Segurança Privada: Exército de Precários (4/8)

Tubarões

Este é o quarto episódio da série “Exército de Precários”. As pessoas da Comunidade Fumaça já podem ouvir o quinto e sexto episódios e, ainda, um conjunto de entrevistas extra, exclusivas, com algumas das personagens centrais da história. Se também queres ter acesso, faz uma contribuição recorrente em aqui.

Esta reportagem foi escrita, produzida e editada para ser ouvida com auscultadores ou auriculares. O que se segue abaixo é a transcrição integral de toda a peça áudio.

Introdução

A minha conta de email do Fumaça foi criada na manhã de 24 de fevereiro de 2020, o dia em que me tornei oficialmente parte da equipa. À tarde, o Ricardo Esteves Ribeiro tirou umas horas para resumir o estado da investigação sobre a segurança privada em que o Fumaça andava a trabalhar desde o ano anterior. Eu retive bastante pouco.

E dois dias depois, pelas dez da manhã, estava na sala quatro do Palácio de São Bento, casa do Parlamento português, para fazer uma das coisas que mais odeio no jornalismo: seguir uma comissão parlamentar. E odeio-o por duas razões: quase todas as comissões são aborrecidas e demasiadas têm problemas técnicos.

A 16ª reunião ordinária da Comissão de Trabalho e Segurança Social foi uma tempestade perfeita. Eu era o único jornalista. Estava a fazer o meu primeiro trabalho numa nova redação. E, após três confusos telefonemas com os serviços da Assembleia, concluí que o sistema de som da sala estava avariado. O que significa que a gravação possível era esta:

Pedro Roque: E, finalmente, a intervenção final caberá de novo à Associação das Empresas de Segurança. Será uma resposta conjunta…

Captei o início da audição a partir de uma cadeira no lado esquerdo da sala, com o meu gravador. No fim da sessão a pedido de um funcionário do Parlamento enviei esse ficheiro para a Assembleia. Ficou como o único registo da intervenção inicial do presidente da Associação de Empresas de Segurança, a AES, na audição requerida pelo Bloco de Esquerda.

Rogério Alves: Em primeiro lugar, gostava de saudar a iniciativa do Bloco de Esquerda. Aliás, entre a Associação das Empresas de Segurança e, também, o Bloco de Esquerda, tem havido muita convergência no entendimento desta matéria.

Rogério Alves, à cabeça da AES há uma década, foi chamado ao Parlamento para falar da transmissão de estabelecimento falhada nas Infraestruturas de Portugal. A PSG tinha pegado no contrato e recusado empregar os seguranças que lá trabalhavam menos de dois meses antes.

A manifestação de Paulo Guimarães, no Porto, tinha sido há uma semana e meia. Mas se eu sabia alguma destas coisas, ainda não compreendia a importância real do que estava a acontecer.

Em retrospetiva, depois de ouvir repetidamente a intervenção de Rogério Alves e as perguntas dos deputados dos partidos que escolheram estar presentes, tenho a certeza disto: mesmo com contexto, a audição da AES foi incrivelmente aborrecida.

As empresas de segurança privada organizam-se em duas associações empresariais. Rogério Alves fez, durante uma hora, o papel de patrão com que os deputados gostam de negociar. E foi deixando, nas entrelinhas, por trás de jargão jurídico, ataques à outra associação empresarial, a Associação Nacional das Empresas de Segurança, a AESIRF: “os patrões intransigentes, a fazer concorrência desleal, a gerar os problemas do setor”.

Foi o Bloco de Esquerda a pedir esta audição. Um dos deputados do partido, José Soeiro, tinha dito, dias antes, em entrevista ao Fumaça, que a AESIRF era uma máfia. O presidente da AES, Rogério Alves, e o deputado estavam a jogar pela mesma equipa – e o testemunho de Rogério Alves serviu para sublinhar essa ideia. Só aí é que começou a audição a sério.

Pedro Roque: A AESIRF, a Associação Nacional das Empresas de Segurança, é representada aqui pelo senhor José Manuel Morgado Ribeiro, presidente, e pelo senhor doutor José Mota Soares. E, portanto, eu passaria, então, a palavra à AESIRF.

José Morgado Ribeiro: Bom dia a todos. [Tosse] Eu farto-me de tremer, tenho um problema de Parkinson. Portanto, para explicar porque às vezes tremo um bocado. Bem… Eu sou o indivíduo mais antigo a trabalhar em segurança privada em Portugal. Iniciei na atividade disto em 1970. Desde lá, até agora, tenho uma empresa que é o Grupo 8, que toda a gente deve conhecer. Estou no mercado há 48 anos e, portanto… Esta associação foi fundada também por mim e por outras entidades. Assim como a outra associação, eu também estive na origem dela, a AES. Depois por questões internas de não quererem que eu esteja no mercado fui… saí e fiquei só na AESIRF.

José Morgado Ribeiro é o ‘Dono Disto Tudo’ da segurança privada, se não tivesse sido no BES a alcunha bem que podia ter surgido nos corredores do Grupo 8, a empresa que fundou em 1972, uma das primeiras no setor. Daí que se auto-intitule e cito “o indivíduo mais antigo a trabalhar em segurança privada em Portugal”.

Em 1986, fundou a AESIRF, a primeira associação patronal do setor. Em 1990, fundou a AES, a outra associação patronal do setor. Esteve nas duas, teve divergências com alguns concorrentes e deixou a AES. Há um ano voltou a assumir diretamente a liderança da AESIRF.

José Morgado Ribeiro falou por três minutos na intervenção inicial. Tinha dez para usar. É um homem de poucas palavras, de raríssimas entrevistas, com uma vida pública resguardada. Mas é o homem que se senta com políticos e sindicalistas, em nome da segurança privada, desde o 25 de Abril de 1974.

É o homem que guiou, com mão de ferro, a negociação do Contrato Coletivo de Trabalho entre a AESIRF e a ASSP, em 2019. O documento que recusa a transmissão de estabelecimento.

Pedro Roque: Tem a palavra, de novo, o Bloco de Esquerda, senhor deputado José Soeiro.
José Soeiro: Muito obrigado, senhor presidente. O senhor José Manuel Morgado Ribeiro, estou a dizer o nome completo e correto que está aqui na…? 
José Morgado Ribeiro: É só Morgado.
José Soeiro: Morgado. Algumas empresas do setor – tanto quanto percebemos, não as que foram representadas pela associação anterior, mas algumas das que são representadas por esta associação, e algumas que não têm associação – estão, pura e simplesmente, a incumprir. O  Sr. Morgado, neste caso do Grupo 8, ou os responsáveis da PSG, que também é representada por esta associação, dizem: “Nós não cumprimos. Nós não cumprimos”.

As empresas que José Soeiro diz não cumprirem a lei são as 17 da AESIRF. Empresas portuguesas, incluindo o Grupo 8, a Prestibel, a 2045 – onde trabalhava o segurança que espancou Nicol Quinayas, no São João, no Porto –, e a PSG, onde trabalha Paulo Guimarães, na estação de Campanhã, e para quem trabalhavam os porteiros do Urban Beach.

José Morgado Ribeiro foi obrigado a ouvir os políticos durante 23 minutos antes de poder responder. 

Diana Ferreira (PCP): Não nos parece de todo aceitável que sejam postos em causa vidas de centenas de trabalhadores…

O presidente da AESIRF não gosta de ser atacado. Gesticula durante as intervenções dos deputados. Lança respostas curtas, de microfone desligado. 

Inês Sousa Real (PAN): Verifica-se também que estas não pretendem assim garantir, no nosso entender, os direitos dos trabalhadores transmitidos…

E depois, quando tem a palavra, explode.

José Morgado Ribeiro: Em 48 anos de atividade nunca tivemos problemas com o pessoal. Digam-me em que ano é que aconteceu uma situação como esta. E porquê agora, pergunto eu? Nós, o Grupo 8, ao longo da vida, em 48 anos, nunca ficou um ordenado em atraso e, praticamente, não tenho nenhuma questão em tribunal. Porquê? Porque cumpro a lei, no máximo. Em 1992, eu propus aumentos de 27%. Defesa dos trabalhadores está aqui [bate no peito]. Isto é que é a defesa dos trabalhadores. Vêm agora dizer que estão muito preocupados, então os senhores… Têm todo o direito. Porque aparece no mercado esta situação e está a beneficiar quem? Está a beneficiar as gigantes. Em 1989, fui chamado ao Ministério da Economia para resolver um problema. Fazem-me uma pergunta: “Se acabarmos com as empresas pequenas, vocês, empresas maiores, têm capacidade de absorver os trabalhadores?” Mais uma vez, os trabalhadores no meio. O que é que eles queriam? Queriam o monopólio. É o que eles andam a fazer ao longo deste tempo todo.

