Segurança Privada: Exército de Precários (7/8)

Vampiros

Este é o sétimo episódio da série “Exército de Precários”. As pessoas da comunidade Fumaça já podem ouvir o último episódio e todas as entrevistas extra, exclusivas, com algumas das personagens centrais da história. Se também queres ter acesso, faz uma contribuição recorrente aqui.

Esta reportagem foi escrita, produzida e editada para ser ouvida com auscultadores ou auriculares. O que se segue abaixo é a transcrição integral de toda a peça áudio.

Introdução

Ricardo Esteves Ribeiro: Oh! Estás aqui.
Denys Vatolin: Então, como estás? 
Ricardo Esteves Ribeiro: Está tudo bem? 
Denys Vatolin: Este senhor não conheço.
Ricardo Esteves Ribeiro: Ricardo. É o Pedro. 
Pedro Miguel Santos: Olá. Tudo bem?
Denys Vatolin: Tudo bem.
Ricardo Esteves Ribeiro: Tu conheceste o Nuno.
Denys Vatolin: Ah, exatamente. 
Ricardo Esteves Ribeiro: E então?
Denys Vatolin: Olha, fui beber um cafezinho. 
Ricardo Esteves Ribeiro: Ai é?
Denys Vatolin: Eu moro ali, naquela curva. 
Ricardo Esteves Ribeiro: Ali à frente? 
Denys Vatolin: É.
Pedro Miguel Santos: É na boa deixar o carro aqui?
Denys Vatolin: É na boa, é. Podes deixar o que quiseres, aqui ninguém faz nada.
Ricardo Esteves Ribeiro: Onde é que nós estamos, aqui?
Denys Vatolin: Estás em Benavente, nas Areias. 
Ricardo Esteves Ribeiro: Areias, ok.
Denys Vatolin: Sim. 

Uma das coisas a que nunca me consegui habituar em Lisboa é o barulho. Há sempre um ruído de fundo de carros, pessoas e lojas. Na minha casa, em Alvalade, só se pode ir dormir quando aterra o último avião do dia no aeroporto da Portela.

Areias é um lugar às portas de Benavente e não tem silêncio, mas está perto. Ouve-se um chilrear de pássaros incessante. Devo dizer que é mais agradável. Os miúdos brincam na rua. Os animais podem andar à vontade.

Pedro Miguel Santos: Quem é?
Denys Vatolin: É a minha cadelinha. Eles passeiam sozinhos e depois voltam. Anda cá. O que é que andas a fazer? Toma. Anda.
Pedro Miguel Santos: É tipo ovelhas, tu abres o portão e eles vão e depois vêm?
Denys Vatolin: É, eu abro a porta… E falta o macho, eles são um casal. Anda cá, Canina. Anda cá. Anda cá, Canina. anda cá.

Areias é um aglomerado de prédios de poucos andares e moradias de classe média baixa, algumas com pátio e jardim. Tem tudo bom ar. As plantas parecem ter sido regadas há pouco tempo, ou talvez seja o sol de primavera a dar um ar particularmente saudável à vegetação. Estamos em maio de 2020, agora a atravessar o Bairro Zeca Afonso sem nos preocuparmos com o trânsito.

Ricardo Esteves Ribeiro: Então, o que nós queríamos ver era, do género, o que é que tu fazes…
Pedro Miguel Santos: Tipo, sais de casa, como é que é?
Ricardo Esteves Ribeiro: …todos os dias.

Quem nos recebe em Benavente é Denys Vatolin. Conhecemo-lo há dois meses na redação do Fumaça, no Bairro Alto, em Lisboa, numa das dezenas de entrevistas que fizemos por essa altura a vigilantes. Veio acompanhado pela namorada, para falar de abusos laborais. Percebemos, logo nesse dia, que tínhamos de ir visitar Denys Vatolin a casa.

Ricardo Esteves Ribeiro: A que horas é que tu entras? 
Denys Vatolin: Eu entro às 8h30 da manhã, 8h30. O caminho é sempre por aqui, até à vila, até ao Tribunal de Benavente.
Ricardo Esteves Ribeiro: Então vamos?
Pedro Miguel Santos: Tu moras aqui onde nós estamos agora?
Denys Vatolin: Sim, sim. Exatamente. 
Pedro Miguel Santos: Então, levantas-te… Não acordas muito mais cedo, não é? Moras tão perto.
Denys Vatolin: 7h00, para estar tranquilo. 7h00, faço as minhas coisas e depois vou trabalhar. Fardo-me em casa e saio de casa já pronto. Levo o meu almoço. Chego 20 minutos antes ao trabalho. Bebo lá um cafezinho e depois entro ao serviço, faço o meu relatório e trabalho normal: 8h30-6h30.
Pedro Miguel Santos: Tu tens pausa para almoço? Como é que é a rotina lá? Ou seja, o que é que tu…
Denys Vatolin: Não tem hora de almoço, tenho que trabalhar seguido. Tenho que me desenrascar a almoçar quando houver algum tempo livre e eles não dão hora do almoço.
Pedro Miguel Santos: Então quem é que guarda a portaria, nessa altura?
Denys Vatolin: Epá, tem que ver uma hora assim mais calma para u ir almoçar.
Pedro Miguel Santos: Mas o tribunal não fecha para almoço?
Denys Vatolin: O tribunal fecha, mas eu não. 
Pedro Miguel Santos: [Riso]
Denys Vatolin: Então, é verdade.
Pedro Miguel Santos: Claro, claro.


Denys Vatolin era mecânico. Já serviu como militar, em França, na Legião Estrangeira. Entrou para a segurança privada em janeiro de 2019 com a Securitas. E o seu primeiro posto, no Tribunal de Benavente, era mesmo ao lado do bairro onde vive há décadas . 

Denys Vatolin: Eu quando entrei, entrei ali para o tribunal, sim, estava muito contente pela empresa Securitas. Estava muito contente, sim.
Pedro Miguel Santos: Porque estavas muito perto de casa, não é? Não gastas dinheiro em transportes.
Denys Vatolin: Estava perto de casa, não tinha gastos. Posso vir para o trabalho a pé. Pronto, não tenho gastos.
Pedro Miguel Santos: Estás na terra.
Denys Vatolin: Estou na terra. A empresa era boa.

Em agosto de 2019, a vigilância dos tribunais portugueses passou da Securitas, uma multinacional com décadas, para a COPS, uma pequena empresa em rápida ascensão. Denys Vatolin, acabado de entrar no setor, ficou enredado de imediato na tentativa de transmissão entre as duas empresas. Acabou por ficar no Tribunal de Benavente ao serviço da COPS.

Conta-nos que a relação entrou em deterioração rápida. Os ordenados chegavam atrasados, o salário vinha com dinheiro a menos, os supervisores não respondiam aos emails. Denys Vatolin juntou-se ao STAD quando um delegado sindical visitou o seu local de trabalho. Tempos depois, meteu o patrão em tribunal.

Pedro Miguel Santos: Mas e tu antes nunca tinhas sido sindicalizado? 
Denys Vatolin: Não, não, foi a primeira vez. Eu gostei da maneira de ser deles. Eles foram sérios, sinceros, humildes, mostraram interesse em ajudar e eu aceitei. E, até à data, ajudam bastante. A nível pessoal e profissional são pessoas impecáveis.

O processo ainda está a decorrer, mas Denys Vatolin já não trabalha para a COPS. Saiu por iniciativa própria. Hoje em dia está na Esegur.

Mas não é por causa de salários em atraso que estamos a fazer o caminho entre o Bairro Zeca Afonso e o Tribunal de Benavente.

Ricardo Esteves Ribeiro: Então é ali? Ou seja, tu trabalhas ali daquele lado.
Denys Vatolin: É.
Ricardo Esteves Ribeiro: Nós demoramos uns dez minutos? 15 minutos? 
Denys Vatolin: Não, não chega a 15. Dez minutos.
Ricardo Esteves Ribeiro: Dez minutos?
Pedro Miguel Santos: Tu também andas rápido. Tens o pé rápido.

Quinze minutos e 25 segundos, pelas minhas contas. De acordo com o Google Maps, foi um quilómetro e seiscentos metros. É esta a caminhada diária de Denys Vatolin — de casa para o trabalho e do trabalho para casa. Tal como neste dia 20 de maio de 2020 o percurso é feito a pé. E isso torna particularmente estranho um subsídio em específico pago pela COPS a Denys Vatolin.

Ricardo Esteves Ribeiro: Eu lembro-me do recibo que tu me mandaste, de agosto, que tinha os tais “mapas de quilómetros”. 
Denys Vatolin: Ah pois.
Ricardo Esteves Ribeiro: E isso continua?
Denys: Olha, só se for quilómetros que eu gasto nos sapatos.
Pedro Miguel Santos: [Risos]
Denys Vatolin: [Risos] Então, é verdade.

Em agosto de 2019, a COPS pagou a Denys Vatolin 101 euros e 4 cêntimos na forma de um abono por deslocações em viatura própria. É um subsídio pago pelas empresas a funcionários que usam os próprios carros para fazer viagens de trabalho.

À partida é uma boa prática. Significa que, se a empresa não tem veículos suficientes, compensa os funcionários pelo combustível e o desgaste das viaturas usadas para trabalhar.

