Trinta e dois e setecentos

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GLOSSÁRIO

TRANSCRIÇÃO

Nuno Viegas: Olá. Nuno Viegas. No início do ano, publicámos uma série de 13 episódios sobre saúde e doença mental, Desassossego. Não deu para falar de tudo. Agora dedicamo-nos a um dos temas que ficou de fora: esta é uma reportagem extra, um episódio especial, sobre perturbações do comportamento alimentar.

Se não ouviste Desassossego, ou não acabaste, está tudo bem. O episódio faz sentido por si. Não tens de voltar atrás. Podes continuar e ir ouvir depois a série se te apetecer. 

Só dois avisos antes de começarmos. Primeiro, usa  auscultadores. Foi a pensar nisso que gravámos, editámos, musicámos esta peça. E, se puderes, fica num espaço silencioso. 

Depois, este não é um episódio confortável. Vamos falar sobre sofrimento psiquiátrico, ligado a perturbações alimentares, mas não só. Olha por ti. Não tens de ouvir isto agora. Não tens de ouvir isto de todo. Olha pelas pessoas à tua volta, já agora. Se precisares de ajuda, o SNS 24 tem apoio psicológico gratuito, anónimo, disponível a qualquer hora, em qualquer dia: 808 24 24 24. 

Há outras linhas de apoio não estatais na descrição deste episódio e em fumaca.pt. Se for uma emergência, telefona ao 112.

Vamos a isto. A narração é de Margarida David Cardoso.

I

Susana Ferreira: Não é este. Não sei se… É este aqui. Pronto, isto não interessa. Isto são outras coisas loucas… Desculpa, tenho muitas coisas…

Margarida David Cardoso: Não, não te preocupes.

Susana Ferreira: Tenho muitas coisas aleatórias. Deixa ver o que é que eu tenho… É que eu acabava por… Depois há sempre aquela coisa que é: os médicos nunca vêm e tu queres sempre saber o que é que o médico acha. Isso é em qualquer internamento. E o médico nunca vem. E depois tu adormeces: passas muito tempo no quarto, no internamento, então, tu dormes. Então, eu tinha sinais plantados a dizer: “Se vier… Se a doutora Isabel aparecer, por favor, acordem-me”. Coisas, assim, parvas. Depois, imagina, isto nem sei se era o primeiro. Exato, este era o primeiro plano, que tinha aí tudo…

Isto é uma… É tipo uma folha A4 branca, que tem o chamado o plano de recuperação… O primeiro peso que tem foi o registado aquando do internamento, que estava 32,700. 32 quilos e 700 gramas. Era assim. Pronto, isto para uma miúda que tinha um metro e 66 era considerado pouco. E então, se mantivesse este peso dos 32 e 700, o plano de recuperação era: “Repouso absoluto no leito”. Portanto, tinhas que ficar.

Passando este peso… Tenho os checks, tenho literalmente os checks feitos. “Ok, passei este peso.” 32 e 900, já podes ir fazer refeições ao refeitório, à cantina. Começas a subir, 33 e 200, tens o repouso obrigatório duas horas de manhã, duas horas à tarde, e tens que te ir deitar às 21h. Isto é muito engraçado. Depois começas a subir, tens mais 300 gramas, tens repouso obrigatório só duas horas à tarde. Depois, finalmente, um quilo depois, tens um telefonema uma vez por semana – podes fazer um telefonema para a tua família. Até aqui nada de contacto com exteriores.

Margarida David Cardoso: Aos 33 e 700, não é? Um quilo depois de entrares.

Susana Ferreira: 33 e 700, um quilo depois de entrar, exatamente.

Margarida David Cardoso: Susana está a ler o contrato terapêutico do seu primeiro internamento. A miúda de um metro e 66, 32 quilos e 700, tinha 16 anos. Passaram 15 entretanto.

Susana Ferreira: 34 quilos, não tens repouso obrigatório. 34 e 200, podes fazer uma visita por semana. 34 e 400, tens dois telefonemas por semana. 34 e 600, podes participar na terapia ocupacional. 34 e 800, tens duas visitas por semana. 35, podes telefonar todos os dias. 35 e 200, é o regime normal de serviço – eu não vim a descobrir o que é que era o regime normal de serviço. 

Nesta primeira altura, como foi assim um momento assustador – um momento de “Agora isto vai virar tudo. A minha vida vai mudar. Agora é que sim, eu vou sair daqui curada e vou voltar a uma possível normalidade”, que nem eu sabia o que é que era –, a evolução aconteceu muito rápido. Por exemplo, eu logo no terceiro ou quarto dia já tinha mais um quilo.

Margarida David Cardoso: Já podias ligar aos teus pais.

Susana Ferreira: Já podia fazer, já podia acontecer. E depois ia subindo, ia subindo. Tenho aqui dia 4 de julho, quarta-feira. Entre o 4 de julho ao 16 de julho, tenho a evolução dos 32 e 700 até aos 35 e 100. E depois há aqui – muito engraçado, eu já não via isto há muito tempo – umas carinhas contentes à frente do peso e umas carinhas mais tristes quando o peso diminuiu, o que, pensando bem, não reflete muito bem a sensação que era na altura, porque… Ok, ficava contente, porque precisava de cumprir isto para vazar, para sair dali. Mas ao mesmo tempo isto era ali um sininho a dizer: “Não é suposto, não é suposto, não é suposto.”

Margarida David Cardoso: Este episódio é sobre a experiência de Susana Ferreira, 31 anos, do Porto, produtora numa estrutura artística, e sobre o seu caminho com perturbações do comportamento alimentar. Seja toda a gente bem-vinda ao Fumaça.

