“‘Desassossego’ talvez nunca tenha fim”, por Margarida David Cardoso

Olá.

“Estranhei não terem falado sobre isto.” Desassossego é uma série com 13 episódios, mais de dez horas de áudio, mas às vezes parece que tudo ficou de fora. Sob o enorme chapéu que é “saúde e doença mental” não coube quase nada sobre psicose, sobre pessoas que ouvem vozes, sobre consumos e adições, sobre prevenção de riscos e minimização de danos. Não tocamos nas chamadas perturbações da personalidade, nem na terapia assistida por psicadélicos, e dissemos pouco sobre a função da arte na terapia e sobre prevenção nas escolas. Muito ficou por explorar sobre violência psiquiátrica.

“De facto, estranhei não terem falado sobre isto” foi uma das primeiras frases que nos disseram quando começámos a gravar entrevistas sobre perturbações do comportamento alimentar, já depois da série lançada. A ausência era óbvia, e a ideia de tapar esse buraco deu origem à reportagem Trinta e Dois e Setecentos, que lançámos em setembro. O episódio começa com uma lista de pesos e recompensas que demoramos a entender – e, para de facto a compreender, com nuance, são necessárias duas entrevistas mais, sobre anorexia nervosa e sobre o tratamento destas doenças.

Plano de recuperação

32,700 ou menos repouso absoluto no leito

32,900 refeições no refeitório

33,200 repouso obrigatório 2 horas de manhã, 2 horas à tarde

33,500 repouso obrigatório as 2 horas da tarde (…)

Plano de recuperação de Susana Ferreira da reportagem Trinta e Dois e Setecentos

Mas, das dezenas de histórias que fui acumulando em bloco de notas dispersos para completar Desassossego, havia outra a resgatar: o sofrimento ético e a doença mental em pessoas que se dedicam a tratá-la.

“Fiquei super feliz quando surgiu a hipótese de falar sobre isto.” O burnout entre profissionais de saúde é cada vez mais visível e denunciado à medida que a investigação científica desoculta percentagens significativas de pessoas com elevada exaustão emocional, crescente despersonalização (distanciamento ou desligamento em relação aos outros ou à função) e níveis de realização profissional em queda. Usa-se esta tríade de indicadores para avaliar o risco de desenvolver uma perturbação psicológica que ainda não tem uma definição simples. Mas que se continua a experienciar desde um lugar de solidão.

“Fiquei super feliz quando surgiu a hipótese de falar sobre isto” foi uma das últimas frases que gravámos sobre este tema. A psiquiatra que o disse explicava como o seu burnout não foi apenas sinónimo de excesso de trabalho. Resultou (se lhe pudermos atribuir causas simples) da desesperança e do sofrimento ético sentido perante uma forma de trabalho com que odiava ter de compactuar. Quem está exausto emocionalmente tende a trabalhar mais horas, adensando a exaustão e diminuindo a empatia pelo outro. A bola de neve segue por aí abaixo.

Segue isto para te dizer que, em breve, lançamos “A dor do mal trabalhar”, reportagem sobre sofrimento ético na psiquiatria. E também que, depois disso, vais receber no teu email a banda sonora completa de Desassossego, misturada e masterizada para ser ouvida em qualquer lado, fora dos episódios do Fumaça. É talvez a nossa maneira de tentar fechar um ciclo. A verdade é que Desassossego é enorme e já pareceu várias vezes nunca ter fim, mas é provável que voltemos esporadicamente a ele com pequenos apontamentos como estes. As sugestões são sempre bem-vindas – já que notas dispersas em bloquinhos nunca são demais e, às vezes, até se concretizam.

Até já,

Margarida

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