Há um problema, neste caso: Denys Vatolin não anda de carro — nem para o trabalho nem no trabalho. Mas a COPS pagou-lhe, em agosto de 2019, um abono equivalente a 280 quilómetros e 660 metros em viagens de carro.

Ricardo Esteves Ribeiro: Mas isso continua?
Denys Vatolin: Acho que já não continua, não, acho que já pararam com os quilómetros. Devem querer pagar sapatos novos. 
Pedro Miguel Santos: Mas tu não achaste isso estranho?
Denys Vatolin: Achei, eu falei lá, elas não responderam, nunca disseram nada. 
Ricardo Esteves Ribeiro: Ou seja, tu mandaste um e-mail? 
Denys Vatolin: Claro. 
Ricardo Esteves Ribeiro: A dizer o quê?
Denys Vatolin: Perguntei o que era isso. Eles não justificam.
Ricardo Esteves Ribeiro: Equivale a algum valor que tu terias de receber?
Denys Vatolin: É provável, e até provável equivaler, só que eles devem ter posto à maneira deles, como lhes convém, não sei. Também não cheguei a entender. Não me esclareceram. Não me esclareceram, ao certo, a situação e eu tentei falar com eles. Falei também com o sindicato, o sindicato disse que, provavelmente, pagam aquilo a quilómetros para, sei lá, para não pagarem tipo a hora extra ou qualquer coisa assim. Entretanto, mas mesmo a empresa não deu resposta sobre isso.

Para quem nunca trabalhou como segurança privado, o horário de Denys Vatolin pode parecer estranho: em vez de fazer oito horas por dia e descansar ao fim de semana, faz dez horas diárias e tem três folgas semanais.

Ao concentrar a mesma carga horária em menos dias, a COPS aproveita uma brecha no Código do Trabalho: pode pagar só quatro subsídios de alimentação por semana. Porque Denys Vatolin só vai ao trabalho quatro  vezes por semana, apesar de estar lá durante o mesmo tempo do que se fizesse oito horas por dias, cinco dias por semana.

E assim se evita pagar um subsídio de alimentação por funcionário. Pode parecer muita logística para pouca poupança mas, se fizerem isto com muitos trabalhadores, cada euro cortado aqui multiplica-se, semana após semana. Esta artimanha não se faz só na COPS. Nem sequer é exclusiva da segurança privada.

Até aqui, a história é legal. Mas há uma desvantagem em concentrar os horários de trabalho: tem de se pagar horas extraordinárias todos os dias. E o trabalho suplementar é mais caro, precisamente porque é um extra. E, depois, tem de se pagar impostos e Segurança Social sobre esse valor.

Já um subsídio de deslocação está isento de impostos se for pago até 36 cêntimos por quilómetro. Precisamente, o valor usado pela COPS para calcular os 101 euros e 4 cêntimos que depositou na conta de Denys Vatolin, diz ele, sem qualquer explicação.

Recibo de Denys Vatolin com subsídio de deslocação, pela COPS.

A marosca parece ser esta: pagar o devido pelas horas extraordinárias na forma de um abono por deslocações fictícias em viatura própria. E aqui é que os esquemas de poupança da COPS se podem tornar ilegais e entrar na fuga ao fisco.

Perguntámos sobre isto à COPS. Não responderam. Também colocamos a questão a Manuel Sacramento, gestor de clientes da empresa, em maio de 2020. Nunca admitiu que faziam isto para escapar a impostos, mas garantia, na altura, que  já não pagavam nada como subsídio de deslocação. Estavam ativamente a tentar melhorar as práticas laborais, disse.

O problema é que não foi só com Denys Vatolin. Não foi só no Tribunal de Benavente. Não  foi só a COPS. E nem sequer foi só fuga ao fisco. Jogadas destas para cortar custos por todos os meios fazem-se há anos, de uma maneira ou de outra, na segurança privada. Seja nos gigantes ou nos pequenos.

Porque neste setor o ganha pão é o Estado. E um contrato público só pinga quando se tem os preços mais baixos. Para baixar os custos é preciso sugar os trabalhadores até ao tutano.

Este é o sétimo episódio da série “Exército de Precários”: Vampiros.

Seja toda a gente bem vinda ao Fumaça. Eu sou o Nuno Viegas.

Parte I – Impostos

Há muitas inspirações possíveis para este esquema da COPS. Violar legislação laboral e fiscal é um hábito enraizado na segurança privada.

Este episódio foi impossível de escrever por isso mesmo: porque há abusos à escala do setor. A lista de denúncias que compilamos a partir de entrevistas com vigilantes tem quase 200 acusações contra 11 empresas de segurança privada. Enviamos a cada uma perguntas sobre esses casos e sobre as suas práticas. No total, foram 40 páginas de questões. E, digo-o já à cabeça, tiveram muito pouco interesse em defender-se. A Proteção Mundial garantiu que estava a cumprir a lei.  A Power Shield recusou formalmente comentar.  Já tínhamos falado com funcionários da PSG e da COPS sobre outros temas mas as empresas não responderam a esta ronda de questões. E das outras 10 não houve qualquer esclarecimento.

O que os seguranças nos demonstraram, e muitos provaram com recibos de ordenado, emails e documentos judiciais, é que os patrões montaram um sistema de abusos laborais em três fases: primeiro, rouba-se os próprios funcionários; depois, castiga-se quem reclamar; e, finalmente, caso alguém insista e envolva tribunais e sindicatos, resolve-se tudo com um acordo 

Uma das estrelas guia para esta metodologia parece ser também a empresa há mais tempo a operar em continuidade na segurança privada portuguesa: o Grupo 8, de José Morgado Ribeiro. O líder da AESIRF. O homem que jurou, na Assembleia da República, que nunca se atrasou a pagar salários. Que, praticamente, nunca teve casos em tribunal. Que, uso as palavras dele, “cumpre a lei no máximo”.

Voltemos a um velho conhecido, Paulo Guimarães, durante oito anos vigilante do Grupo 8, num dos edifícios da estação ferroviária de Campanhã, no Porto.

Paulo Guimarães: Vou-te contar uma história, outra vez do senhor que se esquece, que tem uma memória curta. O Senhor Morgado Ribeiro, o Grupo Oito, o Grupo 8, há seis ou sete anos atrás — portanto, eu estou há quatro, cinco, seis, sete, oito anos atrás — pagava as horas extra exatamente dessa maneira mas dizia assim: nós recebíamos, tínhamos que ir às bombas de gasolina, buscar talões de gasóleo — tinha que ser gasóleo —, apresentávamos as faturas em gasóleo para recebermos as horas extra. O Senhor Morgado Ribeiro, o homem que cumpriu sempre tudo, o homem que quis dar 27% de aumento. E eu tenho ali os meus recibos todos de vencimento do Grupo Oito. Posso-te mostrar. O homem que, através de uma falcatrua de fuga ao fisco, dizia que as horas extra eram um prémio de assiduidade. Mais, mais: Nós temos prémios de produtividade, porque nós… isso é importante, mas eu mostro já, tenho ali. Nós tínhamos prémios de aniversário.
Ricardo Esteves Ribeiro: O que é que era isso?
Paulo Guimarães: Quando faço anos tenho direito a um prémio, Ricardo.
Ricardo Esteves Ribeiro: Mas era um prémio...?
Paulo Guimarães: Era um prémio. Se fizesses, naquele mês, 300 horas, essas horas era o prémio de aniversário, porque eles lembravam-se que tu fazias anos.
Ricardo Esteves Ribeiro: Não era.
Paulo Guimarães: Achas isto normal?


Paulo Guimarães mostrou-nos dezenas de recibos dos prémios e subsídios de alimentação. Nenhum sobre as faturas de gasóleo. Olhámos para um específico na entrevista seguinte, dessa vez com Paulo Guimarães e três antigos colegas com quem se tinha cruzado no contrato da Infraestruturas de Portugal.

Paulo Guimarães: As horas extra eram pagas ao dia 15 como um complemento para acertar o número de horas.
Manuel Santos: Até determinado valor era pago em dinheiro. Se excedesse esse valor, era pago em tickets.
Ricardo Esteves Ribeiro: Mas, na verdade, tu recebeste, com isto… Aqui estão 22 dias. Por exemplo, num dos meses, 22 dias, mas tu também hás de ter 22 dias no teu recibo normal. Então, tu recebeste 40 e tal dias de subsídio alimentação.
Paulo Guimarães: Como é que é possível, não é? Como é que é possível?
Nuno Viegas: Eras muito trabalhador.
Vítor Carvalho: O outro era de pequeno-almoço, já não era de almoço.

Os tickets de que Vítor Carvalho fala são senhas de alimentação. Mas com o nome em inglês. Esta é a teoria de Paulo Guimarães, Vítor Carvalho e Manuel Santos: para além de subsídios de alimentação, prémios de produtividade e prémios de assiduidade, o Grupo 8 ainda terá pagado horas extraordinárias como um falso subsídio de deslocação.

Recibo de Paulo Guimarães, pelo Grupo 8, para mês em que recebeu 44 dias de subsídio de alimentação.