II

Susana Ferreira: Apesar de já lidar com questões de doença mental e saúde mental desde muito nova, desde os 15 anos, eu só agora é que comecei a fazer psicoterapia a sério. Então, só agora que estou a começar a desbloquear algumas coisas e a relembrar-me “Ah, afinal, isto já vem desde muito cedo”.

E lembro-me, desde muito pequenina, que eu tinha pânico de ir a restaurantes. Choro compulsivo, não conseguir comer, de ficar tipo… Fica tudo travado, não dá, parece que não passa nada.

Eu lembro-me disto até na primária. Tenho uma memória vívida de estar eu e a professora – devia estar para aí na segunda classe – a comer na sala de aula, porque eu não conseguia comer no refeitório. Agora, se me perguntares porquê. O que é que se passou? Qual era o pânico? Não faço a mínima. Sei que tinha um medo desgraçado daquele momento da refeição. Acho que tive essa sensação de pânico, medo, tipo de desordem relacionada com os momentos de refeição e de comida desde sempre.

Margarida David Cardoso: Na quarta classe, Susana entrou para a ginástica acrobática. Foi atleta durante vários anos com algumas idas a competições europeias – embora ela não ache que fosse lá muito boa. Era uma aluna de cincos, divertida, faladora, uma miúda que não dava problemas.

Susana Ferreira: Qual é a coisa, então numa adolescente, a única coisa que podes controlar na tua vida, quando tudo o resto está a ser controlado por ti? É o que comes.

Margarida David Cardoso: Para cerca de metade das pessoas com anorexia há uma predisposição genética relevante. Não sabemos se é o caso de Susana. Mas, à sua volta, a ginástica validava um certo controlo sobre a comida.

Susana Ferreira: Normalmente, para ser mais fácil atirar uma pessoa para cima e para baixo, convém que seja mais levezinha, não é? E então havia sempre essa preocupação dos treinadores, a dizer: “Controlem o peso. Vocês não podem aumentar o peso. Vejam o que comem”. E depois começas um jogo com a balança: “Olha o que eu consigo fazer. Toda a gente tem dificuldade em manter a boca fechada, em não comer doces… Eu passo aqui muito bem.”

Margarida David Cardoso: Foi bem sucedida a esconder a anorexia nervosa durante algum tempo. 

Susana Ferreira: “Ok, eu agora consegui vir até aqui. Eles olharam todos para mim e disseram: ‘Ei, olha, estás bem no peso, está impecável. Incrível!’. E agora eu consigo tirar menos. Hoje peso menos, e peso menos, e peso menos… E aquele tem tanta dificuldade em perder peso, estão ali sempre com aquele problema. Olha eu, olha para mim. Hoje peso menos, e peso menos.”

Margarida David Cardoso: A doença começou a desafiar a própria vontade até assumir controlo sobre ela.

Susana Ferreira: “Mas sentes-te bem? Sim, está tudo bem. Não tenho problema.” Só que depois começa tudo o resto que é: “Ok, eu estou a fazer este jogo comigo mesma. Para já ainda ninguém disse nada. Estou a fazer o que é suposto, mas… Agora não consigo comer aquele pão inteiro, porque já não é que me apeteça ou não me apeteça. Não consigo comê-lo todo. Antes conseguia e agora não consigo, começo a ficar ansiosa. Não, não dá. Não vai funcionar. Ou aquele iogurte. Ou aquele… Se eu comer aquele chocolate… Não, não consigo. Não… Volta para trás. Não consigo fazer nada disso”.

Margarida David Cardoso: Quando a magreza autoinduzida começou a escancarar a doença, vieram as primeiras consultas de nutrição e de psiquiatria. E, por esta altura, há o ponto em que num treino, por desnutrição, lhe faltou a força.

Susana Ferreira: Ia acabando muito mal mesmo, mesmo, mesmo muito mal. Uma queda de cabeça mesmo, duas vezes, que tive uma sorte que, se não fosse a pessoa com quem eu estava a treinar na altura, se calhar não estávamos aqui a conversar. Foi mesmo muito sério.

Margarida David Cardoso: A anorexia é uma doença psiquiátrica, uma entre as várias perturbações do comportamento alimentar. É uma doença violenta, em que a fome voluntária desafia a sobrevivência. Vê-se na magreza, nos ossos salientes, mais frágeis, mais perto da rotura. Quando a falta de comida é grave e prolongada, o corpo toma formas para se preservar. Sobre a pele, para reter calor, forma-se uma leve camada de finíssimos pêlos – é o lanugo, como têm os bebés. O metabolismo poupa-se. A menstruação deixa de vir. O coração desacelera. Há complicações cardíacas, problemas gastrointestinais. Desmaios por fraqueza. A anorexia é das doenças mentais com maior probabilidade de matar. 

À medida que o corpo minga por desnutrição, há pseudoatrofia, o cérebro encolhe. E a estrutura e função cerebral mudam. O pensamento fica mais rígido, torna-se menos capaz de ser flexível, de encaixar a mudança, a espontaneidade. É tudo mais preto ou branco, intransigente, o que só reforça os pensamentos obsessivos. 

Susana Ferreira: Há assim um interruptor qualquer que desliga e diz: “Ok, agora a tua concentração é toda neste processo, neste jogo: em não comer, em conseguir esconder que não comes, e em controlar”.