O que José Morgado Ribeiro está a dizer é uma reinterpretação muito bondosa da realidade. Não é verdade que tenha poucos casos em tribunal. É questionável que cumpra a lei ao máximo. Os ordenados chegam a horas, mas os valores deixam dúvidas. Vamos falar de tudo isso noutra altura. A proposta de aumentos, já agora, foi real. Mas vinha em troca da perda de outros direitos laborais. Sobre a reunião no Ministério da Economia não temos contraditório.

José Morgado Ribeiro: E depois os outros é que têm a culpa. Eu agora gostaria de pedir aqui ao doutor, porque é questões jurídicas. 
José Mota Soares: Muito bem. Eu vou, tomei aqui de…


O advogado da AESIRF, José Mota Soares, irmão de Pedro Mota Soares, ex-deputado do CDS e ministro do Trabalho dos dois Governos de Pedro Passos Coelho, interveio por uns minutos para fazer a defesa legal da posição dos patrões. Não durou. José Soeiro, deputado do Bloco de Esquerda, de microfone desligado, ia comentando as afirmações, provocando os representantes da AESIRF. E conseguiu descarrilar o testemunho.

Audição da AESIRF, na 16ª reunião ordinária da Comissão de Trabalho e Segurança Social da Assembleia da República, a 26 de fevereiro de 2020. José Morgado Ribeiro está do lado esquerdo (vestido todo de preto) do Deputado Pedro Roque, que preside aos trabalhos.
Fotografia: Fotograma da gravação da AR TV.

José Morgado Ribeiro: Não é assim?
José Soeiro: Não.
José Morgado Ribeiro: Então e se ele quiser fazer ele o serviço? Também passa?
José Soeiro: Mas eu não posso chegar e dizer “Eu não quero este trabalhador”.
José Morgado Ribeiro: Não pode? Se tem razões para isso, pode.
José Soeiro: Ah. Mas se tiver razões, isto não é assim.
José Morgado Ribeiro: Ah. Se tiver razões. Mas quem paga? É a antiga ou é a nova? E depois, outro problema mais grave ainda, é essa empresa que eu mencionei põe lá um trabalhador que estava num sítio qualquer, que não prestava. E fica lá inscrito e passa para a outra. Isto, isto, isto é real, é puro, é honesto?
José Soeiro: Como é que era antes?
José Mota Soares: Não passavam.
José Morgado Ribeiro: Não passavam. Eles vão buscar o refugo. E agora outra coisa, na segurança… Eu, por exemplo, os tribunais tem lá um indivíduo que não interessa, por qualquer razão: é surdo, como eu, ou fala mal como eu e não quer aqui o trabalhador. Como é que faz? Quem é que fica com ele? Quem é que paga?
José Soeiro: Um surdo não é “não interessa”, nem é “refugo”.
José Morgado Ribeiro: Não é… Eu falei no surdo, como posso falar noutra coisa, o malcriado. Não… Oiça uma coisa.


Estas palavras de José Morgado Ribeiro ressoaram pelo setor. Durante meses, os segurança que entrevistámos falaram desta audição, do momento, em específico, em que o presidente da AESIRF diz que as empresas usam a transmissão de estabelecimento para se livrar do refugo: pegam num segurança de que não gostam, metem-no num contrato que planeiam perder e passam o problema a quem ganhar o concurso. E para os seguranças, refugo no Grupo 8 significa um vigilante reivindicativo, que exige que se cumpra a lei, que se respeitem os direitos laborais.

Sofia Figueiredo, segurança na portaria da Autoridade para as Condições do Trabalho, em Lisboa.

Sofia Figueiredo: E eu não tenho palavras, sequer, para qualificar a atitude que aquele senhor [teve]. Eu entendo o Parlamento como uma casa de respeito. É assim que eu o entendo. E eu acho… Eu não tenho palavras para qualificar o inqualificável. Porque aquele senhor disse na audição que as empresas não podiam ficar com o refugo. O refugo é o lixo.

Francisco Pereira, antigo vigilante na estação da Gare do Oriente, em Lisboa.

Francisco Pereira: Epá, esse senhor devia-se calar ou estudar bem aquilo que ia fazer ali.  Se calhar ele nem sabia para o que foi e vai ali de barato e disse aquilo que lhe veio à cabeça. Porque ele não, ele não pode. Um presidente de uma associação e o presidente de uma empresa ou o fundador de uma empresa, dizer aquilo que disse, “que não respeitava a lei e não sei o quê”. Pá, mas que é isso?

Paulo Guimarães, segurança na Estação de Campanhã, no Porto.

Paulo Guimarães: Vocês acham que estão a falar com um homem que é algum refugo? Ou que é algum lixo? Eu não me considero. Nunca.

Francisco Pereira, de novo.

Francisco Pereira: Em pleno Parlamento? Não. Isso, os outros deputados deviam-lhe cair todos em cima, fosse quem fosse: “Então o meu amigo, está na casa da República portuguesa, da Constituição da República Portuguesa, e você vem a dizer que não cumpre a lei aqui dentro?” Amigo, era preso logo. Era. Se fosse eu, era capaz de ser logo preso. 

Rodrigo Santos, antigo segurança da estação da Gare do Oriente.

Rodrigo: Pá, eu não acho nada. Eu não vou dizer aqui o que acho e o que não acho. Eu não acho nada.
Ricardo Esteves Ribeiro: Não vale a pena.
Rodrigo: Não vale a pena, deixa a Justiça tratar disso. 

Débora Ferro, atualmente desempregada.

Débora Ferro: Perguntava-lhe a quantos vigilantes ele comeu as horas extras e os feriados e os Natais para construir um campo de golfe. Quantos vigilantes é que isso custa? Quantos vigilantes é que temos que enrabar num mês para conseguirmos comprar novos tacos? Era mais ou menos isso que eu lhe perguntava. Se calhar não usava o termo “enrabar”. Desculpem.

No fim daquela audição, em fevereiro de 2020, fui falar, em pessoa, com José Morgado Ribeiro. Apanhei-o à saída. Expliquei o que era o Fumaça e o que estávamos a fazer. Pedi-lhe uma entrevista. Ele disse-me que sim. Deixou-me um cartão com o número da empresa, o Grupo 8, e o nome da assistente pessoal: a Elsa.

Todos os dias, durante três meses, ligamos para esse número. Enviámos emails. Corremos listas telefónicas, contratos públicos e processos judiciais. E, durante três meses, José Morgado Ribeiro escapou-nos. Hoje, vamos atrás do homem que durante décadas moldou um setor à sua vontade, o homem que negociou com todos os governos, que influenciou todas as leis que, diz-se, tem até o poder de mandar criar um sindicato.

Este é o quarto episódio da série “Exército de Precário”, Tubarões.

Seja toda a gente bem vinda ao Fumaça. Eu sou o Nuno Viegas. 

Parte I – O Mito

Telefonista: [Som de chamada em espera] Central do Grupo 8. Boa tarde.
Nuno Viegas: Olá, boa tarde. Aqui Nuno Viegas, jornalista do Fumaça. Estou a ligar para marcar uma entrevista com o senhor José Manuel Morgado Ribeiro. Conseguia-me passar à Elsa?
Telefonista: Ok. Eu vou-lhe passar a chamada. Só um momentinho. 
Nuno Viegas: Obrigado.
Telefonista: Obrigado. [Música]

Quando se fala ao telefone com a mesma pessoa, dia após dia, durante meses, cria-se uma relação. Eu e a Elsa desenvolvemos algo entre a cordialidade e a irritação mútua. A Elsa quer que eu deixe de ligar. Eu quero muito, mesmo muito, que a Elsa me passe ao patrão.

Chamada telefónica
Elsa: Grupo 8. Boa tarde.
Nuno Viegas: Boa tarde, Elsa. Como está?
Elsa: Bem, muito obrigada. 
Nuno Viegas: Olhe, aqui Nuno Viegas. 
Elsa: E você, também?
Nuno Viegas: Sim. Estou ótimo. Aqui Nuno Viegas do Fumaça. Temos falado nos últimos meses. Olhe, eu estava a ligar para fazer aqui uma tentativa final, a ver se conseguíamos agendar alguma coisa com o senhor José Manuel Morgado Ribeiro.

