia… E havia sempre problemas, mas eram problemas diferentes. Por exemplo, na comunitária passou muito por eu perceber a falta de apoio social que as pessoas com doença mental grave e crónica têm. Mas que é sempre vista como uma coisa mais separada, não é da nossa área de intervenção. Tipo, eu medico, eu recomendo fazer psicoterapia e eu recomendo isto, mas eu não posso fazer com que esta pessoa tenha dinheiro para comer. Isto, para mim, é muito difícil de gerir, porque eu não consigo delinear assim tão bem onde é que acaba o meu espaço de intervenção.

E obviamente que, se tu estás preocupada com isto, com todas as pessoas que vês, não é possível. Não é humanamente possível tu tentares-te preocupar com isto, quando não tens uma resposta. Porque se tivesses, ok.

Há uma negligência e um desinteresse geral pela psiquiatria, que toda a gente sabe que é o parente pobre da medicina. Mas isto não é só no Algarve .

“Ok, vou sair de Faro, e os problemas estão todos em Faro e vai ficar tudo bem. E eu vou perceber que os outros hospitais afinal são bons. E depois eu acabo internado e vou para um sítio melhor.” E depois vou para Magalhães Lemos e percebo que é a mesma coisa. E depois eu vou para Penafiel e percebo que é a mesma coisa. E estou na urgência na UMPP e percebo que é a mesma coisa.

VI

Margarida David Cardoso: Os anos passaram e Mafalda chega ao 5.º e último ano do internato.

Mafalda Corvacho: E cheguei a um ponto em que eu pensei mesmo: “Eu não sei qual é o meu lugar na psiquiatria, porque eu não me encaixo neste sistema”. Eu não me revejo na maneira como os doentes são tratados. Eu não me revejo na maneira como os profissionais de saúde são tratados, porque… É muito difícil ser psiquiatra e nós não temos espaço para… Imagina.

Imagina que tu tens uma história de trauma, que é super intensa para ti, e vês uma doente na urgência que te partilha uma história parecida. E tu ficas sem ferramentas para trabalhar aquilo. Ou até consegues, mas aquilo deixa-te super ansiosa. Não há um espaço para tu falares sobre isto ou…

Eu acho que posso partilhar isto, porque é a minha experiência pessoal e… E sei que isto acontece, porque aconteceu comigo… Eu tive uma perturbação do comportamento alimentar durante muito tempo e, para mim, tratar de doentes com perturbações de comportamento alimentar que são anorexia, bulimia, outras… Para mim, é muito difícil e eu nunca sentia que havia espaço… Primeiro, porque não é um espaço marcado para isto – tipo supervisão, discutires casos, casos que te estão a ser difíceis de gerir, seja por que motivo for… Porque o teu tio teve essa doença. Porque a pessoa não está a responder à medicação. Porque… Isto não existe.

Não há espaço para tu falares dos teus próprios problemas. Se tu não estás bem, não há espaço para não estar bem. E não há abertura para um psiquiatra ter uma doença mental. E, por exemplo, em relação às perturbações de comportamento alimentar, há imenso estigma entre psiquiatras. A maneira como falam das… São maioritariamente mulheres, mas a maneira como se fala das mulheres com perturbações de comportamento alimentar é, assim, com algum desprezo.

Imagina o que é tu estares com os teus colegas e eles estarem a comentar histórias de doentes que têm histórias parecidas com as tuas, e estão a fazer juízos de valor… E tu estás-te a rever naquilo e pensas: “Ok, e agora como é que eu digo que isto também aconteceu comigo? Como é que eu digo que não consigo tratar uma doente, porque também tive este problema?” E não consigo… É demasiado triggering para mim falar sobre isto.

E eu comecei a chegar a um ponto em que sentia: “Eu não concordo com isso. Eu não quero fazer isto. Eu não quero ser responsável por isto.”