E é: se eu comer a mais e fora da otimização, do meu regime, que eu criei, é porque estou fora de controlo, mas nunca pensei que esta coisa do não comer ou não conseguir comer fosse perda de controlo. Isso não fazia… Porquê? É porque tudo indicava que o não comer é que é controlo.

E depois tens momentos de histeria completa, de dizer assim: “Porque é que eu não consigo?” Porque já não faz sentido. Do género, “Mas é comida… É tão simples quanto comida”. Tipo, é muito básico mesmo. “E não tens problema de saúde, não estás gorda, não tens nada, porque é que não consegues?” Então, torna-se uma obsessão tão grande que esse controlo e ausência de controlo torna-se a tua vida toda.

Margarida David Cardoso: E, novamente, a ginástica ajudava a encaixar a vida numa lista de metas e objetivos. 

Susana Ferreira: E depois com uma personalidade em que a vida é mais fácil quando te dizem o que é que é para fazer, e qual é o caminho a seguir – “Ok, tens que treinar e tens que fazer o que o treinador diz. Temos uma meta, temos sempre objetivos, temos que fazer mais, temos que fazer mais…”

Há pessoas que… Eu tenho amigas minhas que não tiveram problema nenhum com isto, a vida delas… Fizeram tudo como queriam, quanto queriam. A minha personalidade, como era quase “segue e faz”, ficou presa ali. Então, quase que não criou a sua autonomia.

Então, tendo esse regime quase, a alimentação foi ficando regimentada também. Que é: eu tenho horas para comer, horas para não comer. Depois, como vou treinar, tenho que comer uma hora antes. E depois “come isto” e só ali. Depois chegas tarde do treino, os pais e a família já comeu, mas deixou ali o prato já pronto, portanto isto. Está feito. Não tenho que pensar. Depois dorme, repete-se, e tudo igual. O pequeno almoço é igual. O lanche a meio da manhã é igual. O almoço é igual. Tudo assim, tudo direitinho, direitinho, direitinho, até criar também ali uma obsessão à volta dessa rotina… Que esse é um dos primeiros pontos. Agora o segundo ponto é… Isto é muito cliché, mas… Toda uma sociedade em que o que é fixe é tu conseguires controlar o que comes.

Margarida David Cardoso: Com o tempo, a obsessão acabou a abrir caminho para o isolamento. As outras pessoas deixavam de caber nesta apertada fórmula de existência.

Susana Ferreira: Esta coisa fazia-me muita confusão: “Vamos ali ao café e comes aqui qualquer coisa num instante”. Não, não comes qualquer coisa num instante, porque comer é numa altura certa, numa hora certa, assim uma coisa muito otimizada, muito definida, que vai contar para o resto do dia. Portanto, isto é quase uma… Cria-se ali uma sessão solene da refeição, que é àquela hora e assim, portanto não é uma coisa simples. Não é corriqueiro, não é “Tenho fome, vou comer”. Não, aquilo é uma coisa… Quase que tens uma base de dados: “Eu comi isso àquela hora, eu fiz aquilo àquela hora”. E isso é um entrave muito grande, porque as pessoas estão relaxadas, tranquilas e tu não consegues estar. Então, não consegues estar naquela relação. E começas a lidar com a coisa sozinha.

Margarida David Cardoso: Para Susana, a busca não era pela forma do corpo, pelo encaixe num padrão de beleza socializado.

Susana Ferreira: Já tinha ouvido falar da anorexia, mas é sempre associada aquela ideia das modelos, que só dão atenção ao corpo, e nunca tinha percebido o contexto de doença, de saúde mental. Essa coisa não fazia parte do meu universo. Isto é outra coisa completamente diferente.

Margarida David Cardoso: Vários autores têm insistido que olhar para a anorexia como apenas uma perturbação da imagem corporal simplifica as múltiplas causas que a doença pode ter. Há predisposição genética para adoecer; fatores socioculturais, psicológicos e traços de personalidade que podem tornar alguém mais vulnerável – da baixa autoestima, ao perfeccionismo e pensamentos obsessivo-compulsivos. E depois há gatilhos que podem precipitar a doença – perdas, trauma, violência. Em alguns casos, não há nada que se consiga identificar.

Susana Ferreira: Há várias camadas, porque se calhar é um processo de ansiedade que depois se transformou numa rotina e numa ação de controlo.

Margarida David Cardoso: Investigadores têm descrito como os comportamentos de desordem alimentar podem ser estratégias mal adaptativas para lidar com experiências negativas, desencadeando um quadro de doença. É um dos trabalhos da psicoterapia intervir naquilo que perpetua esses comportamentos. A tentativa de fazer sentido da doença sozinha pode facilmente esgotar-se. 

Susana Ferreira: É que não faz sentido nenhum.

Quem é que pensa nisto? Ninguém.

Isto, às vezes, dito alto parece que não faz sentido.

… que é muito freak da cabeça, porque não faz sentido nenhum.

Margarida David Cardoso: Carolina Ferreira Baptista, doutoranda em comunicação, com tese na área da anorexia, escrevia assim sobre a sua doença: “O intratável em mim pressupõe a destruição do princípio da racionalidade. Instrumentalizar-se a vivência em função de um projeto que é meu e só meu, de tal forma que o vício é o sustento alimentar capaz de me nutrir durante dias”.

Susana Ferreira: Eu controlei até ao extremo, até perceber que eu já não consigo controlar. Já não sou eu a decidir se quero comer ou não. Há aqui qualquer coisa que não me está a deixar e eu não sei que coisa é, não sei dizer. Já não é o jogo, porque foi até determinado ponto. Já não é controlo, porque eu estou fora de controlo, porque não consigo fazer com que a minha cabeça aja. “E porquê? O que é que se passa? E porque é que eu não consigo sair daqui?”