Tenho de admitir que ao fim de três meses continuo a não saber o apelido da Elsa. Acho que o telefonista da central mo disse uma vez mas, sinceramente, esqueci-me. Ainda assim, cordialidade e uma resposta treinada.

Elsa: Estamos a falar do Sr. Morgado Ribeiro pai ou filho?
Nuno Viegas: Pai.
Elsa: Pai. Então deixa-me o seu contacto mais direto para que eu possa pedir ao senhor Morgado para ligar ao senhor, por favor?
Nuno Viegas: Tenho sim, agradecia-lhe.


José Morgado Ribeiro, pai, nunca me ligou de volta. Também nunca atendeu quando me transferiram a chamada. Andava fora do país. Não passava pelo Grupo 8 onde já deixou a administração para os filhos.

Foi por aí que tentei a seguir. Miguel Morgado Ribeiro, hoje à cabeça da empresa, no lugar do pai. Atendeu-me o telefone à primeira tentativa. Foi simpático, recusou ser entrevistado em nome do Grupo 8, porque a empresa não fala com a comunicação social, mas prometeu lembrar o pai de que nos devia uma resposta. Se alguma vez lhe disse alguma coisa, José Morgado Ribeiro escolheu não me responder.

Nos meses depois de o ver no Parlamento, falar com o presidente da AESIRF tornou-se uma missão pessoal. Tentámos como um todo, mas acho que me irritava particularmente tê-lo tido à minha frente e ter-me ficado pelo número da empresa.

Portanto, compilei, numa folha de excel, todos os dados que consegui encontrar sobre José Morgado Ribeiro. Tenho o seu número do cartão de cidadão, de contribuinte, de sócio do Benfica e de irmão da Santa Casa da Misericórdia da Tábua, onde era suplente do Conselho Fiscal. Nomes de  várias empresas em que penso que era investidor. Um processo judicial por, alegadamente, estacionar os carros dessas empresas num lugar reservado. Várias moradas. E um número de telefone fixo que era reencaminhado,  automaticamente, para o número da central do Grupo 8. Acabava sempre a falar com a Elsa.

O que não tinha, era forma de falar diretamente com José Morgado Ribeiro. Por outro lado, desde fevereiro que tínhamos uma entrevista garantida com o líder de outra associação patronal. 

Ricardo Esteves Ribeiro: Íamos pedir só que se apresente primeiro, para ficarmos com esse registo em áudio. Pode ser?
Rogério Alves: Que eu me apresente?
Ricardo Esteves Ribeiro: Sim.
Rogério Alves: Bem, o meu nome é Rogério Alves. Tenho 58 anos. Sou advogado há 33 anos. E, atualmente, também presidente da Associação de Empresas de Segurança Privada, há cerca de 10 anos. Chega de apresentação
? Hum?

Entrevistámos Rogério Alves numa das muitas salas de reuniões da sociedade de advogados que fundou, em 2013. O ambiente é sumptuoso, numa palavra. Emanar luxo é uma preocupação central. Antes da entrevista passámos dez minutos a encontrar o sítio certo para a conversa, porque Rogério Alves tem uma sala de reuniões favorita. Mas a mesa era tão grande que não conseguimos encaixar lá os apoios dos microfones. Ficámos pela segunda melhor mesa de madeira escura da Rogério Alves e Associados.

A imagem da Associação de Empresas de Segurança é muito esta: são os responsáveis, adultos e magnânimos.

Há 81 empresas de segurança privada em Portugal, seguindo o número mais recente que temos, de agosto de 2020. Oito estão na AES. Juntam-se aqui empresas portuguesas com grande capital, como a Strong Charon, detida pelo Grupo Trivalor, e as que têm investimento estrangeiro, como a Securitas e a Prosegur. Pelas contas da AES, as oito empresas da associação têm metade da faturação do setor.

Rogério Alves: Somos a associação mais representativa e somos uma associação muito representativa.
Nuno Viegas: São uma associação de elites.
Rogério Alves: Não. Isso é uma conclusão…
Nuno Viegas: Se representam a grande faturação…
Rogério Alves: Isso é uma conclusão errada.
Nuno Viegas: As empresas com capital estrangeiro….
Rogério Alves: Não. Não. Não. Isso é tudo mistificação, erro e retórica vazia.


Há sempre um grau elevado de malabarismos verbais nas respostas de Rogério Alves. Foi Bastonário da Ordem dos Advogados – o mais jovem de sempre – e é, há vários anos, presidente da Mesa da Assembleia Geral do Sporting Clube de Portugal. Não é segurança privado, de todo. Nunca dirigiu uma empresa de segurança privada. Que se saiba, nunca investiu na segurança privada. É advogado há 30 anos e professor de Estratégia e Retórica Forense na Universidade Católica. E fala como tal, com infinitos cuidados no vocabulário, na terminologia e na argumentação.

Receção do escritório da Rogério Alves & Associados – Sociedade de Advogados. As instalações ficam no quarto andar do n.º 61 da Avenida Álvares Cabral, no centro de Lisboa.
Fotografia: RA&A

Essa é uma das razões para estar à cabeça da AES: não tem ligações prévias, portanto, é mais fácil ser independente. E, além disso, é conhecido. Aparece nos jornais, nas televisões e nas rádios há anos. Tem acesso fácil à comunicação social quando a AES precisa de falar.

E nas notícias têm aparecido muitos embates entre Rogério Alves e as empresas da AESIRF, da outra associação patronal. A tensão foi óbvia na audição parlamentar. Mas o presidente da AES nunca fala num confronto aberto com José Morgado Ribeiro, numa rivalidade com o seu homólogo. Pelo contrário.

Rogério Alves: É uma pessoa com quem tenho uma ótima relação pessoal, o senhor Morgado Ribeiro.
Ricardo Esteves Ribeiro: José Morgado Ribeiro?
Rogério Alves: Sim, ótima.
Ricardo Esteves Ribeiro: Antes ainda de ter entrado na segurança privada?
Rogério Alves: Não, não, não, não, não. Eu não o conhecia, digamos. Almoço com ele, de vez em quando, ali no Bota Feijão. Agora que estivemos confinados lá se ficou o feijão. O feijão ficou na panela. Mas tenho simpatia por ele. Agora, a relação, quer a nível pessoal, quer a nível institucional, é boa. É ótima. Não poderia ser de outra forma, independentemente de, por vezes, estarmos em desacordo.


Em 2020, desacordo na segurança privada significa transmissão de estabelecimento. Nem sempre foi assim.

Por 20 anos, entre 1991 e 2011, esta questão toda era regulada por menos de 70 palavras nos Contratos Coletivos de Trabalho assinados pela AES e a AESIRF com os sindicatos do setor – os documentos negociados entre patrões e sindicatos para definir os direitos mínimos dos trabalhadores. Havia múltiplos documentos, mas diziam todos o mesmo. Se houver a transferência da titularidade ou da gestão de um estabelecimento, o novo patrão assume os contratos de trabalho.

Ora, isto não responde, na verdade, à questão que anda a dividir o setor: se um contrato de segurança privada constituiu um estabelecimento que pode ser transferido.

E, em 2010, assim que Rogério Alves assumiu a presidência da AES, a cláusula mudou. As duas associações e os sindicatos concordaram que, cito: “Não se enquadra no conceito de transmissão de empresa ou estabelecimento a perda de cliente”, ou seja, quando um contrato muda de mãos os vigilantes não são transmitidos para a empresa que fica com o serviço. Era a cláusula 13. Mas o presidente da AES diz que nem se lembra.

Rogério Alves: Não tenho nenhuma memória disso. Não tenho nenhuma memória disso.
Ricardo Esteves Ribeiro: Mas não foi discutida por si? Não foi pensada por si?
Rogério Alves: Não, não, não, não, não.
Ricardo Esteves Ribeiro: Ou seja, quando chegou isso já estava decidido?
Nuno Viegas: Mas a questão aqui é…
Rogério Alves: Eu não tenho memória disso, mas não sei. Eu não tive nenhuma intervenção na confeção dessa norma. Não tive. Porque, se tivesse tido, muito provavelmente – poderia estar distraído também, mas… –, muito provavelmente, teria dito: “Não. A norma não pode dizer isto”.


Até 2017, a norma ficou assim. Rogério Alves, diz que estava mal escrita, incompleta, usou o termo “inútil”. Mas o texto ficou assim, pelo menos até ao desfecho de um processo judicial movido pela Strong, atual Strong Charon, em 2014, contra a própria associação empresarial. O resultado é um acórdão da Relação de Lisboa, de dezembro de 2017. O tribunal decidiu que a cláusula era ilegal.