É um sistema similar ao usado pela COPS com Denys Vatolin no Tribunal de Benavente. Mas a empresa de José Morgado Ribeiro exigia documentação aos funcionários, um registo com que pudesse defender o esquema, caso fosse auditada pelas Finanças.

Manuel Santos.

Manuel Santos: Depois há os célebres pedidos de “Ó Santos, o teu carro não é a gasóleo? Não, o meu carro não. Epá, preciso de talões, não sei o quê”.
Paulo Guimarães: Era fuga ao fisco. Fuga ao fisco.
Manuel Santos: Talões, ou seja, houve uma altura em que quem fazia horas tinha que mostrar talões de gasóleo, que era para dar a empresa para nos pagar as horas. Se não entregasse talões de gasóleo, fodias-te, não recebias. 

Não é só o Grupo 8. Nem a COPS. Ouvimos alegações similares de fuga ao fisco e pagamentos debaixo da mesa sobre a PSG e a Strong Charon, que não responderam às nossas perguntas. Também há vigilantes que acusam a Proteção Mundial de pagar debaixo da mesa aos seus seguranças. Já a empresa garante que – e o email é particularmente formal – cumpre  “integralmente com toda a legislação específica ao seu sector da actividade, e […] toda a legislação fiscal, social, laboral e toda a que lhe possa ser aplicável.”

Esclarecimento escrito enviado pela Proteção Mundial ao Fumaça a 26 de agosto de 2020

Evitar os impostos quando se pagam horas extraordinárias é particularmente importante na segurança privada porque toda a gente faz horas extraordinárias. Seja para reduzir o pessoal necessário num posto, ou para evitar pagar um subsídio de alimentação, é prática comum ter turnos diários de doze horas ou mais num posto de vigilância.

E quando digo comum digo que é a regra nas quatro dezenas de entrevistas que fizemos. Dou três exemplos. João Silva e Sandra Peixoto, casal a trabalhar para a COPS, respetivamente no Instituto de Registos e Notariado e na Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, em Lisboa.

João Silva: São 12 horas por dia, não é brincadeira. É muito tempo.
Sandra Peixoto: Nós saímos todos os dias às 6h30 de casa e chegamos todos os dias a casa às 9h00 noite, com as crianças em casa.

Sofia Figueiredo, a descrever os horários impostos pela 2045, na Tabaqueira, um cliente privado, em Lisboa.

Sofia Figueiredo: Quando eu estive na Tabaqueira, nós tínhamos vigilantes a fazer oito, doze, dezasseis — 16 horas.
Nuno Viegas: Sistematicamente?
Sofia Figueiredo: E nós aqui, eu acho que também temos de começar… E acho que é importante para a vigilância privada que os clientes comecem a ser sensibilizados sobre esse assunto. Porque, então se um cliente me vê aqui agora às 8h00 da manhã numa portaria; se me vê na mesma portaria às 20h00, às 22h00, às 24h,00 eles próprios têm de questionar que aquilo não pode acontecer. E eu acho que tem de começar por eles, porque se partir dos clientes as empresas começam a travar.
Ricardo Esteves Ribeiro: Mas isso é ilegal, não é?
Sofia Figueiredo: É ilegal mas fazem. 

Sónia Fonseca, a descrever os turnos no Arquivo Contemporâneo do Ministério das Finanças, onde estava com a Strong Charon.

Sónia Fonseca: Tive que trabalhar, lá está, das 8h00 da manhã às 8h00 da noite.
Ricardo Esteves Ribeiro: Mas isso são 12 horas.
Sónia Fonseca: Fazia 12 horas.
Ricardo Esteves Ribeiro: Sempre fizeste?
Sónia Fonseca: Não. Enquanto estive no Arquivo, sim.


No total, ouvimos alegações de que vigilantes fazem turnos de 12 horas para a PSG, Strong Charon, Grupo 8, 2045, Gália, COPS, Power Shield e Vigiexpert. A Power Shield recusou comentar. As outras nunca nos responderam sobre este tema.

Algumas empresas farão isto de forma legal, distribuindo os turnos e respeitando os tempos de descanso. Outras não ignorando os limites do Código de Trabalho e violando a legislação.

Mas o problema não é se fazer um turno de 12 horas é legal ou não. Mesmo que seja possível, ter um dia de trabalho tão longo tem efeitos nocivos. Cientificamente, aumenta o risco de ter um episódio depressivo e de desenvolver doenças cardíacas. E, politicamente, a Organização Internacional do Trabalho pede há décadas a redução quer das horas trabalhadas, quer do trabalho suplementar. 

E estas horas, como se foi ouvindo durante toda a série, são frequentemente pagas abaixo do valor negociado entre patrões e sindicatos nos Contratos Coletivos de Trabalho. E isso é plenamente ilegal, mas parece normalizado. Várias empresas, seja hoje em dia ou num passado recente, pagam aos seus funcionários abaixo dos valores que os próprios negociaram. Podíamos voltar a ouvir as vozes todas. Passámos por muitas no primeiro episódio antes de lhes darmos um nome. Aqui, fico pela lista, a bem do tempo. Temos alegações de pagamento de horas noturnas, feriados, folgas, fins-de-semana, subsídios de alimentação e horas extraordinárias abaixo dos valores do Contrato Coletivo de Trabalho na PSG, Strong Charon, Grupo 8, 2045, Gália, COPS, Ronsegur, Comansegur, Securitas e Vigiexpert. E isto representa, no mínimo, de acordo com o Relatório Anual de Segurança Privada para 2019, os empregadores de metade dos vigilantes portugueses. Destes, a Power Shield recusou comentar. As outras nunca responderam.

Parte II – Greves

Os vigilantes trabalham horas a mais e recebem dinheiro a menos. Objetivamente, porque os patrões estão a violar repetidamente os Contratos de Trabalho que negoceiam e assinam. Foi isto que aprendemos até agora.

Fica pior: o ordenado nem sempre cai na conta a tempo e horas.

Arquivo SIC
A SIC teve acesso a um mail enviado pela DGAJ — a Direção Geral da Administração da Justiça — a todos os tribunais onde manifesta à COPS “extremo desconforto com o facto de estarem a prestar serviços aos tribunais empresas que podem não estar a cumprir obrigações legais para com os seus trabalhadores.”

COPS significa Companhia Operacional de Segurança e também quer dizer “Polícia” em inglês. Vá-se lá saber por qual dos significados é que se deu o nome à empresa. Se a reconhecem é porque apareceu nas notícias, em janeiro e fevereiro de 2020. A empresa foi fundada em 2008. Até há pouco tempo, mal trabalhava com o Estado Português.

Entre 2008 e 2018, durante uma década, conseguiu quase 800 mil euros em contratos públicos. Já nos dois anos seguintes, 2019 e 2020, contratualizou mais de 44 milhões de euros.

No ano de viragem, 2019, ganhou vários grandes contratos. Em agosto, passou a fazer a segurança de todos os tribunais do país. Dois meses depois, ficou com a vigilância de uma série de edifícios do Ministério do Trabalho.

E, no final desse ano, começou a falhar o pagamento de ordenados. Os salários de janeiro caíram por volta de 8 de fevereiro, o subsídio de refeição no dia 14. No mês seguinte, voltou a haver atrasos, mas mais pequenos. Foi notícia na altura porque o Estado adiantou o pagamento da tranche seguinte do contrato para garantir que a empresa conseguia cobrir os salários. Mas o problema não tinha começado aí. E não se resolveu aí.

Isilda Santos, a trabalhar para a COPS no Tribunal de Almada.

Nuno Viegas: E alguma vez explicaram o porquê do atraso no pagamento?
Isilda Santos: Eles alegam que todos os meses têm sempre qualquer coisa. Agora, o mês passado, foi que tinham tido anomalias no sistema informático e que estavam a carregar manualmente, o que eu não acredito porque, pronto… Aquilo que me parece a mim e o pouco que eu percebo é que a COPS é uma empresa pequena que tem… A maioria dos clientes da COPS são constituídos por Estado, e 90% dos clientes é Estado, e o Estado só paga a 60 dias. E eles não têm fundo de maneio para garantir os salários a tempo e horas aos vigilantes, pronto. Desde o início que tem sido assim.

Os vigilantes da COPS com que falámos concordam: a empresa teve em 2019 e 2020, mais do que uma vez, problemas a pagar salários. Conversámos com Manuel Sacramento, gestor de clientes da empresa, em maio de 2020. É uma das pessoas que lida com as entidades públicas e privadas que contratam os serviços de vigilância da COPS, supervisiona as relações e traz novos contratos para a empresa.

Nuno Viegas: Porque é que a COPS não paga a tempo aos funcionários?
Manuel Sacramento: A COPS paga a tempo aos funcionários e teve uma situação… A COPS conseguiu encontrar estabilidade em outubro, começou a cumprir com tudo. E os funcionários sabem muito bem que recebiam sempre dia 26, 27, 28, tinham o seu ordenado na conta.

Esta afirmação é falsa. A COPS continuava a ter, pelo menos até dezembro de 2020, problemas a pagar salários. Confirmámos com seguranças ao serviço da empresa. A justificação para estas falhas, na altura, eram alegados atrasos do Estado a pagar os valores contratualizados.