Chegou ao ponto de que sentia-me com tanta falta de controlo sobre mim mesma que precisava de um sítio que fizesse reset e que me dissesse como é que eu devia ser outra vez, porque eu, sozinha, já não conseguia. 

III

Margarida David Cardoso: O primeiro internamento chega no verão entre o 9.º e o 10.º ano. Susana nunca teve a perceção de estar em risco de vida, mas o índice de massa corporal estava já dentro da categoria de “baixo peso severo”, próximo do limite mínimo compatível com a vida.

Susana Ferreira: Era a minha oportunidade – sem saber o que é que era um internamento –, era a minha oportunidade para começar de novo. “Ok, liberto tudo e agora vai ser começar do zero.”

Margarida David Cardoso: O tratamento da anorexia passa por desmontar a lógica da doença, diminuir o espaço que a comida e o corpo ocupam na cabeça. Mas, antes disso, nos casos mais graves do ponto de vista físico, é urgente alimentar o corpo. Uma vez que a desnutrição mexe com a função normal do cérebro, é preciso ter peso suficiente para conseguir pensar.

Susana Ferreira: Estás a ver um porco na engorda? É basicamente isso. Esta é a minha sensação.

Eu tinha consultas de psicologia e de psiquiatria. E a partir daí faziam o teu plano alimentar: “Ok, temos um défice calórico e temos que restabelecer as calorias, portanto temos que aumentar. Fazes um pequeno almoço, um a meio da manhã, um almoço, um a meio da tarde, um jantar e ceia”. Eu quando vi estas refeições todas quase que caía para o lado, a dizer assim: “Como? Isso é muita coisa, não vai dar”.

No teu plano alimentar, vais ganhando regalias dentro do internamento à medida que o teu peso vai aumentando.

Margarida David Cardoso: Susana, de 16 anos, ficou internada no Centro Hospitalar e Universitário de São João, no Porto, na unidade de psiquiatria de adultos. Acompanham-se aí casos de anorexia nervosa há 45 anos, desde 1978. Uma das unidades de referência no tratamento da doença, explica Miguel Bragança, o atual diretor. Tem há décadas uma consulta para adolescentes e jovens adultos com perturbações do comportamento alimentar. Foi progressivamente integrando especialistas em infância e adolescência até à criação, em 2017, do serviço autónomo de pedopsiquiatria.

Sendo preciso internar, a antiga direção de serviço entendia que alguns adolescentes podiam ficar com adultos – algo que foi sempre uma exceção, diz Miguel Bragança. Tinha em conta a gravidade do caso, as preferências da doente e da família, e a necessidade de apoio de medicina interna. A atual diretora da pedopsiquiatria, Maria do Carmo Santos, garante que isso já não acontece. Como não há internamento pedopsiquiátrico no São João, restam duas possibilidades: a pediatria ou o único internamento de pedopsiquiatria na zona norte, no Hospital de Magalhães Lemos – onde há apenas uma internista, a tempo parcial, como falamos no episódio 11 da série Desassossego.

Na altura, Susana vai mesmo para a unidade de adultos da psiquiatria geral.

Susana Ferreira: Aquilo é um sítio que assusta. São coisas muito, muito pesadas. É completamente fora.

Havia, lembro-me na altura, eram enfermeiros que deviam estar no período de estágio em psiquiatria. Eram da [Universidade] Fernando Pessoa. E lembro-me que a minha enfermaria – o meu quarto, digamos assim –, a certa altura, era o ponto de encontro de todos os colegas de enfermagem, porque eu era a única pessoa com quem eles conseguiam falar, a doente com quem conseguiam falar. Então, aquilo era assim… Eu ia-me distraindo assim, porque aquilo não tens televisão…

Uma garota que estava a passar por uma depressão, uma coisa complicada, e eu lembro-me de estar a ler o Calvin e Hobbes, tinha as tirinhas, e emprestei-lhe para ela ler. E ela depois, no dia a seguir, com o livro todo lido, veio-me abraçar e dizer que aquele livro mudou a vida dela. Por causa daquela, nem sei… Aquele estoicismo do Calvin, do puto, que é puto, “é para viver agora” e coisas assim. “Este livro salvou aqui, não estás a perceber.”

Tinha lá um colega que pronto, ele tinha andado pela Itália toda de vespa com a Laura Pausini. E eu acreditei veemente.

E vais fazendo. E vais escrevendo. Li muito, muito, muito. Porque não havia mais nada a fazer.

Acabava por criar ali uma vida social com os enfermeiros, com os auxiliares, sempre na brincadeira, em que me ia esquecendo um bocado do resto. Mas esse resto existe.

Tu chegas a um ponto em que… Então, neste primeiro internamento, a mentalidade era esta: “Eu tenho que sair daqui. Eu tenho que sair daqui. Eu tenho que sair daqui. Então, vou fazer tudo para sair daqui.” Então, o que é que eu tenho que fazer para sair daqui? “Tens que comer.” E depois, como não tens que pensar no que é que vais comer, eles põem-te o prato à frente e dizem: “Tens que comer isso”.

Margarida David Cardoso: O internamento acabou duas semanas depois. O verão continuou. Já não havia ginástica. As aulas na escola nova só começavam dali a dois meses.