Rogério Alves foi Bastonário da Ordem dos Advogados – o mais jovem de sempre – e é, há vários anos, presidente da Mesa da Assembleia Geral do Sporting Clube de Portugal.
Fotografia: RA&A

Rogério Alves: Portanto, o que o tribunal diz, nas suas, nas suas… digamos, raciocínios jurídicos: “A cláusula é nula”. Mas isso resolve algum problema? Não, isso resolve problema nenhum. Agora, nem aquela temos. Aquela também não resolvia grandes problemas, diga-se de passagem. Mas, agora, ficámos sem nada. Bom, então temos de impulsionar uma análise mais intensa desta matéria para perceber então o que é que se deve fazer? Bom e, aí, uma vez mais, houve grande debate interno dentro da associação. Houve grande debate interno dentro da associação. Até que se chegou a um consenso.

O consenso na AES era este: quando um contrato muda de mãos, há transmissão de estabelecimento. Foi com essa posição, decalcada do tribunal, que a associação foi negociar o Contrato Coletivo de Trabalho para 2019, no início de 2018. Mas a AESIRF não concordava. 

É aqui que acaba a história que Rogério Alves nos pode contar. O presidente da AES não estava na sala de negociações, não sabe quando é que a AESIRF se afastou. Vamos voltar a falar de Rogério Alves, da AES, e das muitas acusações que envolvem as empresas da Associação, mais à frente nesta série. Por agora, o foco está na AESIRF e no que José Morgado Ribeiro fez depois dessa quebra.

Nas negociações, a AES e a AESIRF tinham, inicialmente, um interlocutor comum, o maior sindicato da segurança privada: o STAD. Rui Tomé é o seu vice-coordenador nacional e tem o pelouro da segurança privada.

Rui Tomé: As negociações correram, correram bem.
Ricardo Esteves Ribeiro: E nessas negociações estava a AES e estava a AESIRF.
Rui Tomé: Estava a AES e estava a AESIRF. Até uma determinada altura, que foi o acordo de princípios que foi acordado por todos. Mas, na altura da assinatura do acordo de princípios, a AESIRF não quis assinar. Portanto, não assinou.

Em maio de 2018, a AESIRF, de José Morgado Ribeiro, afastou-se das negociações porque recusava a leitura da AES e do STAD sobre a transmissão de estabelecimento. Mas o contrato foi assinado na mesma e, agora na cláusula 14, garantia a transmissão de estabelecimento sempre que se perdia um contrato com um cliente.

O Contrato Coletivo de Trabalho assinado pelo STAD e pela AES entrou em vigor a 1 de janeiro de 2019. Nos dias seguintes, como habitual, patrões e sindicatos pediram uma portaria de extensão, um documento emitido pelo Ministério do Trabalho que diz que todas as empresas de um setor têm de seguir aquele Contrato, mesmo que não o tenham assinado.

Normalmente, este processo não gera problemas, porque as duas associações querem a mesma coisa. Concordam com as regras. Era o que acontecia, todos os anos, desde 1991. Mas, desta vez, uma estava de fora. Portanto, não queria que as regras da outra se tornassem o hábito do setor.

Por isso, a associação de José Morgado Ribeiro deduziu oposição à portaria. Ou seja, pediu que só as empresas da AES tivessem de obedecer ao Contrato Coletivo de Trabalho negociado pela AES. Entre elas podiam ter transmissão de estabelecimento. Mas não iam obrigar os outros a fazer a mesma coisa.

E para fortalecer a posição, em maio de 2019 a AESIRF assinou com outro sindicato, a ASSP (ou A.S.S.P.) um Contrato Coletivo de Trabalho com uma única diferença substancial: dizia que não havia transmissão de estabelecimento. Este documento é citado por todas as empresas que recusam a transmissão na segurança privada.

E isto é muito importante. Porque ao assinar um contrato com a ASSP, as empresas da AESIRF passam a ter um documento, aceite pelos representantes dos trabalhadores, a que podem recorrer para regular a transmissão nos seus termos. É por isto que, em 2019, quando a Strong Charon perdeu o serviço das Infraestruturas de Portugal para a PSG, a Strong disse a Paulo Guimarães que ele já não era seu empregado, seguindo as regras da AES; e a PSG, disse a Paulo Guimarães que pelas regras da AESIRF ele nunca se tinha tornado seu empregado. É aqui que nasce o limbo. 

E isto não podia acontecer sem a ASSP. A AESIRF, como associação empresarial, precisa legalmente de um sindicato para negociar um Contrato Coletivo de Trabalho.

E, para Rui Tomé, vice-coordenador do STAD, não é um acaso ter sido a ASSP a assinar. 

Rui Tomé, número dois do STAD, com o pelouro da segurança privada.
Fotografia: Esquerda.net

Rui Tomé: Este sindicato apareceu mais tarde. E apareceu, no nosso entender, com um objetivo. A AESIRF não seguiu o Acordo de Princípio; entretanto, saiu o aviso da portaria de extensão, e a AESIRF deduziu oposição à portaria de extensão. E depois, mais tarde, é que a AESIRF assina um Contrato Coletivo de Trabalho com este outro sindicato. E que assina, portanto, o tal contrato que tem aquela matéria.
Ricardo Esteves Ribeiro: Aquilo que está a dizer é que a ASSP foi criada com o objetivo de fazer um novo Contrato Coletivo de Trabalho com a AESIRF, porque a AESIRF não conseguiu convencer-vos a fazer com que a cláusula fosse aquela que queriam?
Rui Tomé: Eu não se foi [hesita].
Ricardo Esteves Ribeiro: Mas parecia ser o que estava a sugerir. 
Rui Tomé: Portanto, eu não posso afirmá-lo, obviamente. Mas que…
Nuno Viegas: Mas estava a insinuá-lo.
Rui Tomé: Se a AESIRF não assina o acordo de princípios porque não quer assinar com a 14.ª, a sucessão do posto de trabalho, e depois assina, faz um Contrato Coletivo de Trabalho, com outro sindicato em que está lá, exatamente, a cláusula que a AESIRF quer… Cada um que faça a leitura que entender.
Ricardo Esteves Ribeiro: Portanto, acha que José Morgado Ribeiro teve mão na criação da ASSP?
Rui Tomé: Eu não sei se ele teve mão na criação desse sindicato. Aquilo que eu sei foi que a AESIRF conseguiu um contrato à medida daquilo que pretendem.


A ASSP (Associação Sindical da Segurança Privada) tornou-se formalmente um sindicato a 15 de março de 2019. Em pouco mais de dois meses negociou um Contrato Coletivo de Trabalho. Foi extraordinariamente rápido. 

Paulo Guimarães: Fizeram… Um funcionário do Grupo 8 fez uma associação, um sindicato, um sindicato criado… Que eu não chamo bem um sindicato, é a associação ASSP. Foi feita a correr para contrapor o Contrato Coletivo de Trabalho que foi assinado pela AES.

Este é Paulo Guimarães, segurança da estação de comboios de Campanhã, na manifestação que organizou em frente à sede da IP, no Porto. E esta é a primeira vez que ouvimos um dos rumores mais populares da segurança privada portuguesa, em 2020

A acusação é esta: José Morgado Ribeiro pegou num funcionário da sua empresa, o Grupo 8, e mandou-o criar um sindicato com o objetivo único de dar à sua associação patronal, a AESIRF, um fantoche que assinasse o contrato que dava mais jeito aos patrões.

O funcionário do Grupo 8 que fundou a ASSP é Rui Brito da Silva. A ASSP, dizem, foi criada por Rui Brito da Silva a mando de José Morgado Ribeiro. Não é uma ideia restrita a um pequeno grupo de conspiradores. Este tema está sempre a surgir, em postos separados, com funcionários de empresas diferentes.

Francisco Pereira, antigo vigilante na estação da Gare do Oriente, com a Strong Charon.

Francisco Pereira: É um sindicato criado pelos patrões, tanto que eles vão sempre pelo lado dos patrões, com propostas descabidas. Não, não, não fazem sentido. Então, em vez de estarem a dar condições de trabalho aos homens, estão a tirar condições de trabalho. Então?

Denys Vatolin, na altura desta entrevista, vigilante do Tribunal de Benavente, para a COPS.

Denys Vatolin: Por aquilo que eu tenho acompanhado nos grupos aquilo é unha com carne, está aí negócio. [Risos]
Nuno Viegas: O que quer dizer com isso?
Denys Vatolin: Epá, parece que está a favor da ilegalidade.

Sofia Figueiredo, segurança da sede da Autoridade para as Condições do Trabalho, em Lisboa, para a PSG.

