“O governo é cúmplice do genocídio na Palestina”, discurso ao receber o prémio Direitos Humanos e Integração para “Desassossego”

Desassossego“, série sobre saúde e doença mental publicada pelo Fumaça, foi distinguida no Prémio de Jornalismo – Direitos Humanos e Integração com o primeiro lugar na categoria de rádio. O galardão, atribuído pela Comissão Nacional da UNESCO e pela Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros, foi este ano entregue no Palácio das Necessidades, sede do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

A redação do Fumaça pediu à jornalista Rafaela Cortez para ler nessa cerimónia, a 11 de dezembro, o editorial que abaixo se reproduz, reflexo da opinião coletiva das pessoas que a integram:

“Obrigado pelo prémio. Obrigado à Comissão Nacional da UNESCO e à Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros.

Este foi um trabalho que nos saiu de dentro. É bom vê-lo ser reconhecido. Mas esta distinção é boa, também, porque nos cria oportunidades como esta, de ser recebidas no Ministério dos Negócios Estrangeiros.

É irónico, até, que uma redação que se assume “como um meio contra-poder, ouvindo aqueles prejudicados por sistemas de opressão, e escrutinando quem toma as decisões que os estabelecem e mantêm”, seja premiada pelo próprio governo (e pela UNESCO) por ter denunciado que esse mesmo governo e outros, com políticas iguais e gentes parecidas, perpetuam um sistema que não cuida da saúde mental de quem representa. E que toda a gente sabe que assim é.

Mas essa não é a única ironia da noite. Os momentos, por vezes, criam-nas. É que esta distinção, apesar de ter sido entregue à peça “Desassossego”, é entregue a uma redação que tem, desde 2017, feito trabalho contínuo sobre a Palestina. Que reporta e investiga na Palestina desde essa altura.

Seria difícil para nós, portanto, estar aqui hoje, recebidas no palácio do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e apenas celebrar este momento, sem aproveitar para prestar homenagem às, pelo menos, 56 jornalistas assassinadas em Gaza, nos últimos dois meses, assim como a todas as jornalistas palestinianas que foram pressionadas, perseguidas e assassinadas nas últimas décadas, e a todas as jornalistas que continuam, apesar das bombas, do cansaço, dos apagões, da fome e do luto, a reportar a situação do terreno para que o mundo saiba o que se passa.

Estas jornalistas são “danos colaterais” de um genocídio que já matou mais de 18 mil pessoas, devastou bairros inteiros, cidades inteiras, destruiu hospitais, mesquitas e campos de refugiados, despiu homens e vendou-lhes os olhos, impediu colheitas, atirou pessoas para prisões sem qualquer acusação. Um genocídio perpetrado pelo estado sionista, que se formou a partir de um projeto colonial construído sobre a limpeza étnica do povo palestiniano e num sistema de apartheid instituído na lei, que trata pessoas de maneiras diferentes tendo em conta a sua etnia ou religião. Desde há décadas, o estado português e os consecutivos governos deste país, incluindo o atual, apoiam este projeto, aceitando e disseminando a sua propaganda.

E tudo isso ficou muito claro a partir de dia 7 de outubro. Apenas tinham passado umas horas desde que Gaza voltou a ser notícia e o ministro dos Negócios Estrangeiros João Cravinho escrevia já no Twitter (cito) “Israel tem o direito de se defender. […] Estamos solidários com Israel”. Três dias depois, quando já se tinha ouvido, com todas as letras, representantes israelitas classificarem palestinianos de “animais humanos”; de prometerem impor um cerco total a Gaza, “sem eletricidade, sem comida, sem água, sem gás”; e de terem prometido dizimar a região, escrevia João Cravinho (cito): “Na conversa telefónica com o Ministro [dos Negócios Estrangeiros] Eli Cohen, sublinhei a amizade entre Portugal e Israel”. A 14 de outubro, em entrevista à TVI, com já mais de 2000 pessoas assassinadas e mais de 6000 bombas despejadas numa das mais densamente populosas áreas do mundo, disse: “Reconhecemos o direito do estado de Israel de se defender, e isso implica eliminar a fonte da ameaça militar, que é o Hamas.” A 17 de outubro, com já mais de 4000 pessoas mortas e um milhão de deslocadas, escreveu no Público: “Certo e seguro, como afirmámos desde a primeira hora, é o nosso dever de solidariedade para com Israel […] É por se reconhecer esse direito basilar que se reconhece também o direito à defesa de Israel, o que inclui o direito à eliminação da capacidade militar do Hamas.” A 24 de novembro, com quase 15 mil pessoas mortas, João Cravinho disse, em visita ao apartheid: “Portugal está com Israel porque, sobretudo, Portugal está com a paz.” A 28 de novembro, escreveu no Público: “Portugal não hesitou […] em dizer que Israel, como qualquer Estado atacado, tem o direito de proteger a sua população e o seu território.” E mesmo quando a chamada “pausa humanitária” terminou, João Cravinho lembrou, no Twitter, que a “retoma de hostilidades” trazia “mais perigo para os reféns.” Não fala do que isso significa para o povo palestiniano.

O contínuo e incondicional apoio ao dito “direito à defesa de Israel” torna este ministério, este governo, cúmplices de genocídio. Não precisamos ir muito longe, atrás no tempo, para se entender o que se passa hoje e como se posicionar. Basta olhar para as lutas de libertação nacional do século passado. De que lado estaríamos, na altura? Defenderíamos a libertação de Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé, Moçambique? Ou a manutenção do império colonial português? O ministro, o Ministério dos Negócios Estrangeiros e o governo escolheram o seu lado. E têm sangue palestiniano nas mãos. Não vai ser fácil lavá-lo.

Obrigado.”

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