Susana Ferreira: Há um momento de… É isolamento total. Está toda a gente a começar a ter transições na sua vida, vida de adolescente, começar a fazer cenas, namoricos, bailaricos, coisas assim. E eu? Eu estou aqui em casa a lidar com uma cena completamente fora. A escavar aqui em coisas que, tipo, ninguém está preocupado com isto.

Eu trouxe uma cena, porque encontrei e são as únicas… São os únicos registos que eu tenho, os únicos registos fotográficos. Isto eram duas amigas minhas e eu. E depois começas a ver: isto é uma pessoa normal, esta sou eu na praia.

Eu agora, em que tenho um pneu, estou fora de forma, tenho problemas em ir para a praia… Eu aqui estava um pequeno esqueleto, mas não estava doente, porque estava a fazer tudo. Só que são duas pessoas normais e depois sou eu aí ao lado, e é assim um bocado chocante quando eu olho: “Ah, ok, então era isso que as pessoas viam”.

Margarida David Cardoso: Tu não te lembras de te veres assim?

Susana Ferreira: Não. A única vez que eu percebi que estava qualquer coisa, mas que também atirei assim um bocado para o lado, foi quando a minha mãe… Estávamos a experimentar este bikini, e a minha mãe olha assim para mim, e fica assim: “Tu não vês? Tu não estás a perceber?” Eu disse: “Não, está tudo ok, está igual.” Estava doente, mas não estava… Estava doente, porque me diziam que estava doente.

Logo após este internamento, bastou uma semana. Bastou uma semana para estar tudo ok e, a certa altura, quando tens que ser tu a tomar as decisões… E isto é uma doença de decisão e de autonomia. Eu não tenho aversão à comida, tenho aversão à decisão de comer. E, então, a coisa voltou. Consegui ficar com peso ainda mais baixo do que da primeira vez que fui internada.

Margarida David Cardoso: Lembra-se que era dia 31 de outubro. Dia das Bruxas.

Susana Ferreira: Eu tinha uma consulta e estava toda satisfeita, porque tinha conseguido comer, ao almoço, uma daquelas sandes americanas. “Estou incrível, estou no auge.” E não é que chegou o raio da consulta e tenho para aí menos 400 gramas e não me deixam sair de lá. A médica diz: “Ok, com este peso temos que voltar a internar”. E eu… Acho que nunca fiz um berreiro tão grande como esse. Só dizia “não, não”, porque já tinha tido uma experiência e, apesar da experiência ter tido coisas positivas, é um ambiente muito assustador e tu não queres voltar para aquele ambiente.

Só que também sou uma rebelde muito pouco rebelde. Qualquer um, se calhar, levantava-se e fugia.

Margarida David Cardoso: Voltou para a psiquiatria de adultos. Neste segundo internamento, o sofrimento das companheiras de ala era pesado. Aprendeu a lidar com a colega de quarto, uma mulher com demência que não conseguia sossegar, que estava perdida no tempo e no seu próprio corpo; conta como limpou a casa de banho de uma outra; deu banho a uma terceira.

Susana Ferreira: Internar uma adolescente com anorexia, ou distúrbios alimentares, ou o que seja num serviço de psiquiatria para adultos com pessoas em crise não acho que seja muito boa ideia.

E então, segunda vez, em vez de duas semanas, fiquei dois meses inteiros, em que a primeira vez que eu tive numa dessas recompensas, que foi o acesso ao telefonema aos pais, foi uma semana antes de me vir embora.

Margarida David Cardoso: O contacto com o exterior estava vedado. Conta que dizer adeus à irmã que passava lá em baixo a caminho da faculdade de medicina já era uma infração. O tratamento tem que ser tão rígido como é a doença, há-de afirmar em entrevista a psiquiatra Isabel Brandão, especialista em perturbações do comportamento alimentar, que trabalhou 40 anos no São João. Miguel Bragança, diretor da psiquiatria, defende que a restrição dos contactos com a família “por vezes cria situações de sofrimento e tensão emocional em que a equipa de enfermagem tem de garantir o necessário ambiente à persistência no tratamento”. O contacto reservava-se às consultas de terapia familiar. Susana diz que então, no alto dos seus 16 anos, reclamava disto tudo. Principalmente, de ser um peixe no aquário.

Susana Ferreira: “Eu sou um peixe no aquário, vocês dão-me para comer e eu como. Eu não tenho que decidir. Vocês têm que arranjar outra forma de fazer tratamentos.” Que horror! Eu não sei como é que eles não me deram uma chapada e disseram para eu estar caladinha.

Margarida David Cardoso: Terá sido o início de uma experiência simples: a quantidade de comida que antes vinha no prato estava agora numa travessa, e Susana é que tinha que se servir.

Susana Ferreira: Entrei em pânico total. Não conseguia tomar uma decisão. Aquela comida era exatamente a mesma, exatamente a mesma quantidade que vinha antes. “Não consigo, não consigo, não consigo, não consigo.”

Margarida David Cardoso: A doença está cheia destes momentos de irracionalidade. Era preciso vir uma enfermeira, com quem ainda hoje fala, interromper-lhe o choro desesperado. “Miúda, safa-te. Não tens roupa interior lavada? Está ali o sabonete e o lavatório. Arranja-te.”

Susana Ferreira: Sei que isto parece muito estúpido, mas, na minha personalidade, precisava de sair… “Eu não sei quem sou, não sei o que quero, não sei onde vou. E preciso que me digam.” E é muito mais fácil a minha vida, se me disserem o que é que é suposto.

Margarida David Cardoso: Porque é que achas que foi tanto tempo? Porque é que ele foi mais difícil do que o primeiro?