Nuno Viegas: Desculpe, mas em janeiro o problema não é o não pagamento do Estado, é a COPS não ter dinheiro em caixa para pagar aos seus funcionários.
Manuel Sacramento: Oiça, você é formado em gestão? Sim? Então e você conhece alguma empresa que tenha um cashflow de 600 mil euros em gaveta para pagar os vigilantes?
Nuno Viegas: Suficiente paa sustentar… Ter cashflow suficiente para sustentar pelo menos um mês? É bastante recomendável.
Manuel Sacramento: É bastante recomendável. Conhece alguém? Eu não conheço.

Em março de 2020, os atrasos de pagamentos na COPS levaram a um evento raro na segurança privada: houve greve. Foi convocada pelo STAD, o maior sindicato do setor.

Sandra Peixoto, vigilante na Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, em Lisboa, e João Silva, seu companheiro, a trabalhar no Instituto de Registos e Notariado, os dois para a COPS.

Sandra Peixoto: Fevereiro, último dia de fevereiro, nada, e a gente começou a ligar. Ninguém recebeu, ninguém recebeu, ninguém recebeu. Pá, e não houve qualquer parte…
João Silva: Justificação.
Sanda Peixoto: … justificação da empresa. Eu disse: “acabou, se eu pedi para nos derem pelo menos uma justificação”… Nem é uma justificação, é dizer assim: “vai atrasar”. Porque nós não estamos a pedir nada que não seja nosso, pronto. Entretanto, já se ouvia falar da greve e eu estava no cliente e avisei a cliente e disse… E no mês anterior ela tinha-me dito: “Sandra, se não receber no último dia de fevereiro, a Sandra diz-me”. E eu assim fiz. Ela ligou para a empresa e isso foi o que eu fiquei muito danada, foi do dizerem assim: “Os seus vigilantes não receberam”, “Pois não, mas está a ser tratado”, “Mas sabe que há um pré-aviso de greve, terça-feira”, “Sim, sim, esteja descansada, mas eles os dois não vão faltar”. Isto numa sexta-feira. Na terça-feira de manhã, eu estava a entrar às 09h00 da manhã, 07h10 da manhã, o meu supervisor esta-me a ligar.
João Silva: Para ti e para mim.
Sandra Peixoto: Ligou, ligou, ligou.
Ricardo Esteves Ribeiro: Ligou-te a ti também?
João Silva: Aos dois.
Ricardo Esteves Ribeiro: Às 7h00 e… Quantas vezes?
João Silva: Ui, eu tinha 14 chamadas dele, tinha 14 chamadas.
Sandra Ribeiro: Ele a mim não ligou tantas, ligou para aí umas seis.
João Silva: Depois nós fomos para a frente da empresa.
Ricardo Esteves Ribeiro: Quantas pessoas foram?
João Silva: Epá, foi.. a adesão foi muito fraca. Estávamos a volta de 30, porque estava a chover, porque houve colegas que receberam no dia de manhã e esses colegas que receberam no dia de manhã foram fracos, ao meu ver: “Ah, recebemos dinheiro, não vamos”. Nós acabamos por ver o nosso supervisor do lado de dentro da sede, nas novas instalações xpto que eles têm, topo de gama, aquilo. A janela aberta assim a meio estore e ele assim, o tempo todo da manifestação a olhar para baixo, por trás do vidro. Tanto que depois acho que disse a ela que “sim, senhora, até vos dou os parabéns porque fizeram greve e estiveram presentes, enquanto houve muitos que disseram que fizeram greve e ficaram em casa”. Epá. É um direito nosso. Nunca… Tenho 23 anos de vigilante. 23 anos e nunca fiz uma greve.
Sandra Ribeiro: E eu tenho 41 anos de idade e nunca tinha feito.
João Silva: Nunca sabia o que era uma greve. Disse assim: “vou fazer, vou fazer”. É um direito meu.

Excerto de panfleto do STAD de 20 de fevereiro de 2020, apelando à greve dos seguranças da COPS.


Enquanto os vigilantes se reuniam à porta da empresa, a COPS, dizem os seguranças, executava o seu plano.

João Silva: Depois, chegou-me aos ouvidos, através de um funcionário, que veio uma equipa de vigilantes da Covilhã para Lisboa. Estiveram 24 horas sem dormir, a tapar postos,
Ricardo Esteves Ribeiro: A furar a greve?
João Silva: A furar a greve.

Os seguranças afirmam que a 3 de março de 2020 os patrões trouxeram funcionários de outros locais para cobrir os postos deixados vagos por grevistas. E não é só João Silva que o diz. Denys Vatolin, na altura no Tribunal de Benavente, confirma.

Denys Vatolin: Depois houve a greve, fizemos a greve. Também houve fura-greves.
Ricardo Esteves Ribeiro: Como?
Denys Vatolin: Por exemplo, eu fiz a greve e soube que o meu colega foi trabalhar para o meu posto de trabalho.
Ricardo Esteves Ribeiro: Mas ele sabia que havia greve?
Denys Vatolin: Ele sabia. Eles combinam uns com os outros. É daqueles que estão a favor dos supervisoress e patrões. É os tais lambe-botas.
Ricardo Esteves Ribeiro: Que existem?
Denys Vatolin: E existem muitos, sim.

Vanessa Cruz, funcionária da COPS no Tribunal de Almada, diz o mesmo.

Vanessa Cruz: Quando eu fiz greve e a minha greve foi furada, eu informei a ACT.
Pedro Miguel Santos: Furada como assim?
Vanessa Cruz: Foram colocadas três pessoas nos nossos lugares.
Pedro Miguel Santos: Aqui no tribunal?
Vanessa Cruz: Sim.
Ricardo Esteves Ribeiro: E eles sabiam que estavam a furar uma greve?
Vanessa Cruz: Obviamente, aquilo não é o posto deles. Até porque havia uma greve marcada. Toda a gente sabia que havia uma greve.

Isilda Santos: Exatamente. Arranjou vigilantes até de outros pontos do país para irem tapar as falhas que estavam a haver. Isto é inadmissível, mas foi exatamente isso que a COPS fez.


Isilda Santos, segurança no Tribunal de Almada.

Nuno Viegas: E estes vigilantes sabiam que iam cobrir espaços vazios de uma greve?
Isilda Santos: Sabiam. Mas estão necessitados e, pronto, e eles jogam um bocado com a situação precária dos vigilantes que estão a contrato. “Ou vais ou sais” e, portanto, o vigilante limita-se a cumprir o que eles dizem. Mas isto desde sempre foi assim. Eu sempre conheci a segurança assim.


Furar uma greve é ilegal. Artigo 535º do Código de Trabalho: “O empregador não pode, durante a greve, substituir os grevistas por pessoas que, à data do aviso prévio, não trabalhavam no respetivo estabelecimento ou serviço”. E à acusação responde assim Manuel Sacramento, gestor de clientes da COPS.

Nuno Viegas: É verdade?
Manuel Sacramento: Você conhece as condições para fazer uma greve?
Nuno Viegas: Sim.
Manuel Sacramento: Conhece a contratação pública?
Nuno Viegas: Correto.
Manuel Sacramento: Conhece os serviços mínimos?
Nuno Viegas: Sim.
Manuel Sacramento: Prontos.
Nuno Viegas: Foram decretados serviços mínimos, no Tribunal Administrativo?
Manuel Sacramento: Claro que é. Então mas você acha que um tribunal não tem que ter serviços mínimos?
Nuno Viegas:  Estou a perguntar se foi a Tribunal Administrativo decretar serviços mínimos para a greve?
Manuel Sacramento: Sim, sim. Há serviços mínimos, foram sempre feitos os serviços mínimos.
Nuno Viegas: Muito bem. Não houve fura greves?
Manuel Sacramento: Não houve fura-greves nenhum, por amor de deus. Agora fura-greves porquê? Nós temos que garantir os serviços mínimos aos nossos clientes. É exigido. E cumprimos. Nunca dissemos a nenhum vigilante… nem nunca penalizámos nenhum vigilante. Aliás, é muito engraçado porque os vigilantes, os 10 ou 12 que estavam ali em frente da coisa com bandeirinha, quatro ou cinco eram da COPS, os outros eram vigilantes do deixa lá. Eles fizeram a greve, mas fizeram no sofá, em casa. Portanto, é isso que eu também critico, esses senhores. Acho muito bem que façam a greve, e disse a todos os que conheci: “a greve é um direito, força, façam”. Mas quando fui à janela não vi lá nenhum deles. São grevistas do sofá.


Não sabemos qual foi a adesão à greve. Nunca encontrámos um balanço oficial disto. Mas deixemos claro: fazer greve não implica fazer um protesto. O ato de greve é a falta ao serviço. Fora trabalhar, qualquer atividade é legítima para esse dia, seja ir a uma manifestação ou ficar no sofá.

A 20 de janeiro de 2020, a Direção Geral da Administração e do Emprego Público estabeleceu os serviços mínimos a aplicar durante esse ano nos tribunais portugueses, seja para funcionários públicos ou trabalhadores externos a prestar um serviço ao Estado, como no caso dos seguranças.