No fundo, eu percebi que a psiquiatria tem sido um bocado violenta. Foi violenta para mim. É violenta para os doentes, desde a forma mais abstrata à mais concreta. Ou seja, há um nível de violência que eu acho que não é facilmente eliminável, porque a própria doença mental é violenta. O sofrimento é violento. Tu seres internado contra a tua vontade é violento. Mas, às vezes, é necessário.

Ou seja, eu acho que há um tipo de violência que não é possível de eliminar na totalidade. E isso é duro. E esse era o tipo de violência que as pessoas me avisaram quando eu escolhi psiquiatria: “Não vás para psiquiatria, porque é muito difícil, e vais ouvir pessoas a falar de problemas o dia todo, e vais ler contigo isso para casa”. E isso é difícil. É mesmo difícil. E é violento. Mas ok, se a pessoa não fizer, vai ter que vir outra pessoa, portanto, isso tem que ser feito, pronto. E arranjas estratégias para lidar com isso.

E depois há um tipo de violência que podia ser eliminada se os sistemas funcionassem melhor, mas que tu tens que a fazer, porque não há outra maneira. Ou seja, não existe necessariamente maldade quando estás a fazer aquilo, mas tem que ser, porque é o que há. Tratamentos compulsivos que são prolongados no ambulatório, porque não tens outra forma de garantir que o doente faça a medicação, e não há instituições e blá blá blá. Então tem que ficar e o doente é obrigado a vir. Isto é violento para o doente. Era possível que isso não acontecesse? Era, mas neste momento não é, então tens que o fazer. Ou os internamentos compulsivos. Ou a maneira como o internamento funciona.

E depois há outro nível de violência, a que alguns eu assisti, outros não assisti mas doentes contaram-me, e outros colegas meus também já viram, que tem a  ver mesmo com violência: agressão verbal, psicológica e física nos serviços de psiquiatria dirigida a doentes. E isto, se calhar, é assim a coisa que pode chocar mais se sair cá para fora. Só que não sai, porque pessoas com doença grave não fazem queixa de profissionais de saúde, por vários motivos: por medo de represálias, porque estão internados para sempre naquele sítio, porque não sabem que podem.

E tu não vês, não podes fazer nada. Falas com pessoas, não podes fazer nada. E levas estas informações contigo para casa e ficas… É frustrante tu sentires que estás num sítio onde sabes que há profissionais que batem nos doentes e tu não podes fazer nada com esta informação, porque não viste. Eu cheguei a pensar em ficar à noite no hospital para ver se… Se via coisas, mas a certa altura pensei: “Ok, onde é que estão os meus limites?” Não sei como é que… Como é que se gere isto honestamente.

Margarida David Cardoso: O último ano de internato foi interrompido por uma nova baixa.

Mafalda Corvacho: Não tinha vontade de fazer nada. E eu adorava… Adorava trabalhar em psiquiatria, e cheguei a um ponto em que eu acordava e não me apetecia. E isso assustou-me imenso, porque eu não era assim. Deixou de me apetecer estudar e fazer trabalhos para fora do hospital, porque nós, no internato, temos que fazer muitas coisas. Mas eu sempre fiz muito mais do que aquilo que era preciso por interesse. Deixei de conseguir.

Deixei de conseguir ler. Não me conseguia concentrar. Comecei a demorar imenso tempo a ver os doentes, então comecei a trabalhar muito mais horas, porque tinha medo de fazer erros e que me passassem coisas despercebidas.

E como eu estava sozinha já, porque já era interna do 5.º ano, já tinha uma responsabilidade maior. Então, comecei a chegar a um ponto em que estava quase a trabalhar 12 horas por dia, todos os dias, porque eu queria ver os doentes todos, porque achava que eles tinham que ser vistos no tempo que tinha sido pedido, porque achava que eles não tinham culpa de não haver médicos suficientes para os verem naquele dia… Demorava imenso tempo. Comecei a ficar super cansada fisicamente. Comecei a deixar de conseguir dormir. Comecei a ficar super irritada. Comecei a deixar de conseguir ouvir as pessoas. Os meus colegas irritava-me. Os doentes irritavam-me. Aí eu fiquei tipo: “Uau, isto nunca me tinha acontecido”. E comecei-me a ver a transformar tipo em colegas mais velhos que nós temos que não têm mesmo paciência. E eu… Eu não os culpo. Isto é… Tu vês o mecanismo.