Susana Ferreira: Tendo a experiência de que, por muito que eu aumentasse o peso, ia lá para fora, ia acontecer exatamente o mesmo, ia voltar tudo atrás, portanto, acho que não vale a pena. Então, houve muita recusa da alimentação no início. Houve muitas mais crises quase de pânico e quase histeria. Eu lembro-me de mandar um livro à minha médica, tipo novela. Ela fecha assim a porta e eu mando um livro, a dizer assim “Tirem-me daqui. Não sei quê”. O que é isto? Via tudo como sem solução.

IV

Susana Ferreira: Eu perdi a minha adolescência. Eu tenho uma adolescência tardia, porque só comecei aquela rebeldia, aquela coisa – se não pensarmos na rebeldia que é anorexia – depois. Portanto, foi muito estranho, porque estava toda a gente a avançar e tu sentes… Tu ficas parado no tempo. Não é uma medicação que resolve. Não é um tratamento rápido. Não vês resultados imediatamente. Então, estás ali em suspenso, em suspenso. E a vida vai acontecendo, acontecendo, e as coisas vão passando. E, no meu caso, houve ali um período de crescimento que não aconteceu.

Margarida David Cardoso: O segundo internamento acabou quando o aumento de peso deixou o corpo num lugar mais seguro, embora a cabeça não o tenha acompanhado. A anorexia deixou de estar lá passado algum tempo, mas comer nunca deixou de ser um problema.

Susana Ferreira: Eu não sei explicar às pessoas, porque é um interruptor. É qualquer coisa que acede ou apaga, acende… Não sei. Tão depressa eu entrei no jogo da obsessão da anorexia como entrei no jogo do comer compulsivamente.

Margarida David Cardoso: Deixa de haver capacidade de aguentar a restrição e a fome, o que não é uma trajetória rara. A prática clínica e investigações longas, que seguem utentes durante alguns meses ou vários anos, têm demonstrado que uma fatia significativa de pessoas com anorexia desenvolve mais tarde outras perturbações do comportamento alimentar. Nas pessoas com anorexia do tipo restritivo (que limitam muito o que comem) é particularmente comum a viragem para um quadro de compulsão alimentar (em que comem muito em muito pouco tempo, sentindo um absoluto descontrolo). Essa compulsão pode ser seguida por tentativas de vómito ou outros comportamentos compensatórios. Isto pode ser em si mesmo um subtipo de anorexia (anorexia purgativa) ou uma forma de bulimia.

Susana Ferreira: Aquela expressão do enche-te toda, toda, toda, toda… E depois não aguentas e acabas por deitar fora. Pois, eu, na bulimia, falhei. Fui muito fraca, não fui boa nessa doença. Falhei, porque eu não consigo vomitar. Não consigo vomitar ou fazer-me vomitar. Eu tentei, Margarida. Eu tentei muitas vezes. Não aconselho. Mas há essa evolução não só porque o teu corpo está em carência, como há ali uma disrupção qualquer no teu pensamento, na tua estrutura – não sei explicar de onde é que vem –, que é: tudo aquilo que eu estava a controlar, eu agora quero rebentar. Vou descontrolar totalmente. Atingiste ali um pico qualquer, então, a tudo o que eu dizia “Não”, agora é comer, comer, comer, comer, comer, comer.

Margarida David Cardoso: No final do 10.º ano, Susana começou a faltar às aulas.

Susana Ferreira: “Já não me interessa. Já não me interessa sequer estar aqui. Já não me interessa se quer acordar.” Mas não era rebeldia para ir, sei lá, jogar computadores e ver televisão. Não, ia só deambular pela cidade. Ia só deambular. Deambular, às vezes a chorar baba e ranho, sem saber o que é que se passava, completamente fora de controlo. “Não consigo, não aguento.”

Margarida David Cardoso: A capacidade de adiar a recompensa, que durante anos sustentou a anorexia, desapareceu. A única coisa que se torna regular é uma certa irregularidade.

Susana Ferreira: Porque estou sempre à procura de qualquer coisa e já não consigo ter o controlo. “Sou fraca, porque perdi o controlo” – também há muito essa cena, a anorexia tem muito isso. Mas a partir do momento que descontrolas e não consegues vomitar, não tens controlo sobre o teu corpo e sobre os teus impulsos, sobre tudo isso… É “Não consigo controlar o impulso”. “Quem é que não consegue controlar impulsos? Pessoas fracas. Não conseguem controlar impulsos.”

Margarida David Cardoso: Nesse imaginado ranking social associado ao peso, as anoréticas são “as mais bem sucedidas”. E investigadores têm descrito a batalha mental que é lidar com essa voz interna persistente, mais intensa numas pessoas do que noutras, que lhes diz que a restrição da comida é o caminho certo.

Era isso que tu pensavas?

Susana Ferreira: Exato. Não faz sentido nenhum. Mas, então, “Eu sou uma pessoa fraca. Anorexia estava tudo bem, porque eu conseguia controlar e agora não consigo”. Falto às aulas, não estudo. As notas começam a baixar, começa tudo a desaparecer. Não vou ter com as pessoas, porque eu não quero estar com pessoas. Não quero… Tenho vergonha agora, porque também engordei imenso e agora as pessoas olham para mim e dizem assim: “Então, o que é que aconteceu?” Eu também não consigo relacionar.