Ao abrigo desta decisão, tinha de haver vigilantes da COPS nos tribunais suficientes para garantir que os edifícios continuavam abertos. Isso não quer dizer que aquilo que a COPS é acusada de fazer foi legal. E não significa que a resposta de Manuel Sacramento faça sentido.

Havendo serviços mínimos para os postos da COPS nos Tribunais, o STAD por ter convocado a greve, tinha a obrigação de designar trabalhadores para cumprir essas funções: pessoas a quem o próprio sindicato dava instruções para não fazer greve. Se não o fizesse a tempo, até 24 horas antes, teria a COPS que indicar os nomes. Perguntámos sobre este processo ao STAD, à COPS e a Manuel Sacramento, depois da entrevista, mas não prestaram esclarecimentos.

Protesto convocado pelo STAD, com a presença do vice-coordenador nacional do sindicato, Rui Tomé, em frente à sede da COPS, em Lisboa
Fotografia: STAD


Seja como for tinham de ser os seguranças de cada posto específico a garantir o serviço. E não foi isso que aconteceu pela descrição dos vigilantes que ouvimos. Afirmam que não foram trabalhar. E a COPS trouxe outros vigilantes de locais diferentes para os substituírem. Isso é furar uma greve. E é ilegal.

Mais uma nota. Manuel Sacramento não é uma pessoa qualquer. Apesar de ter entrado para a vigilância só em 2016, como segurança raso, ganhou rapidamente influência. Num setor em que os trabalhadores dispersos geograficamente se reúnem online para tirar dúvidas e resolver problemas, Manuel Sacramento é administrador de um dos muitos grupos de Facebook do setor: o Vigilantes e Seguranças Portugal, com 21 mil membros. É o maior que conhecemos na rede social.

Tentou, em 2019, fundar o Sindicato de Seguranças e Vigilantes de Portugal — SSVP. Acabou por deixar a liderança no final desse ano, alguns meses após ser contratado como gestor de clientes da COPS, e sem o SSVP alguma vez ser legalizado como sindicato. Ainda ocupou os dois cargos em simultâneo por algum tempo.

Foi através do SSVP que o conhecemos. E é a esse papel que se tenta colar. Tal como o diretor de seguranças da PSG, Rui Entradas Silva, no segundo episódio, se recusava a falar em nome da PSG, Manuel Sacramento sublinha que não representa a COPS. Mas saltou em defesa do seu empregador sempre que colocámos questões.

Parte III – Castigos

Eventualmente, depois de anos a receber abaixo da tabela, debaixo da mesa, por horas extra que nem estão previstas no contrato, limitando-se às queixas em redes sociais, os seguranças ganham coragem e protestam formalmente. Enviam emails. Cartas. Chateiam os supervisores e os recursos humanos. Exigem o que lhes é devido.

E, aí, as empresas entram na fase dois: os castigos, as represálias, o bullying laboral sistémico. A primeira punição e a mais temida é a transferência: quem não se comporta, quem faz barulho, é obrigado a mudar de posto.

Isilda Santos, a trabalhar para a COPS no Tribunal de Almada. Antes, estava lá com a Securitas.

Isilda Santos: A primeira arma de uma empresa que não concorda nem compactua com um vigilante é transitá-lo. E depois transita para outro horário, transita para distante da localidade onde habita. Ou seja, mexe com a vida do vigilante. Não é? E isso, parecendo que não, as pessoas ponderam muito bem se querem ou não essa luta e, normalmente, não querem. Eu não quero.
Ricardo Esteves Ribeiro: E se a Isilda disser que não quer fazer 10 horas por dia, o que é que acontece?
Isilda Santos: Tiram-me daquele posto, provavelmente. E é isso que eu não quero perder. Eu preservo mais o posto do que o resto. Neste momento. Porquê? Porque eu tenho fins de semana em casa. É só diurno. Não me podem obrigar a fazer horas noturnas. Já adquiri uma estabilidade que já não quero perder. Então, eu quero estar neste cliente. Estou bem integrada. O cliente gosta do meu serviço, gosta muito de mim, tal como eu gosto do cliente. 
Ricardo Esteves Ribeiro: Quase toda a gente conta a mesma história, de que o assédio laboral é uma coisa normalíssima.
Isilda Santos: Eu sempre conheci isso assim. Sempre foi assim. Eu já estive, inclusive, na Securitas, que é uma multinacional e mais bem organizada do que estas empresas que eu considero mais pequenas e, na própria Securitas, eu sofri bullying, mesmo. Quando terminou o Millennium, onde eu estive lá 24 anos, a reação da Securitas foi mandar-me um telegrama para eu me apresentar em Loures, Cabeço de Montachique. Da meia noite às 08h00. E eu habito aqui, na margem Sul. Para ir para Cabeço de Montachique à meia noite eu nem sequer tinha transporte. A última camioneta era às 21 horas. Considero isto uma pressão. Isto foi uma forma de bullying.

Perguntámos à Securitas se usava transferências de posto como castigo. Nunca responderam.

A punição não é só ser colocado longe de casa. Algumas empresas têm postos de castigo. Locais para onde empurram os funcionários mais reivindicativos, onde o trabalho é considerado mais difícil.

Os postos mudam de empresa para empresa e dependendo dos clientes. Na 2045, os seguranças dão como exemplo a Tabaqueira, em Lisboa, e o Continente da Amadora. Para a Strong Charon, a estação de Gare do Oriente, em Lisboa, e a de Campanhã, no Porto, serviriam o mesmo propósito.

Francisco Pereira, que trabalhava num desses postos de castigo.

Francisco Pereira: A Strong Charon tinha a mania de utilizar a Gare do Oriente como penitenciária para os homens que se portavam mal – ou que se portavam mal ou que não… Aqueles que não concordavam com as ideias deles ou que, por algum motivo, enfrentaram-nos: “Então agora vais para o castigo”. E, então, iam para a Gare do Oriente como castigo. A Gare do Oriente não é castigo, é um serviço normal. Só que as pessoas, na cabeça, já iam mentalizadas que aquilo era castigo. E depois, havia lá chefes que ajudavam a empresa a tentar castigar, não é? Desde 20 minutos para a refeição, depois era… Esses aí faziam formatura para entrar. Aí uma pessoa chega lá e diz assim: “Espera aí, etão eu já deixei a tropa há quase 40 anos e vim para aqui para fazer formatura e ‘bla bla whiskas saquetas’ enquanto os outros desgraçados, que tinham passado a noite, por exemplo, se eu fosse entrar de manhã, estavam à espera que eu chegasse para o render?”

Perguntámos à Strong Charon sobre isto. Nunca responderam.

Francisco Pereira perdeu o posto de trabalho na Gare do Oriente com a transmissão falhada de janeiro de 2020, da Strong Charon para a PSG. Meteu a Strong Charon em tribunal, na altura. Entretanto, boas notícias: encontrou emprego no LoureShopping, noutra empresa, a Power Shield. A Power Shield, numa caricata reviravolta, perdeu esse contrato para a Strong Charon. Francisco Pereira, um ano depois, volta a trabalhar para a empresa que o rejeitou, a Strong Charon, este mês, em fevereiro. Que, por acaso, é o mesmo mês em que está marcada a sua audiência judicial com a Strong Charon por ter sido despedido na Infraestruturas de Portugal.

Vamos para norte.

Paulo Guimarães: Vocês não imaginam o medo que as pessoas têm. Foi incutido nesse tempo. Nem imaginam.

Paulo Guimarães garante que, antes de a Strong Charon pegar na segurança das estações ferroviárias, o Grupo 8 tinha montado um clima de terror entre os funcionários da Estação de Campanhã.

Paulo Guimarães: Se os vigilantes que estão a trabalhar, por exemplo, na estação, vissem o carro do Grupo 8 a descer a Justino Teixeira, ao longe, até fugiam. “Vem aí o chefe”. O medo. E isto, estou a falar de há três anos ou quatro atrás. Portanto, o Grupo 8 foi uma empresa que sempre fez isso. Eu cheguei ao final do meu prazo de Grupo 8 e para mim até foi… Querem que eu seja honesto? Para mim, eu tenho 25, 26, 27 anos — já perdi a conta — de vigilância privada. Estive 12 anos no Grupo 8. Para mim, foi a pior empresa por que já passei. O Nuno há bocadinho falou-me de assédio. É a pior empresa.  E isto é público, aquilo que eu digo. É a pior empresa em termos de assédio moral. Sempre com uma constante ameaça, a dizer que se não fazes vais para a rua, ou vais para ali, ou vais tomar conta de um pinheiro, ou vais tomar conta de um cemitério, ou vais tomar conta de seja do que for.

Tomar conta de um pinheiro é uma força de expressão. Mas, se acontecesse, não seria surpreendente. Manuel Santos, antigo vigilante do Grupo 8.