É super cansativo. E se tu não tiveres paciência, não ouvires muito, é muito mais fácil. Mas eu não quero ser essa pessoa. E, então, dei por mim a estar com os doentes…. Por exemplo, estar com os doentes na urgência, e eles estarem a falar, e eu só estar a pensar – isto é horrível, mas eu vou dizer…. Eu só estar a pensar “Por favor, cala-te”. E eu não posso ser uma boa psiquiatra, se estou nesse sítio.

Pronto, e chegou a um ponto em que algumas colegas minhas, que são minhas amigas, começaram a perceber que eu não estava bem, a dizer: “Tu tens que parar”. E eu mesmo com aquela mentalidade de médica: “Não, o meu doente… Eu aguento tudo. Aguento até o fim”. E chegou a um ponto em que eu estava a chorar entre consultas. E pensei: “Ok, já não dá”. Porque eu estava com medo de começar a chorar a meio da consulta.

E, nesse mesmo dia, mandei uma mensagem a uma amiga minha a dizer: “Ok, eu aceito parar”. E fiz o meu coming out a toda a gente do hospital, porque pensei “Eu… Eu estou farta”. E as pessoas passaram por mim… Lembro-me que estava no gabinete, tinha a porta aberta e estava a acabar os registos para me ir embora, e já tinha decidido que não ia voltar no dia a seguir, e as pessoas olhavam. “Estás bem?”, “Não”. E disse “Vou-me embora. Vou parar”. Mas se se falou sobre isso até agora… Passaram oito meses… A resposta é não. Não se fala sobre isso.

VII

Margarida David Cardoso: Esse sítio para ti é de solidão? Não só por causa disso, mas também por não veres isso reproduzido noutras pessoas?

Mafalda Corvacho: É, é de solidão no sentido em que quando estás neste sítio… Tu sentes que estás a ser um bocadinho ridicularizada. Não levada a sério. E que o que importa é continuar. Continuar. E também não lhes interessa muito ter uma pessoa que está ali a causar ruído e que está a trazer à memória, ao pensamento, tudo aquilo que está a ser mal feito, que, de certa forma, é nossa responsabilidade. E eu acho que algumas pessoas também levam isto, um bocado, como um ataque pessoal. A ti enquanto médico. E, então, é mais fácil que tu saias.

As pessoas, às vezes, dizem “Ah, mas se tu saires e se toda a gente que pensa assim sair, o que é que acontece?” Está bem, mas não consegues mudar as coisas sozinho. E obviamente que os movimentos também têm que começar em algum lado, mas se destroem as pessoas a este ponto… Tipo eu, neste momento, eu não tenho energia para absolutamente nada que seja relacionado com a psiquiatria. Eu adorava e eu … Tinha ideias… De trabalhar contra o estigma, de criar equipas de humanização de cuidados em hospitais… E tinha bastantes ideias e era uma pessoa proativa neste sentido. Mas eu acho que o sistema corrói-te a um ponto em que tu ficas completamente paralisado.

Margarida David Cardoso: Outra coisa que te queria perguntar era: por que é que é importante para ti falar sobre isto?

Mafalda Corvacho: Bem, a primeira vez que falamos sobre a hipótese de falar sobre isto, eu fiquei super feliz, embora eu esteja super nervosa neste momento. E é bastante difícil. Mas, eu acho que é importante também que as pessoas saibam que os psiquiatras ficam doentes. É importante que os psiquiatras se deixem ficar doentes. Eu acho que também é importante que as pessoas com doença mental saibam que os psiquiatras também têm doença mental.