Não é que esteja completamente introvertida, porque isso também não é a minha maneira de ser. Quero ter sempre algum protagonismo de alguma forma. Intervinha nas aulas, e falava, e mandava piadas, e não sei o quê, mas isso é assim, é a minha forma de espetáculo, porque depois “Vamos sair, e vamos fazer não sei quê, e não sei que mais. Não, vamos mas é para casa, ficar num canto”.

Margarida David Cardoso: Susana tem memória do aniversário de 18 anos. Não houve festa. 

Susana Ferreira: “Está tudo mal, está tudo errado, porque eu perdi o controlo, perdi a anorexia, que era única coisa que eu tinha interessante sobre mim.” Agora só faço aquilo que toda a gente faz, que tem dificuldade de parar, que é: como demais. E ninguém percebe o problema de comer demais. “Comeste demais? Deixa lá, toda a gente come demais.” Não, não, não estás a perceber o que é que é comer demais. É: eu não tenho controlo. Perdi tudo. Não consigo…

Então, se não sentes a tua vida com propósito, não tens nada para ir buscar que te dê esse alívio, e essa vontade de existir, e de fazer coisas… É ali que vais buscar, é à comida. 

Margarida David Cardoso: A busca por alimentos açucarados é um vício que se autossustenta. Há um reforço dopaminérgico, das hormonas que causam sensação de prazer; a pessoa sente-se melhor e continua a comer; abre-se uma caixa de Pandora e mais vale comer tudo. Ainda para mais, no caso de Susana, numa altura em que as pessoas à volta já tinham baixado a guarda. Já não havia um aspecto esquelético que mais obviamente faz soar alarmes.

Susana Ferreira: “Ah, pronto, tu estás muito bem agora.” Não, estou pior do que estava antes e ninguém me consegue ajudar. Isso foi uma das cenas que foi mais difícil eu mostrar às pessoas, que é: eu estou pior agora. Tive anorexia sim, foi muito difícil, muito complicado. Mas agora é que está a ser difícil e agora é que está a ajuda? Agora, se calhar, é que eu preciso de ser internada de outra forma.

Margarida David Cardoso: A psicoterapia só viria aos 30 anos por iniciativa própria. Antes, nunca houve um rumo complementar ou alternativo às consultas de psiquiatria que tinha desde os 15. Essas terminaram antes da faculdade, numa altura em que tudo parecia estar mais alinhado. Depois veio uma licenciatura ao lado, outra terminada a custo.

Susana Ferreira: És uma miúda que não sabes o que queres. Tenho uma bruta de uma depressão, mas que não é identificada. Eu agora sei dizer que é, porque… Mas ninguém… “Ela não sabe o que quer simplesmente.”

Margarida David Cardoso: E Susana continua a encontrar na comida um mecanismo que tem tanto de preservação como de autodestruição. 

Não há, em Portugal, estudos epidemiológicos sobre a prevalência de perturbações do comportamento alimentar. Mas estima-se que nem a anorexia nem a bulimia sejam as doenças que afetam mais pessoas. Antes está a compulsão alimentar. E antes ainda, a forma mais comum, que se chama “perturbação do comportamento alimentar sem outra especificação”. É um diagnóstico vago, que distingue uma relação problemática com a comida.

Nas últimas duas décadas, o número de internamentos nos hospitais públicos tem oscilado entre 140 a 260 por ano. Segundo dados da Administração Central do Sistema de Saúde, o maior pico continuado de hospitalizações foi entre 2007 e 2014. Nos últimos dois anos, repetiu-se o número máximo de internamentos, 260. A maioria surge como resposta à anorexia. Pelo menos desde 2017, esta doença é responsável por quase 90% dos internamentos por distúrbios alimentares.

Evolução do número de internamentos hospitalares no SNS por perturbações do comportamento alimentar (diagnóstico principal) 

Dados enviados pela Administração Central do Sistema de Saúde, após consulta na base de dados BDMH a 18 de setembro de 2023.

Susana Ferreira: A minha relação com a comida não é saudável até aos dias de hoje. É sempre um escape quando falta qualquer coisa na tua vida e tu não sabes resolver: vais ou buscar comida ou não comes durante um dia inteiro. E consegues fazer essa flutuação assim de um jeito que é assustador. “Então, mas não comes desde…? Não, não como desde… Sei lá, há 24 horas, mas não faz mal, porque no outro dia comi demasiado.” Então, estás sempre a compensar.

Margarida David Cardoso: É um mecanismo ativado pela culpa do excesso anterior. Suficiente às vezes para derrubar a fome por umas horas, até ao final do dia.

Susana Ferreira: “Não, mas eu comi tipo… Durante hora e meia não parei de comer. Se calhar, não vou jantar agora.” Ainda tenho… Eu ainda tenho uma grande luta com a alimentação. Não como antes, mas não é um assunto leviano para mim.

Margarida David Cardoso: Tu, olhando para trás, muita coisa gostavas que tivesse sido diferente, mas principalmente para alguém que esteja a passar por isto agora ou alguém que já passou, o que que tu achas que teria ajudado muito? Se puderes, nomear uma coisa. “Isto era fundamental correr bem.”

Susana Ferreira: Eu acho… É assim: claro que quando estás numa situação de perigo físico, há os internamentos que são necessários… Basicamente, há situações em que tens que salvar a vida antes de começar o trabalho da parte psicológica… E isso tem que ser resolvido em primeiro lugar, que é normal. O que eu acho é que depois, sobretudo com esta doença dos distúrbios alimentares, é uma questão de… Isto não é sobre a comida. Isto é sobre a questão de controlo e é perceber porque é que esta necessidade de controlo sobre a comida aparece.