Manuel Santos: No entretanto, eles tiram-me de lá e mandam-me para a uma pedreira para Penafiel. Para a célebre pedreira. Que esses gajos tinham….
Ricardo Esteves Ribeiro: Ainda no Grupo 8?
Manuel Santos: Sim, no Grupo 8. Mandam-me para a pedreira, para Penafiel. E eu tinha que sair de minha casa, ir ao Grupo Oito buscar o carro, arrancava para cima, chegava lá acima, à pedreira, o colega que lá estava pegava no carro e vinha para baixo. Eu ficava sozinho no meio do mato, no meio do monte. Eu tinha que entrar dentro de propriedade privada, fazia um quilómetro e meio — veja lá que eu até sei quanto é que era — um quilómetro e meio desde a entrada até a máquina de fazer alcatrão. Epá, e nós fomos para lá tomar conta da máquina do alcatrão para o gajo da leiloeira. Veja bem que isto é insano. Isto é um filme do caralho.
Paulo Guimarães: Eu falei no…
Manuel Santos: Não. Ouve! Nós vamos fazer doze horas. Doze horas. 8h00-20h00, 8h00-20h00. Sem casa de banho, sem água, sem luz, sem nada, meu.

Manuel Santos e Paulo Guimarães falaram connosco ao mesmo tempo, acompanhados por outros dois seguranças com que se cruzaram no contrato das Infraestruturas de Portugal: Vítor Carvalho e João Carvalho.

Mas, enquanto falávamos das práticas dos gigante da segurança privada, interrompiam-se continuamente. Discutiam. Cada um tinha algo a acrescentar. Uma nova história, um novo ataque, uma nova ofensa. Vítor Carvalho trazia vários dossiers de provas, processos e documentos. Era,  claramente, a primeira vez que tinham oportunidade de contar tudo isto a alguém de fora, que se deixasse surpreender pela dimensão dos abusos. 

Um vigilante tem de viver precário, assustado e com medo do patrão. E as empresas fazem por mantê-lo assim. A denúncia foi esta.

Paulo Guimarães: E se o Grupo 8 soubesse — aqui no norte, e não é o Morgado Ribeiro, é o Grupo 8 –— se o Grupo 8 soubesse que o velhote, o Albino, tinha um terreno, ou o Azevedo tinha uma casa que estava a construir, ou coisa assim do género. Vocês são malucos. Não podia, meu: vigilante tem que ser pobre, meu. É foder o gajo!
Ricardo Esteves Ribeiro: Como assim?
Paulo Guimarães: Eram ordens que nós tínhamos. E eu fui responsável de serviço. O Vitor Carvalho e o Santos sabem disso.
Manuel Santos: É foder o gajo. Então, queres que te diga mais? Eu estava na Ferreira…
Paulo Guimarães: É entalar o gajo. É para andar aí toda a noite. Não há que descansar. Com os pés a deitar sangue. Velhotinhos com sacos nos pés.
Manuel Santos: Mas é que eu nunca fiz isso.
Paulo Guimarães: Eu fui responsável de serviço.
Manuel Santos: Mas é que eu nunca fiz isso.
Paulo Guimarães: Mas fizemos. Fizemos. E tínhamos indicações para fazer.
Manuel Santos: Ah, sim.
Paulo Guimarães: Aos senhores com 55 e 60 anos, com os pés a deitar sangue e “sapatos do morto” que foram comprados pelo Grupo 8. Aliás, vocês têm aqui uma prova, porque o Carvalho pôs em tribunal e foi buscar lá o dinheiro dos sapatos. Que eram…. a gente chamava-lhe “sapatos do morto” porque aquilo eram umas dores terríveis.


Os “sapatos do morto”, como lhes chamam os seguranças, são quase uma lenda no Grupo 8. Os vigilantes dizem que a empresa obrigou os funcionários a comprar a própria farda ao Grupo 8.  Isto já é ilegal.

Porque é que estamos a contar a história? Os vigilantes afirmam que uma fábrica guardada pelo Grupo 8, cliente da empresa, faliu sem pagar os serviços de segurança. Mas deu lotes de sapatos à empresa para saldar as dívidas. E, pela descrição de Paulo Guimarães, eram muito desconfortáveis e foram impingidos aos trabalhadores a 35 euros o par.

Esta história chegou à Assembleia da República. Em 2011, Mariana Aiveca, na altura deputada do Bloco de Esquerda, chegou a apresentar uma questão parlamentar ao Ministério do Trabalho sobre isto. O texto acusa o Grupo 8 de ter feito 87 mil e 500 euros com a operação. Procurei mas, se o Governo respondeu, não consegui encontrar. Perguntámos ao Grupo 8 sobre tudo isto. Nunca responderam.

Excerto da questão endereçada pela deputada bloquista Mariana Aveica ao Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social a 1 de março de 2011.

Nem todos os seguranças com que falámos já foram castigados, mas todos os vigilantes sabem que podem sofrer castigos como estes, uma infinidade de microataques criados para destruir lentamente o seu bem estar e a sua segurança laboral. Somando baixos salários, garante-se que ficam sempre na mão do patrão, incapazes de reagir.

A lista de acusações de vigilantes continua. Há ameaças de processos disciplinares contra os seguranças da Strong Charon que se recusam a fazer turnos consecutivos para cobrir faltas. Sónia Fonseca queixa-se de ser despedida da Securitas por estar grávida. A 2045 marcou faltas injustificadas a Sofia Figueiredo quando utilizava os dias de luto pela morte do pai. A COPS exige a funcionários que piquem o ponto através de mensagens de WhatsApp. A Prestibel faz contratos sucessivos de três meses com o mesmo trabalhador para facilitar despedimentos. Vítor Carvalho acusa a Strong Charon de falsificar os relatórios médicos da medicina do trabalho. Durante a pandemia de Covid-19, um supervisor da COPS pediu a uma vigilante que levasse o filho menor para o trabalho porque não tinha quem a substituísse. Vanessa Cruz diz que a Esegur falsificou a sua assinatura num mapa de férias. A PSG usa funcionários a tempo inteiro para cumprir o turno do meio-homem nos postos da IP. A Strong Charon ameaçou não renovar contratos a prazo a trabalhadores grevistas. A PSG tem part-times a trabalhar 232 horas por mês. A COPS escala funcionários para fazerem 11 dias de trabalho seguidos. A Vigiexpert chegou a escalar um funcionário para trabalhar 24 dias seguidos. Sofia Figueiredo não recebeu o subsídio de alimentação pela 2045 enquanto estava em campanha eleitoral. A PSG vincula os contratos de trabalho a postos específicos para facilitar os despedimentos quando perde o cliente sem admitir a transmissão de estabelecimento.

Isto são denúncias feitas por seguranças privados contra os seus patrões. Não temos provas documentais nem múltiplos testemunhos sobre cada uma. São alegações. Ainda assim, enviámos perguntas sobre todas elas às empresas visadas. Nunca responderam. Nunca negaram qualquer um dos casos.

João Silva, a trabalhar para a COPS no Instituto de Registos e Notariado, resume.

João Silva: Neste momento, com a experiência que tenho de 23 anos de vigilante, se me disserem assim “queres ir para segurança, vir com o pessoal para a segurança?”. Fujam. Fujam. Vão para outro sítio qualquer. Vigilante? Não.

Parte IV – Processos

Estes exemplos parecem extremos, mas são o dia-a-dia. É o normal, e é isto que os seguranças respondem quando perguntamos porque é que não se queixam, porque é que passam tantos anos a sofrer às mãos dos patrões.

Têm medo. De ser castigados. De perder o emprego. De mudar de posto. Os vigilantes recebem mal. Têm dificuldades em juntar poupanças. São permanentemente precários. Estão a um concurso público de poder ficar sem salário. Portanto, fazem por estar de bem com o patrão. Como nos dizia Isilda Santos, logo no primeiro episódio, já nem pedem o que é de tabela, o que é de lei.

Mas, após anos a guardar provas, a aguentar abusos, alguns vigilantes ganham coragem. Outros, finalmente mudam de empresa e nessa altura, decidem-se a avançar com um processo em tribunal, a exigir aos patrões o dinheiro que lhes devem: os subsídios de alimentação em atraso, as horas extra por pagar, as formações que nunca aconteceram, o dinheiro que deram por uma farda a que tinham direito.

Aí estão a abrir uma longa, morosa e altamente burocrática. É por isto que são tão importantes os serviços de apoio jurídico de um sindicato como o STAD. As organizações sindicais quase sempre contratam advogados que trabalham para os seus sócios sem lhes cobrar honorários. Basta ter quotas pagas para ter apoio.

São juristas habituados a processos laborais de setores específicos e que sabem que estão a lidar com pessoas que entram muitas vezes pela primeira vez no sistema judicial. E, sublinho de novo, trabalham sem cobrar qualquer valor aos associados. Num setor com salários baixos, em que nem toda a gente consegue pagar por um advogado, isto é muito importante.

Depois de se convencer um advogado, seja privado ou sindical, de que se tem um caso sólido contra o patrão ou o ex-patrão, compila-se tudo o que se quer reclamar — os vigilantes falam-nos nisto como “fazer as contas”. Vêem anos de recibos de vencimentos, escalas e emails e somam provas que justifiquem cada cêntimo que não lhes pagaram. Para alguns, são centenas de euros; para outros, milhares.

Para dar um sentido de escala, só em 2019, o maior sindicato do setor, o STAD, levou 629 processos a tribunal entre o setor da vigilância e o da limpeza, que também representam. No mesmo ano, fez 253 queixas na Autoridade para as Condições do Trabalho e nas instituições regionais equivalentes. Pedimos os números separados, só para a vigilância. Nunca nos deram.