Nuno Viegas: A ASSP está vergada ao interesse das empresas?
Sofia Figueiredo: Está, isto é o meu entendimento. No meu entendimento, está.
Nuno Viegas: E foi criada por encomenda da AESIRF?
Sofia Figueiredo: Ouve-se dizer que sim. Eu não posso…. Sendo que temos um presidente da ASSP que é trabalhador do Grupo 8. Aquilo é um sindicato fantasma, não é?


E isto continua e continua. Esta história é quase consensual. Os timings batem certo. Em maio de 2018, quando a AESIRF rompe as negociações, a ASSP ainda nem era um sindicato. No espaço de um ano tinha um contrato coletivo de Trabalho assinado. As ligações são óbvias e passam todas pelo Grupo 8. Mas, durante meses, ninguém nos conseguiu dar uma prova palpável de corrupção. E José Morgado Ribeiro continuou a não nos atender o telefone.

Parte III – Esplanadas

Nuno Viegas: É assim, desces aqui a Avenida de Roma, passas a Praça de Alvalade e é a seguir. Portanto, Ricardo, vamos fazer o quê agora?
Ricardo Esteves Ribeiro: Vamos primeiro ao Grupo 8, tentar falar com José Morgado Ribeiro. Ah… depois, não conseguindo, vamos à sede da AESIRF, tentar falar com José Morgado Ribeiro. E a seguir vamos onde?
Nuno Viegas: A casa de José Morgado Ribeiro, tentar falar com José Morgado Ribeiro.


A 18 de maio de 2020, tínhamos o que eu achava ser a provável morada do ‘Dono Disto Tudo’. E ao fim de meses de telefonemas, eu, o Pedro Miguel Santos e o Ricardo Esteves Ribeiro tirámos o dia para ir bater a portas. Começando pela empresa que fundou, o Grupo 8.

Ricardo Esteves Ribeiro: Grupo 8. É aqui. 
Nuno Viegas: Aí está. Estás a assumir que sequer abrem a porta.
Ricardo Esteves Ribeiro: Pois, é isso.

A sede do Grupo 8 é um edifício administrativo, com garagem para os carros da empresa, na Avenida Estados Unidos da América, em Lisboa. Há um rececionista à entrada.

Nuno Viegas: Boa tarde. Como está?
Rececionista: Boas.
Nuno Viegas: Olhe, diga-me uma coisa, o senhor José Manuel Morgado Ribeiro está cá, hoje?
Rececionista: [Acena que não]
Ricardo Esteves Ribeiro: Então?
Pedro Miguel Santos: Então?
Ricardo Esteves Ribeiro: Não está?
Nuno Viegas: Uma vez por outra vem cá.
Ricardo Esteves Ribeiro: Ok.
Nuno Viegas: Perguntei se ele estaria pela AESIRF. Ele apostou que ele estava em casa.
Pedro Miguel Santos: Então, vamos à AESIRF.
Nuno Viegas: Sim.
Pedro Miguel Santos: Não vá dar-se o caso de ele hoje, excecionalmente, ter ido à AESIRF e não estar em casa.
Nuno Viegas: Eu, por mim, vamos a todos os síti
os.

A sede da AESIRF (ou a morada oficial da AESIRF), é uma cave na Rua Carolina Michaelis de Vasconcelos, em Benfica. E, aqui, não há recepcionista. Só a porta trancada de um prédio residencial. Tivemos sorte, chegou uma vizinha.

Ricardo Esteves Ribeiro: Por acaso não me sabe dizer, a AESIRF – que é a Associação de Empresas de Segurança Privada – é ali na…
[Vizinha acena que não]
Ricardo Esteves Ribeiro: Não faz ideia?
Nuno Viegas: Importa-se que vamos ver?
Vizinha: Por mim.
[Porta abre]
Nuno Viegas: Obrigado
Ricardo Esteves Ribeiro: Nunca viu, nunca viu, ninguém segurança ou assim, da vigilância? Não… Não faz ideia? Pronto, está bem. Nós vínhamos para uma entrevista. Obrigado. 
Nuno Viegas: Obrigado.


Ninguém abriu a porta. Eram duas da tarde. Ligámos para o número da AESIRF. Atendeu o secretário-geral, António Malheiro. Confirmou que a morada era esta mas não havia atendimento ao público, por causa do COVID-19.

Também nos disse que estavam a reestruturar a associação. Até ao fim de 2020 ia haver eleições e José Morgado Ribeiro não sabia se ia continuar mas, de qualquer forma, não estaria disponível para entrevistas. Até hoje, já agora, não houve qualquer anúncio público de mudanças na AESIRF.

Ricardo Esteves Ribeiro: É um bom bairro. Um bairro
Pedro Miguel Santos: Um bairro de classe média. Normal. Não é um bom bairro.
Ricardo Esteves Ribeiro: Classe média?
Pedro Miguel Santos: É um bairro de gente remediada.
Ricardo Esteves Ribeiro: Classe média, Pedro?
Pedro Miguel Santos: Então não é? Não? Achas que é um bairro…
Ricardo Esteves Ribeiro: Opa, foda-se. É um bairro… Desculpa, não sei quais é que são os teus bairros.
Pedro Miguel Santos: Achas que é um bairro de ricos? 
Ricardo Esteves Ribeiro: Claro que é.
Pedro Miguel Santos: Isto?
Ricardo Esteves Ribeiro: Claro que é.

Estamos na Pampilheira, em Cascais, parte da Grande Lisboa. E como se pode ouvir, acabamos de chegar à última morada que consegui encontrar para José Morgado Ribeiro.

Eu acho que é um bom bairro, para que fique registado. São moradias de dois ou três andares, com bonitos quintais e garagem. Parámos em frente a um portão com um alarme do Grupo 8.

Nuno Viegas: Então, quando ele recusar, qual é a pergunta que fazemos?
Pedro Miguel Santos: Quando é que são as eleições? Porque é que se demitiu?
Ricardo Esteves Ribeiro: Pá eu fazia…. Não, eu não sei. Eu acho que fazia a pergunta uma das mais agressivas, das últimas. Porque eu acho que se ele disser que não vem, que não dá a entrevista…
Pedro Miguel Santos: Nós temos de dizer: “Há imensa gente que lhe faz acusações graves”…
Ricardo Esteves Ribeiro: Exato. Temos de dizer: “Desculpe. Isto são acusações muito graves. E se não forem respondidas vão para o ar como estão e isso é mau para si
Pedro Miguel Santos: Não, “e o senhor tem de se defender”.

[Campainha]
Mulher: Quem é?
Ricardo Esteves Ribeiro: Olá. Boa tarde. Daqui fala Ricardo Ribeiro. Nós queríamos perguntar se o senhor José Morgado Ribeiro estava?
Mulher: Não. Não está.
Ricardo Esteves Ribeiro: Ah ok. Nós estávamos à procura dele. Ele tinha-nos concedido uma…
Mulher: Sim. É para?
Ricardo Esteves Ribeiro: É para uma entrevista.
Mulher: Não. Ele não está.
Ricardo Esteves Ribeiro: E sabe-me dizer onde é que está? Nós queríamos tentar chegar à fala com ele. Ou dar-nos um contacto. 
Pedro Miguel Santos: Um email, um número de telefone. Qualquer coisa.
Mulher: Só um bocadinho, está bem?
Ricardo Esteves Ribeiro: Claro, claro, claro.
Pedro Miguel Santos: Ok.

[Portão abre]
Ricardo Esteves Ribeiro: Oi.. Ah, olá.
Filho: Boa tarde.
Nuno Viegas: Olá, boa tarde.
Ricardo Esteves Ribeiro: Olá, boa tarde, tudo bem?
Filho: Bem, obrigado.
Ricardo Esteves Ribeiro: O meu nome é Ricardo. Nós fazemos parte do Fumaça.
Pedro Miguel Santos: O meu nome é Pedro.
Nuno Viegas: Nuno.
Ricardo Esteves Ribeiro: E estávamos à procura do senhor José Morgado Ribeiro. Basicamente, durante… Não sei quem é que… É o filho?
Filho: Filho.
Ricardo Esteves Ribeiro: É o Miguel?
Filho: Não.
Ricardo Esteves Ribeiro: Eh… Nós falamos com ele durante…

Tínhamos a morada certa, mas vínhamos com uns anos de atraso. O dono do Grupo 8 chegou a morar ali, mas deixou a casa a um dos filhos e mudou-se para outro sítio, também em Cascais.