Se se abrir espaço para que esta discussão comece a existir e se comece a perceber o que é que está errado… Eu não venho aqui falar para criticar os serviços ou as pessoas com quem trabalhei. Eu só quero que as pessoas sejam bem tratadas, tenham o tratamento que merecem, que os direitos delas sejam respeitados, e que as pessoas que trabalham nos cuidados de saúde mental tenham também espaço para estar bem, para poderem fazê-lo. Porque, se não, acho que não estamos a fazer bem a ninguém.

Margarida David Cardoso: Joana Macedo da Cunha e Mafalda Corvacho gravaram o que acabas de ouvir em meados de 2023. Entretanto, Joana foi perdendo os óculos cor-de-rosa com que via os serviços de saúde britânicos. Um amor que se tornou mais realista. Mas recuperou a energia e anda a pensar num projeto de psiquiatria comunitária e humanização de cuidados. E vai falando a Mafalda sobre isso.

Mafalda tem data marcada para voltar à psiquiatria – um regresso com a calma necessária depois de uma baixa prolongada. Disse numa das últimas vezes que falamos que o mais difícil num burnout, quando se está bem lá dentro, é conseguir ver além do nevoeiro.

VIII

Bernardo Afonso: Estou não só cansado, mas amargurado, e a amargura é incógnita também. Estou, de angustiado, à beira de lágrimas – não de lágrimas que se choram, mas que se reprimem, lágrimas de uma doença da alma, que não de uma dor sensível. Tanto tenho vivido sem ter vivido! Tanto tenho pensado sem ter pensado! Pesam sobre mim mundos de violências paradas, de aventuras tidas sem movimento. Estou farto do que nunca tive nem terei, tediento de deuses por existir. Trago comigo as feridas de todas as batalhas que evitei. Meu corpo muscular está moído do esforço que nem pensei em fazer.

Citação de Livro do Desassossego, de Bernardo Soares

CRÉDITOS

Nuno Viegas: Acabaste de ouvir “A dor do mal trabalhar”. Este foi um episódio extra de Desassossego, a última série do Fumaça, sobre saúde e doença mental.

A Margarida David Cardoso fez as entrevistas e escreveu este episódio. O Bernardo Afonso tratou da edição de texto. Mas foi também responsável pelo desenho e edição de som e pela música original que estás a ouvir. Para fechar, ainda leu o excerto habitual do Livro do Desassossego, de Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. Eu, Nuno Viegas, fiz a verificação de factos. A Joana Teresa Batista, a identidade gráfica. O Lucas Grimault de Freitas a estratégia de comunicação. A Maria Almeida e o Ricardo Esteves Ribeiro participaram na construção coletiva desta história. Fazem ainda parte da equipa Fumaça: Fred Rocha e Luís Marquez.

40% do orçamento do Fumaça é pago por doações mensais recorrentes de cinco ou 10 ou 20 euros da Comunidade Fumaça, quem nos ouve, vê e lê. Tu. Mas o último episódio de Desassossego saiu há coisa de um ano. E cada mês que passamos sem lançar uma nova série narrativa é um mês em que perdemos contribuidores.

Estas séries, sobre saúde e doença mental, segurança privada, refugiados climáticos, ou a ocupação da Palestina, podiam demorar menos tempo a fazer, se tivessemos uma equipa de 40 pessoas, como o Serial. Mas somos só nove, a tentar construir trabalhos documentais com contexto: ler, investigar, editar e verificar factos. Portanto demoram: um ano, dois, três. E publicamos pouco, porque cada vez que lançamos uma entrevista perdemos um dia a fazer uma série.

Isto é tudo para te dizer que se há uma boa altura para fazeres uma doação mensal para o Fumaça é agora: quando não estamos a lançar uma série, quando outras pessoas estão a deixar de doar, quando mais precisamos de ti. Vai a www.fumaca.pt/contribuir. Junta-te à Comunidade Fumaça.

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