Há uma série de formas de exigir este dinheiro. O advogado pode pedir diretamente o pagamento desse valor em dívida ao patrão, através de um acordo. Se falhar, pode fazer queixa junto das Secções Centrais do Trabalho do Ministério Público e desencadear um processo administrativo. E, aí, com mediação do Estado, pode convocar a empresa para vir negociar o pagamento ao trabalhador, através de um acordo. Mas este sistema é opcional. O patrão pode só não comparecer. 

Resta fazer uma participação ao Tribunal de Trabalho da zona de residência do vigilante ou do posto onde está empregado. E isso leva a uma audiência das partes. Aqui é obrigatória a presença do segurança e da empresa à frente de um juiz, para tentar negociar o pagamento dos valores em dívida através de um acordo. Se alguém recusar fechar acordo, abre-se um processo laboral. O segurança apresenta as provas. A empresa pode contestar. Eventualmente, vão a julgamento. Toma-se uma decisão. A empresa é condenada ou ilibada. Se houver razões para isso e o valor o justificar, ainda se pode recorrer para uma instância superior.

Mas, claro, em qualquer momento o vigilante pode desistir da queixa e fechar um acordo extra-judicial com o patrão. Sem sentenças, nem burocracias, nem o risco de perder o processo e ficar responsável por pagar a totalidade das custas judiciais e valores em dívida ao advogado. Já notaste o padrão?

Mais uma vez agora com Paulo Marques Pinto, que já ouvimos no terceiro episódio. É advogado de seguranças no norte do país, particularmente para casos de transmissão de estabelecimento.

Ricardo Esteves Ribeiro: Uma das coisas que tem sido… que tem vindo em quase todas as conversas que eu tive com vigilantes: em quase eu diria até que em todos os casos que eu ouvi até hoje, acabou com um acordo. É o modus operandi da coisa? É normal?
Paulo Marques Pinto: É normal e parece-me mais ou menos pacífico. Por diferenças salariais, nunca estaremos a falar de valores muito elevados. Às vezes até poderemos estar, mas, quer dizer, poderá andar nos mil, dois mil euros, uma coisa assim do género, percebe? Portanto, parece mais ou menos pacífico. Ninguém perde a face se for a tribunal e, em vez de esperar que o juiz decida que tenha direito a 1500, ou que tenha direito a 600, ou que tenha direito a dois mil, ou tenha direito a zero, portanto fazer ali um acordo, como acontece várias vezes em tribunal.


Quando um vigilante finalmente apresenta uma queixa contra o patrão, exigindo valores que eram justamente seus, as empresas têm a mesma resposta: não pagamos, mas podemos negociar. Antes de haver sentença ou sequer julgamento, os patrões dispõem-se a matar o problema. Do que devem, pagam parte. O processo cai. O segurança assina um acordo extra-judicial, garantindo que a empresa não lhe deve nem mais um cêntimo. E está feito. Isto significa que cada segurança perde umas centenas de euros ao fechar um acordo. Mas, para a empresa, as contas são diferentes. 

Hélder Fernandes, ex-segurança do IEFP — Instituto do Emprego e da Formação Profissional — de Famalicão, com a Comansegur.

Hélder Fernandes: Há-de sempre haver qualquer coisa ali que não bate a cara com a careta, normalmente os prejudicados somos nós, a gente depois também começa a perceber que são cinco euros, o trabalho que dá reclamar os cinco euros… Mas se multiplicares cinco euros por três mil, quatro mil funcionários, é muito dinheiro. Dá quase para pagar um serviço administrativo deles só com esse dinheiro.
Ricardo Esteves Ribeiro: E isso acontecia na Charon?
Helder Fernandes: Na Charon acontecia, acontecia. Embora é daquelas situações que quem andava no ramo e quem conhece o ramo sabe mais ou menos ao que vai e o que é. E quem não sabe, ao final de pouco tempo começa a perceber.

Para além de pouparem milhares de euros, estes acordos permitem às empresas fugir a multas e condenações. As empresas de segurança privada roubam os funcionários e depois passam entre os pingos da chuva, nas entrelinhas da lei, como se nunca tivessem feito nada de errado.

Evitar condenações formais frequentes parece dar conforto às empresas para se gabarem de cumprir a lei. Como quando José Morgado Ribeiro, presidente da AESIRF, a associação patronal, e dono do Grupo 8, durante a entrevista que nos deu negou todas as acusações.

Ricardo Esteves Ribeiro: A Grupo 8 foge aos impostos ao pagar às pessoas?
José Morgado Ribeiro: Claro que não. Temos tido inspeções regulares e isso não foi provado. Quer dizer, é provável que tenha… pode haver um engano, pode haver uma situação, mas não é prática, nem pouco mais ou menos.
Nuno Viegas: Estamos a falar de recibos de vencimento em que o pagamento de subsídios de alimentação corresponde as horas extras feitas, no mesmo valor. O pagamento de horas extras era feito através do subsídio de alimentação, para não pagar impostos sobre estas horas?
José Morgado Ribeiro: Não. Isso, não. Não creio. Não creio. Não controlo esses pequenos pormenores, mas não creio. Isso nunca foi prática da empresa. Aliás, ao longo deste tempo todo tivemos ‘n’ inspeções de Segurança Social, das Finanças, etc., e vão ver os casos em que nós fomos condenados.
Ricardo Esteves Ribeiro: E foram multados? Aconteceu?
José Morgado Ribeiro: Nunca fomos multados, que eu saiba. Não lembro disso.
Nuno Viegas: E é prática no setor? A fuga aos impostos?
José Morgado Ribeiro: Epá, se você for ver algumas empresas não associadas, ou outras assim, é capaz de ver.
Nuno Viegas: Entre as associadas, não há?
José Morgado Ribeiro: Não sei.
Nuno Viegas: Deixe-me colocar-lhe um hipotético, e diga-me se isto seria proibitivo de uma empresa que tivesse esta prática entrar para a AESIRF. Uma empresa que paga horas extraordinárias através de um mapa de quilómetros falsificado, todos os meses, poderia entrar para a AESIRF?
José Morgado Ribeiro: Se nós não soubéssemos…
Nuno Viegas: E tem forma de saber?
José Morgado Ribeiro: É difícil. Só com o próprio sindicato, e aí são eles a controlar, e a eles compete controlar e divulgar. Portanto, isso é um problema que não é nosso. Se nós descobrimos que é, pode ser um entrave.


Perguntámos à Autoridade para as Condições no Trabalho, à Autoridade Tributária e à Segurança Social se o Grupo 8 tinha sido multado ou condenado na última década. A ACT não respondeu. A Segurança Social e a Autoridade Tributária indicaram que não podem partilhar esta informação, porque está sobre sigilo.

E, na outra associação patronal, a AES,  bem…

Nuno Viegas: Há alguma empresa de segurança privada em Portugal que cumpra a lei?
Rogério Alves: Epá, meu caro, como compreende, é assim, eu não posso passar um atestado a ninguém.

Rogério Alves presidente da AES não pode passar atestados, mas paga a quem o faça. A associação exige agora que os seus membros recebam um certificado de conformidade ou compliance laboral, como insistem em dizer no setor, emitido pela AENOR, uma multinacional que faz avaliações a quem a contrata para ver se estão a ser cumpridas as boas normas e práticas legais. É uma empresa a que outras empresas pagam para lhes dizer se estão a cumprir a lei. Portanto, não é Rogério Alves quem paga, vá. São as empresas que pertencem à AES. É um exagero retórico a bem do estilo narrativo. Continuemos.

Certificado de compliance laboral emitido pela AENOR para a Strong Charon em 2019

Rogério Alves: O que lhe digo é: se eu descobrisse que as empresas que estão na AES… Tudo isso que disse, para mim, neste momento, está a mexer na ferida. Está com o dedo no ponto. Isso é o problema. Quer dizer, não será, pronto, enfim, depois a falta de desenvolvimento económico, etc., etc., etc. Mas esse é o problema, isso que disse – que guardou para o fim, e muito bem – isso é o problema. São as queixas que nós ouvimos dizer. Na nossa associação… Na nossa associação, tanto quanto sei, tanto quanto quero, e o ponto de partida que assumo é que as empresas não fazem isso.
Ricardo Esteves Ribeiro: Uma das coisas que nos dizem também na investigação toda e temos vindo a perceber – não é só dizem, neste caso temos, obviamente, casos em que isso tem acontecido: vigilantes instauram processos contra as empresas para as quais trabalham ou trabalharam, mas quase todos estes processos acabam em acordos extra-judiciais e não em condenações. Isto é uma estratégia das empresas para poupar milhares, milhões de euros por ano?
Rogério Alves: Não, não, não conheço. Não penso que seja uma estratégia das empresas, a menos acordo seja mais benéfico do que ter pago logo à cabeça.
Ricardo Esteves Ribeiro: É. É isso que acontece.
Nuno Viegas: É isso.
Rogério Alves: Agora, repare, também teremos de admitir que as empresas, muitas vezes, terão razão. Desde logo, porque a interpretação da lei nem sempre é totalmente linear. E depois as empresas poderão ter razão. Até poderão ter razão na maior parte dos casos.
Pedro Miguel Santos: E não seria mais fácil levar o julgamento até ao fim? Tendo razão, teria razão no final do julgamento.
Rogério Alves: Não, não. Mas o problema da razão… ter razão não quer dizer que tenha a razão toda. Isto é, pode haver uma divergência, digo assim: “Eu quero o dinheiro”, “Mas eu não pago”. “Vamos para o tribunal”, “Se você me pagar 50%, 60%, entre o que paga a advogados, a isto e aquilo. Vamos fazer um acordo”. Às vezes até se fica sem se saber quem é que tem razão. Mas cede-se.
Pedro Miguel Santos: Mas não há.
Rogério Alves: Uma estratégia?