O filho que veio falar connosco ao portão, Pedro, despachou-nos exatamente como o irmão, Miguel, tinha feito semanas antes. Ficou com o nosso contacto, prometeu pedir ao pai para nos ligar e mandou-nos embora. Foi simpático, mas não nos deu uma nova morada.

[Portão fecha]
Nuno Viegas: Como é que encontramos a nova morada?
Ricardo Esteves Ribeiro: Se bem que… Se calhar esperávamos que ele ligasse, não?
Nuno Viegas: Não.
Ricardo Esteves Ribeiro: Não?
Nuno Viegas: Ele nunca vai ligar.
Ricardo Esteves Ribeiro: Está bem, mas…

Sabíamos que José Morgado Ribeiro estava ali perto. Tínhamos uma morada antiga. E a atual, garantiu-nos o filho, era em Cascais. Fora isso, nada. Éramos só três jornalistas perdidos num bairro de classe alta, na Pampilheira. Ou, como Pedro Miguel Santos diria, um bairro de gente remediada. Portanto, fizemos a única coisa lógica. Fomos beber uma cerveja à tasca mais próxima.

Nuno Viegas: Boa tarde.
Pedro Miguel Santos: Pode ser aqui, para não estarmos ao sol? 
Ricardo Esteves Ribeiro: Se calhar, lá fora…
Pedro Miguel Santos: Lá fora? Preferes lá fora?
Ricardo Esteves Ribeiro: Pode ser ali. 
[Sons de arrastas de mesas e cadeiras na esplanada]

Pedimos três finos e batatas fritas para petiscar. O serviço do Café Benfiquista, em Birre, é – passo a publicidade – extremamente rápido e muito eficiente. Não havia mais ninguém na esplanada. Era o ambiente ideal para improvisar uma redação.

Ricardo Esteves Ribeiro: E se fosse a morada dos dois filhos?
Nuno Viegas: Serve para?
Ricardo Esteves Ribeiro: Em Birre, Cascais, em 2001. 
Pedro Miguel Santos: Então é isso.
Ricardo Esteves Ribeiro: É igual.
Pedro Miguel Santos: Então, se um filho mora na casa que era dele.
Ricardo Esteves Ribeiro: Mas é a mesma, para os dois filhos.
Pedro Miguel Santos: É esta?
Nuno Viegas: É isso.
Pedro Miguel Santos: É isto? Ou não?
Nuno Viegas: Não, não, não. É outra casa em Cascais.
Ricardo Esteves Ribeiro: É uma outra casa em Cascais onde os dois filhos moram. Ou moravam, em 2001.

Encontrámos um outro endereço, em Cascais, onde dois dos filhos de José Morgado Ribeiro tinham tido a morada fiscal há vinte anos. Já a devia ter visto muitas vezes nos últimos meses mas nunca lhe prestei atenção. E, hoje em dia, as listas telefónicas estão compiladas online.

Nuno Viegas: Querem o número de casa?
Ricardo Esteves Ribeiro: Queremos.
Nuno Viegas: 214…

Telefonámos.

[Som de chamada]
Mulher: Estou?
Ricardo Esteves Ribeiro: Sim, boa tarde. 
Mulher: Sim. Boa tarde.
Ricardo Esteves Ribeiro: Boa tarde. O meu nome é Ricardo Ribeiro. Eu sou jornalista.
Mulher: Sim. 
Ricardo Esteves Ribeiro: Estava a ligar para perguntar se era possível falar com o doutor José Morgado Ribeiro.
Mulher: Eu não sei se ele está. Só um momento.
Ricardo Esteves Ribeiro: Claro.
[Alguns segundos de espera]
José Morgado Ribeiro: Estou?
Ricardo Esteves Ribeiro: Sim?
José Morgado Ribeiro: Sim, bom dia. Boa tarde.
Ricardo Esteves Ribeiro: Senhor José Morgado Ribeiro?
José Morgado Ribeiro: Sou, sim senhor.
Ricardo Esteves Ribeiro: Ah, olá. Como está, tudo bem?

E, sim, era mesmo ele. Ao fim de três meses, José Morgado Ribeiro aceitou dar-nos a entrevista.

[Telefonema a desligar]
Nuno Viegas: Putos… [riso]
Ricardo Esteves Ribeiro: Vamos lá.
Pedro Miguel Santos: Parece que o jornalismo é mesmo isto: é vir ter com as pessoas.
Ricardo Esteves Ribeiro:  Dá para pedir para levar?

Parte IV – O Homem

Ricardo Esteves Ribeiro: Eia, isto é uma casa gigante. Está aqui muita gente do Grupo 8 cá dentro, de certeza. Bem, vamos a isto.
[Campainha]
Pedro Miguel Santos: Olha as câmaras de segurança ali, do outro lado, no poste.
Ricardo Esteves Ribeiro: Olá, boa tarde. Vínhamos falar com o senhor José Morgado Ribeiro. Obrigado. [Portão abre] Tens o gel? Só para ele ver.
Ricardo Esteves Ribeiro: Olá. Como está, tudo bem?
José Morgado Ribeiro:
Olá, que tal?
Ricardo Esteves Ribeiro: Olá. Como é que está? Agora entramos aqui de máscara e tudo.

José Morgado Ribeiro mora numa mansão com piscina e campo de golfe nas traseiras. A casa é enorme. Mobilada a madeira escura, veludos e pratas. Há um quadro de Júlio Pomar na sala e um gigantesco tapete de arraiolos no chão. O exterior da propriedade tem sinais de alarmes do Grupo 8. Há um telescópio no escritório. É o tipo de casa que se vê num videoclipe ou numa novela da TVI. E isto é o que se conseguia ver ao entrar. Não tivemos uma tour pelo resto das divisões.

O fundador do Grupo 8 diz que é uma boa casa. Mas sublinha que pagou por ela porque nunca gastou no jogo, nunca desperdiçou o que tinha. Foi poupando e investiu bem. 

O líder da AESIRF tem 75 anos. Sofre de Parkinson, disse-o no Parlamento, assim que começou a audiência em fevereiro. Foram as primeiras palavras que ouvi dele. Move-se devagar. Está um pouco curvado. Mas ainda há algo duro dentro dele. Fala com convicção. Olha-nos sem se distrair. Raramente divaga.

Sentamo-nos na sala para falar. Estávamos longe e todos de máscara, por precaução. O som não é o melhor.

José Morgado Ribeiro: O meu nome é José Morgado Ribeiro, como já sabe. Estou na segurança privada há 48 anos. Fui oficial do Exército miliciano, na Guerra do Ultramar, em 1968 a 1970 (quase finais de 70). E, depois, a convite, fui trabalhar para a segurança privada, de onde fiz o Grupo 8. Nomeadamente, era Grupo 8, porque inicialmente éramos oito sócios. Neste momento, sou sozinho. A história do Grupo 8 é muito longa, como vê, somos a empresa portuguesa mais antiga no mercado nacional.

José Morgado Ribeiro começou a carreira na Custódia, uma empresa que se transformaria, anos depois, no braço português da Securitas. Com outros três ex-militares e quatro civis, fundou, em 1972, a sua própria empresa – o Grupo 8.

Na altura, tinha o mercado praticamente só para si. Depois, o setor foi-se estabelecendo. Alguns vigilantes viam o dinheiro a entrar e decidiam criar uma empresa. A maior parte corria mal, como em qualquer outro setor.

José Morgado Ribeiro esteve na fundação da Associação Nacional de Empresas de Segurança Privada (a AESIRF), em 1986, com o Grupo 8. Foi ele o primeiro a conseguir explicar-nos o porquê de os patrões se terem dividido depois entre a AES e a AESIRF.

De acordo com a história que nos conta, no final da década de 80 uma empresa de segurança privada devia dinheiro a credores públicos e privados. A empresa faliu e ficou com impostos em dívida. O dono quis voltar ao negócio e tentou que o Estado lhe perdoasse as dívidas. Mas, para o conseguir, precisava de autorização da AESIRF, na altura a única associação empresarial do setor. Que recusou.

Em resposta, o dono dessa empresa fundou a Associação de Empresas de Segurança, a AES, em 1990. E usou essa associação para ter o aval e se livrar das dívidas ao Estado. A AES foi fundada para um empresário evitar pagar impostos, e o Grupo 8 estave entre os membros fundadores.

José Morgado Ribeiro: Eu estava nas duas. E depois saí da AES e fiquei só na AESIRF.
Ricardo Esteves Ribeiro: Porquê?
Nuno Viegas: Porquê?
José Morgado Ribeiro: Porque há uma incompatibilidade de ideias acerca do setor. Eu tinha ideias muito mais liberais do que a própria AES. Que, ainda hoje, tem… digamos, tentando criar uma elite que, na realidade, não é…. criar uma elite e tentando justificar que são mais cumpridores do que os outros.