Margarida David Cardoso: No Serviço Nacional de Saúde, existe uma residência especializada no tratamento prolongado de perturbações do comportamento alimentar. Criada em 2015, sob a alçada do São João, tem capacidade para nove pessoas. Além de um trabalho intensivo e psicoterapêutico, para Susana teria sido importante ter encontrado outras pessoas com experiências semelhantes. Ainda que isso possa trazer um lado pouco útil à recuperação: uma espécie de competição, a ver quem é “mais bem sucedido” na sua doença. 

Susana Ferreira: Atenção. Podes falar e dizer assim: “Ai não, eu não penso nada disso. A minha experiência completamente diferente.” Mas só o poder falar já desbloqueia… E traz assim… É algum alívio e alguma possibilidade de perceber que não estás completamente isolado.

Aquela vida toda de conheceres, fazeres, arranjares os grupos e não sei quê… Suspenso, no ar. Ou tens aquelas pessoas que fizeste na infância ou, de repente, fica muito mais complicado criares assim uns relacionamentos. E acho que isso é das coisas que, se tivéssemos desbloqueado algumas coisinhas antes, se calhar, não tinha durado tanto tempo e não estava tão presa a isto tudo ainda, aos caderninhos que guardo como se fosse assim um momento fulcral na minha vida, assim… Que é, acaba por ser um momento do trauma, mas que ainda me agarro muito para justificar algumas coisas de hoje.

Se houver essa malha que ajude logo desde o início, eu acho que tinha ajudado muito. Tinha sido muito diferente, ajudado muito e, se calhar, não estava 15 anos ou 16 anos depois ainda a trabalhar determinadas coisas que podiam ter sido apanhadas na altura. E que, se calhar, na altura se tinham resolvido. E, se calhar, agora a minha vida estava um bocadinho, não digo melhor ou pior, mas mais… Talvez mais calma, mais em paz, mas equilibrada nesse sentido, porque é um equilíbrio que ainda não encontrei.

V

Bernardo Afonso: O tédio… É uma sensação de vácuo, uma fome sem vontade de comer. É talvez, no fundo, a insatisfacção da alma íntima por não lhe termos dado uma crença, a desolação da criança triste que intimamente somos, por não lhe termos comprado o brinquedo divino. É talvez a insegurança de quem precisa mão que o guie, e não sente, no caminho negro da sensação profunda, mais que a noite sem ruído de não poder pensar, a estrada sem nada de não saber sentir…

Citação de Livro do Desassossego, de Bernardo Soares

CRÉDITOS

Nuno Viegas: Acabaste de ouvir “Trinta e dois e setecentos”, um capítulo extra de Desassossego, série de 13 episódios sobre saúde e doença mental que podes ouvir onde quer que estejas a reproduzir a minha voz neste momento.

E neste momento, se fazes parte da Comunidade Fumaça, também podes ouvir já duas entrevistas que contextualizam a história de Susana Ferreira: uma com Isabel Brandão, psiquiatra especialista em comportamento alimentar, que trabalhou 40 anos no Hospital de São João, e outra com Tiago Duarte, psiquiatra do Hospital de Santa Maria, em Lisboa.

Basta ir a fumaca.pt/contribuir, e fazer uma doação mensal de 3, 5, 10 euros. Enviamos logo as entrevistas. Se não contribuis, tens de esperar umas semanas para lançarmos as entrevistas aqui também. Todo o jornalismo do Fumaça é público e gratuito, pode só demorar mais.

A principal vantagem de contribuir, na verdade, não é ter episódios mais cedo. É juntares-te às cerca de duas mil pessoas que todos os meses garantem que o Fumaça pode continuar a fazer jornalismo de investigação, procurar contraditório, fazer verificação de factos, pagar salários dignos. A vantagem de contribuir hoje é que a tua doação pequenina, mensal, passa a ser uma das muitas que já nos garantem metade do orçamento da redação, que ajudam a empregar 9 pessoas. Ajuda-nos a continuar, apoia o jornalismo independente. Vou dizer outra vez: fumaca.pt/contribuir.

Esta peça, Trinta e dois e setecentos contou com os contributos de outras pessoas com perturbações do comportamento alimentar, que não ouviste, em particular de Joana Guimarães; das nutricionistas Carolina Pinto e Margarida Beja; da pediatra Bárbara Mota, do Centro Materno Infantil do Norte, onde faz consulta a adolescentes; e do psiquiatra Tiago Duarte, uma das entrevistas extra, do Hospital de Santa Maria, onde – já agora – a consulta de perturbações do comportamento alimentar é aberta. Se precisares, podes ir com referenciação do médico de família ou pedir diretamente no hospital. Novamente, tens números de linhas de apoio psicológico na descrição deste episódio e em fumaca.pt.

Também foram importantes para a escrita o livro “A vida por um fio”, de Isabel do Carmo, e o texto “Relicário de uma anorexia”, de Carolina Ferreira Baptista, para a revista Mamute.

Este episódio foi escrito pela Margarida David Cardoso. O Bernardo Afonso fez a edição de texto e de som. Fez também o desenho de som e a música original que estás a ouvir. E leu o excerto habitual do Livro do Desassossego, de Bernardo Soares. Eu, Nuno Viegas, fiz a verificação de factos. A Joana Teresa Batista tratou da identidade gráfica. A Maria Almeida e o Ricardo Esteves Ribeiro participaram na construção coletiva desta história. Fazem ainda parte da equipa Fumaça: Fred Rocha e Luís Marquez.

Até já.

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