A Strong Charon é o alvo favorito dos ataques de José Morgado Ribeiro à AES. Desde que foi criada pelo Grupo Trivalor, com uma série de compras e fusões, o dono do Grupo 8 sente que a AES o tenta afastar do setor, e disse-o na Assembleia da República. Aponta frequentemente intentos monopolistas à Strong Charon.

É por um desafio judicial da Strong Charon que cai a antiga cláusula sobre a transmissão de estabelecimento. José Morgado Ribeiro odeia o conceito de transmissão e culpa a empresa do Grupo Trivalor por criar o problema.

A Strong Charon incomoda o líder da AESIRF, particularmente porque, até 2016, era o Grupo 8 a fazer a segurança de todas as estações de comboio em Portugal. Mas, nesse ano, a Strong Charon ganhou o concurso público e ficou com o contrato. Foi o mesmo que aconteceu em 2020, entre a Strong Charon e a PSG, mas dessa vez foi uma empresa da AESIRF a perder para a AES. 

Eis um facto inesperado: em 2016, o Grupo 8 não só aceitou aplicar uma transmissão de estabelecimento, como foi a tribunal defender que, quando um contrato de segurança privada troca de mãos, há sempre uma transmissão de estabelecimento, quer as empresas queiram, quer não. Se, em 2020, José Morgado Ribeiro é contra a transmissão de estabelecimento, em 2016, a sua empresa era a favor.

Nuno Viegas: A Grupo 8, nesse momento, defende a transmissão de estabelecimento e aplica a transmissão de estabelecimento.
José Morgado: Não. Não. Foi um acordo feito com a Charon, com a Strong Charon, exatamente um acordo em que passou o pessoal, mas todos os salários vencidos foram pagos pela Grupo 8.
Nuno Viegas: Mas permita-me…
José Morgado Ribeiro: Foi exatamente aquilo que nós temos na cláusula nossa, no contrato coletivo da AESIRF.
Nuno Viegas: Mas permita-me citar o advogado da Grupo 8 nesse caso, num documento legal. Diz ele no documento: “(…) a inquestionável a existência e a respectiva transmissão de uma unidade económica, e embora não fosse necessário, a Strong e o Grupo 8 reconheceram formalmente que, no caso em apreço  estaria em causa, nos termos legais, uma transmissão integral dos trabalhadores afectos à exploração da respectiva unidade económica, nos termos obtidos do artigo 285 do Código de Trabalho”. O que isto está a dizer é que houvesse acordo ou não entre as empresas, havia lugar a uma transmissão de estabelecimento.
José Morgado: Não. Isso não está correto.

Em 2016, o Grupo 8 e a Strong Charon concordaram aplicar uma transmissão de estabelecimento, ignorando a cláusula no Contrato Coletivo de Trabalho assinado, à data,  pela AES e pela AESIRF, que dizia que a figura não se aplicava. Todos os seguranças privados a trabalhar na IP foram de uma empresa para a outra, mantendo os direitos e a antiguidade, incluindo Paulo Guimarães, na Estação de Campanhã.

Mas um dos seguranças que o Grupo 8 queria transmitir para a Strong Charon opôs-se formalmente à mudança e levou a empresa a tribunal.

Em resposta, o Grupo 8 enviou ao Tribunal da Comarca do Porto uma contestação, de 46 páginas, mais anexos. O advogado da empresa demonstra repetidamente que se aplica a transmissão de estabelecimento na sucessão de contratos na segurança privada. Explica em detalhe que tinha de haver uma transmissão, houvesse ou não acordo, porque estão a prestar o mesmo serviço, no mesmo sítio, com as mesmas pessoas. Diz, e cito, “a transmissão da unidade económica é indiscutível”.

Excerto da contestação em que a Vieira de Almeida Sociedade de Advogados, representando o Grupo 8, admite que se aplica a transmissão de estabelecimento na sucessão de contratos na segurança privada.

E, no entanto, três anos depois, o dono da empresa e a associação que esta integra estão dedicados há mais de um ano a provar o contrário.

Ricardo Esteves Ribeiro: Mas, portanto, não concorda com o advogado do Grupo 8, que representou nesse caso, de que era inquestionável e de que não era necessário?
José Morgado Ribeiro: Inquestionável é o que não concordo.
Pedro Miguel Santos: Mas também fiquei com uma dúvida, que era: se o senhor dizia que a questão da transmissão do estabelecimento já era uma prática antes de tal…
José Morgado Ribeiro: Não.
Pedro Miguel Santos: Não foi isso que disse há pouco?
José Morgado Ribeiro: Não.
Pedro Miguel Santos: Então?
José Morgado Ribeiro: Ela foi uma prática neste caso concreto.
Nuno Viegas: Foi a Strong que introduziu esta prática?
José Morgado Ribeiro: Foi um acordo entre nós e a Strong, em que eles queriam começar o serviço e não tinham ninguém. E foi um acordo bilateral, assinado.
Ricardo Esteves Ribeiro: Portanto, foi a Strong que pediu?
José Morgado Ribeiro: Foi a Strong que pediu.

Hoje a AES é a favor da transmissão. A AESIRF é contra. Em 2016, a Strong, da AES, e o Grupo 8, da AESIRF, aplicaram a figura. Deu jeito ignorar os princípios do Contrato Coletivo de Trabalho.

Em 2019, quando o setor começou a escapar a José Morgado Ribeiro, a pender para a posição da AES, para a normalização das transmissões, a AESIRF procurou um Contrato Coletivo de Trabalho em que se refugiar, para usar como escudo. E conseguiu negociá-lo com um sindicato acabadinho de criar: a ASSP. Um sindicato dirigido por um segurança do Grupo 8 – Rui Brito da Silva.

Entre os vigilantes, diz-se que foi José Morgado Ribeiro a mandar criar a ASSP; que o presidente da AESIRF usou Rui Brito da Silva para fundar um sindicato fantasma. Nós perguntámos-lhe.

José Morgado Ribeiro: Eu mal conheço.
Nuno Viegas: [Risos]
José Morgado Ribeiro: Não, é que não conhecia, sequer. Não conhecia, sequer. Conheci-o com…
Ricardo Esteves Ribeiro: O Rui Brito da Silva.
José Morgado Ribeiro: Rui quê?
Ricardo Esteves Ribeiro: Rui Brito da Silva.
José Morgado Ribeiro: É capaz de ser esse indivíduo.
Ricardo Esteves Ribeiro: Mas não o conhece?
José Morgado Ribeiro: Vi-o uma vez na Associação. Vi-o uma vez na Associação.
Ricardo Esteves Ribeiro: Na ASSP?
José Morgado Ribeiro: Na AESIRF. Não conheço mesmo, não conhecia mesmo. Não sei como ele aparece no sindicato. Isso foi uma maneira que nós encontramos um sindicato que estava disposto a fazer um acordo connosco e, daí, fizemos.
Nuno Viegas: A minha questão era exatamente sobre a origem do sindicato. Porque nós entrevistámos, nos últimos meses, dezenas de vigilantes. E há uma noção dentro do setor que a ASSP é um sindicato fantasma, que existe para servir aos interesses da AESIRF. Houve influência da AESIRF na formação do sindicato?
José Morgado Ribeiro: Nada, zero. 
Nuno Viegas: Não há proximidade particular entre a AESIRF ou o Grupo 8 e a ASSP?
José Morgado Ribeiro: Não. Sobre o Grupo 8 nego terminantemente. Acho que, até, ele é do Porto, veja bem, trabalha na delegação do Porto. Não tem nada…
Nuno Viegas: E sobre a AESIRF?
José Morgado Ribeiro: Epá, também não. O que ele tem a ver com a AESIRF?
Ricardo Esteves Ribeiro: Negociou o acordo.
José Morgado Ribeiro: Fechou o contrato connosco, em que os nossos trabalhadores têm mais vantagens do que têm na AESIRF [engano, José Morgado Ribeiro queria dizer AES]. Por exemplo, o trabalho noturno, o trabalho em dias feriados é muito mais benéfico o feito por nós, do que pela AES. Não sei onde é que nós prejudicamos os trabalhadores.

Apesar da reação inicial, José Morgado Ribeiro lembra-se de Rui Brito da Silva. Mas diz que só se falaram uma vez, quando se começou a negociar o contrato.

José Morgado Ribeiro: Quer dizer, na altura houve um desentendimento processual – não vale a pena estar a frisar aqui – eu afastei-me ligeiramente dessa situação. De tal maneira que houve um problema, houve uma reunião, e nessa reunião, eu disse a esse indivíduo: “Eu não falo mais consigo. E você não fala mais comigo”
Ricardo Esteves Ribeiro: O Rui Brito da Silva?
José Morgado Ribeiro: Esse tal Rui Henriques…
Ricardo Esteves Ribeiro: Porquê?
José Morgado Ribeiro: Epá, porque combinamos uma coisa e ele fez outra. 
Ricardo Esteves Ribeiro: Em termos de acordo, de negociação?
José Morgado Ribeiro: Em termos de acordo. 
Nuno Viegas: Foi o quê?
José Morgado Ribeiro: Tinha feito… Tínhamos tido uma percentagem de uma cláusula qualquer, que era, por exemplo, 10%; e ele acorda comigo 10%, e que ia falar com a direção. E depois diz que não é 10, que é 12, que é 14 e que não sabia… E eu disse: “Olhe, você não fala mais comigo”. E nunca mais falei com ele. Nem sequer sei onde é que o homem anda. 
Ricardo Esteves Ribeiro: Mas, então, quando soube a primeira vez que o sindicato tinha sido criado? Lembra-se quando é que soube?
José Morgado Ribeiro: Epá, não posso dizer-lhe quando é que soube. Porque, na altura, era o doutor Moura Paes – que já nem sequer era meu funcionário, já estava aposentado – é que tratou desses assuntos todos. Que eu só agora, muito recentemente, com a morte dele, é que eu assumi a direção da AESIRF.
Ricardo Esteves Ribeiro: Mas foi claramente depois de ter sido criado?
José Morgado Ribeiro: Claramente, depois de ter sido criada? 
Ricardo Esteves Ribeiro: Se soube do sindicato?
José Morgado Ribeiro: Ah, sim, só de ter sido criado. 

Eis a versão de José Morgado Ribeiro: Soube da existência da ASSP através de outros membros da direção da AESIRF. Não fazia ideia quem era Rui Brito da Silva. Só o viu numa reunião em que o presidente da ASSP voltou atrás com a sua palavra, tentou alterar um acordo. Depois disso, zero contacto. O contrato foi assinado. Nunca mais se falaram. Assunto encerrado.

Falámos com José Morgado Ribeiro durante mais de uma hora. No final, o presidente da AESIRF estava visivelmente cansado. Mas havia uma coisa sobre a qual queria perguntar, algo que andava a irritar os vigilantes desde fevereiro, desde que tinha visto pela primeira vez José Morgado Ribeiro em pessoa, na Comissão do Trabalho e Segurança Social.

José Morgado Ribeiro: Eles vão buscar o refugo. Eles vão buscar o refugo. Eles vão buscar o refugo.

Nuno Viegas: Posso fazer-lhe uma questão para terminarmos e penso que acabamos aqui. Quando foi à Comissão de Trabalho e Segurança Social, há um momento em que está a atacar a ideia de transmissão do estabelecimento e diz que as empresas iam usá-la para se livrarem do lixo e do refugo…
José Morgado Ribeiro: Epá, você não me fale nisso, que eu já disse ao Rui Tomé: “Epá, oiça uma coisa, você não tinha outro assunto que não esse”. Quer dizer, eu, quando disse refugo, não quis, de maneira nenhuma… Aliás, a minha prática, em 48 anos, nunca tratei mal nenhum trabalhador e não ia aproveitar aquele sítio para dizer isso. Isso foi uma palavra que me saiu, diretamente, mas sem ofensa direta às pessoas. Porque, quando digo refugo, eu podia ter dito “o indivíduo que não se portou bem, que tem um processo em tribunal, que falta ao serviço, que dorme no posto de trabalho”. Podia estar a explicar isso tudo, foi a palavra que me surgiu. Como já aqui, nesta reunião, já algumas vezes, falhei em procurar a palavra exata.
Ricardo Esteves Ribeiro: Mas arrepende-se de ter dito refugo?
José Morgado Ribeiro: Eu não me arrependo de ter dito refugo, porque não quis dizer refugo no sentido de escória ou no sentido de pessoas indigentes ou pessoas… Não. Eu quis dizer com isso, que eram indivíduos que, por razões operacionais, não tinham a qualidade merecida. 

José Morgado Ribeiro não é pessoa de pedir desculpas. Depois da entrevista, levou-nos até ao portão de casa. Continuou a falar do setor, dos sindicatos, dos ministros da Administração Interna. Conheceu todos desde o 25 de Abril, diz-nos. Disse-nos também que era um defensor dos vigilantes, mais sindicalista do que os sindicatos. Tiramos-lhe uma fotografia antes de sairmos, junto às árvores e ao muro. Foi ele a pedir para que fosse fora de casa, para não se verem as pratas.

José Morgado Ribeiro, fotografado no pátio à entrada de sua casa, a 18 de maio de 2020. A luxuosa mansão, murada e com jardins cuidados a toda à volta, com espaço para um campo de golfe privado, situa-se em Birre, Cascais.
Fotografia: Fumaça

Dois meses depois desta entrevista, ficou a saber que tinha ganho a batalha. A portaria de extensão para o Contrato Coletivo de Trabalho da AES, publicada em agosto de 2020, não se aplica às empresas associadas à AESIRF. José Morgado Ribeiro teve o que queria. A AES até pode argumentar a transmissão, mas não vão ser eles a definir as regras para os outros. Agora, só com uma mudança na lei.

O presidente da AESIRF é um negociador brilhante. Durante décadas, teve mão na segurança privada, guiou os destinos do setor, moldou leis, influenciou reguladores. O chefe era ele. E depois, os anos passaram e a máquina foi-lhe escapando. Entraram novos gestores, capital estrangeiro, profissionalizou-se a segurança. A luta contra a transmissão de estabelecimento é um último finca pé.

Aquilo que saímos sem perceber foi se a ASSP é um canto de cisne de José Morgado Ribeiro ou uma coincidência em que tudo lhe correu bem. A ASSP pode ter sido criada legitimamente, pode ter negociado de livre vontade. Quando falámos com o presidente da AESIRF, não tínhamos um documento, uma prova material que nos dissesse o contrário. Mas se isso fosse verdade, o que é que podia fazer qualquer sindicato assinar um acordo com os termos da AESIRF?

No próximo episódio, procuramos a única outra pessoa que sabe a verdade. Vamos atrás do presidente da ASSP, o funcionário do Grupo 8: Rui Brito da Silva.

FIM


“Tubarões” é o episódio quatro da série “Exército de Precários”. 

As pessoas que fazem parte da comunidade Fumaça já têm acesso ao quinto e sexto episódios desta série e ainda a um conjunto de entrevistas “extra”: conversas aprofundadas com algumas das personagens centrais da história. Com este quarto episódio podem escutar a conversa que tivemos em casa de José Morgado Ribeiro, fundador do Grupo 8, uma das mais importantes empresas de segurança privada do país.

Se queres ouvir esta e outras entrevistas e ainda o quinto e sexto episódios da série, faz uma contribuição recorrente em fumaca.pt/contribuir, ajudando o Fumaça a ser o primeiro projeto de jornalismo totalmente financiado pelas pessoas.

Este episódio foi escrito pelo Nuno Viegas, que fez também a investigação e reportagem desta série com o Ricardo Esteves Ribeiro e comigo, Pedro Miguel Santos. Eu e o Ricardo fizemos a edição e o factchecking.
O Bernardo Afonso também participou nas discussões de verificação de factos e fez, ainda, a edição de som, o sound design, e compôs, interpretou e misturou a banda sonora original. A Joana Batista criou a imagem, a Maria Almeida fez a estratégia de marketing e a Sofia Rocha e o Tomás Pinho implementaram a página online. Passem por lá para ver as ilustrações, a transcrição de todos os episódios e documentação que ajuda a aprofundar o que ouviram hoje. A Margarida David Cardoso participou nas sessões de edição coletiva de todos os episódios desta série.
Fazem ainda parte da equipa Fumaça: Danilo Thomaz e Mo Tafech.

Durante este episódio ouviram-se sons de arquivo da AR TV.

Com o apoio:

A série “Exército de Precários” foi realizada com o apoio de bolsas de investigação jornalística atribuídas pela Fundação Calouste Gulbenkian (2018) e Fundação Rosa Luxemburgo (2020). Os contratos podem ser consultados em www.fumaca.pt/sobre.

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