Pedro Miguel Santos: A nossa pergunta era essa.
Rogério Alves:
Que eu tenha conhecimento, não há nenhuma estratégia nesse sentido.

Se existe algo óbvio ao fim de dois anos de investigação, é isto: há um sistema de abuso laboral montado na segurança privada. E, como vimos na última hora, não é um problema só de algumas empresas nem sequer só de uma das associações patronais. Quer a AES, quer a AESIRF têm membros que violam e violavam o Código do Trabalho.

Para que fique claro: o que Rogério Alves e José Morgado Ribeiro estão a dizer não tem qualquer correspondência com a realidade. E o que isso significa é que, ou duas das pessoas mais poderosas neste setor desconhecem as práticas das empresas cujos interesses representam e defendem, ou estão a mentir-nos descaradamente.

Parte V – Reguladores

A nossa questão depois de percebermos o sistema era esta: como é que isto é possível? Como é que o Estado português permite a violação sistemática da sua legislação laboral? Como é que aceita que seja este o modus operandi de um setor? Mais: como pode o Estado continuar a contratar empresas que baseiam o seu modelo de negócios em abusos laborais?

Algumas hipóteses: ou não sabe que isto está a acontecer, o que demonstra má fiscalização, ou sabe e não faz nada, o que demonstra má regulação, ou sabe e não quer intervir, o que significa que o Estado está a ignorar a sua própria lei para poupar uns trocos.

Maria Fernanda Campos, sub-inspetora geral da Autoridade para as Condições no Trabalho, responsável por fiscalizar tudo isto.

Nuno Viegas: A ACT sabe que isto é uma realidade no setor da segurança privada?
Maria Fernanda Campos: Sim. Sim. Não podia desconhecer, obviamente. A ACT não só sabe como tem trabalhado intensamente no sentido, obviamente, de regularizar. Eu posso dizer-lhe que durante o ano de 2019 e até agosto deste ano [2020], até meio de agosto deste ano, mais ou menos, tínhamos levantado cerca – levantado é gíria – assumido procedimentos inspetivos cerca de… Perto de 600 procedimentos inspetivos, entre os quais 300 autos de notícia e a maioria dos autos de notícia respeitam precisamente à organização do tempo de trabalho. O tempo de trabalho, genericamente — e é transversal a todos os setores de atividade — é um problema em todos os setores de atividade. Neste setor de atividade é um problema ainda maior e torna-se bastante difícil, também, de fiscalizar. Porquê? Porque é uma atividade que está bastante pulverizada. Tem, por exemplo, um trabalhador num sítio, centenas de quilómetros depois outro trabalhador. É bastante pulverizada. E para a intervenção inspetiva numa metodologia muito tradicional, vá lá, teríamos que ter uma equipa de inspetores a percorrer cada um desses locais e verificar, no local de trabalho, o que é que se passa, etc. E isto, de facto, é bastante penalizador e bastante dificultador para a fiscalização.
Nuno Viegas: Mas quando diz que é um setor permeável a abusos em termos do tempo de trabalho e das horas de trabalho está a ser até agradável na caracterização do setor porque, mais do que permeável, é: “nove em cada dez vigilantes trabalham 12 horas por dia”.
Maria Fernanda Campos: Quando eu digo que é permeável é porque não são todas.
Nuno Viegas: É sistémico. É sistémico.
Maria Fernanda Campos: Sim. É um problema. De facto, é um problema. Isso não acontece em todas as empresas, mas é uma situação, uma anomalia, digamos assim, que caracteriza ou que pode caracterizar o sector, infelizmente.


Duas notas: quando eu disse que “nove em cada dez vigilantes trabalham 12 horas por dia” estava a recorrer a uma hipérbole. Não tenho números exatos. E também não temos forma de confirmar quantas inspeções fez a ACT a empresas de segurança privada. Não há documentos públicos sobre isto. Avançando.

Maria Fernanda Campos em entrevista ao Fumaça, a 26 de agosto de 2020.
Fotografia: Assessoria de imprensa da ACT

Desde 1996 que Maria Fernanda Campos é inspetora do trabalho. Ultimamente, tem estado à cabeça da fiscalização à segurança privada. Falou connosco em agosto de 2020. E a mensagem da número dois da ACT era esta: há imensos problemas na segurança privada; já foi muito pior.

Nuno Viegas: Consegue dar-me uma empresa em Portugal que cumpra a legislação laboral?
Maria Fernanda Campos: Eu vou escudar-me, escusar-me de dizer nomes porque, de facto, poderia ser injusta com outras estar aqui a nomear. Mas há um conjunto de empresas, não é uma ou duas, mas há algumas empresas que, sim, têm um bom nível de regularidade. Não quer dizer que não tenham sanções e que o caminho não tenha sido duro, mas também há empresas regulares e eu estou em crer que o trabalho que vamos fazendo que vai conseguir aumentar significativamente o nível de regularidade que a generalidade das empresas tem. Claro que há….
Nuno Viegas: Neste momento, as empresas regulares são a minoria?
Maria Fernanda Campos: São a minoria. Sim. Neste momento, são, infelizmente.
Pedro Miguel Santos: Tendo em conta a complexidade do setor, não é, a tal dispersão e pulverização dos locais de trabalho pelo país, a ACT tem meios suficientes para fazer o seu trabalho?
Maria Fernanda Campos: Nós… Eu diria o seguinte: nunca temos meios suficientes. Mas isso não pode ser desculpa para deixarmos de fazer. Esta é a postura da ACT. Portanto, com os meios que temos vamos fazer tudo o que é possível. O importante
Pedro Miguel Santos: Mas isso é uma resposta politicamente correta. O que eEu queria perceber é se há a necessidade de terem mais meios, independentemente de concordarmos com essa sua resposta de que claro que toda a gente quer sempre mais meios, mais dinheiro, o que seja.
Maria Fernanda Campos: Mas não é possível!
Nuno Viegas: Ser possível, é. 
Maria Fernanda Campos: A pergunta é: até que ponto estamos dispostos a pagar mais meios e que meios e para que serviços públicos. A pergunta é essa, são opções. Obviamente que o que a ACT necessita de mais meios ou, sobretudo, de melhores meios, mas também necessita de melhorar as metodologias.

A ACT pode intervir e intervém contra empresas que violam a legislação laboral. Mas os seus poderes são limitados. Podem passar multas e abrir processos, mas isso exige que recebam queixas ou vão aos postos por iniciativa própria, recolher provas. A qualquer momento as empresas podem contestar e recorrer das sanções para tribunal.

No fundo: a ACT pode castigar as empresas quando as apanha, mas isso exige que as apanhe. E este setor tem uma particularidade: os postos estão dispersos geograficamente. É mais difícil inspecionar as condições laborais de uma empresa de segurança privada do que de uma fábrica, por exemplo, porque os funcionários não partilham um local de trabalho apesar de terem a mesma entidade empregadora.

É inviável a ACT inspecionar os milhares de postos espalhados pelo país. Portanto, o próprio sistema de organização do trabalho da vigilância dificulta a intervenção dos reguladores e a aplicação eficaz de sanções. A única forma de as multas funcionarem só por si é ser mais caro para as empresas pagar o castigo do que cumprir a lei. E, em geral não o é: porque se uma empresa rouba todos os funcionários e só é apanhada nos poucos postos que a ACT tem mãos para ir investigar, poupa dinheiro.

Para a ACT, um recurso alternativo é o diálogo. A AES e a AESIRF pedem mais regulação, para elevar o setor todo ao mesmo tempo, pôr toda a gente a cobrar mais, para toda a gente pagar mais e tirar mais lucros no fim do mês. E Maria Fernanda Campos quer aproveitar essa boa vontade. Quer falar com as empresas para as convencer a cumprir coletivamente a lei, porque a desculpa das empresas é sempre a mesma: enquanto houver um concorrente a fugir às regras, temos de fugir todos.

Maria Fernanda Campos: Nós tentamos mais ter uma metodologia de acompanhamento um pouco mais macro e isso é também que tem sido tradição. 

A tradição que Maria Fernanda Campos refere é o Observatório da Segurança Privada, um grupo de diálogo que reúne associações patronais, sindicatos e reguladores. Esteve parado em 2019. Foi reativado em 2020. É para isso que a ACT está a trabalhar, porque com os poderes que tem à disposição, ir atrás de cada empresa, individualmente, não resolve um problema sistémico.

Pedro Neto Gouveia: Nós, Polícia de Segurança Pública, compete-nos a nós, como regulador, definir regras e funcionamento legal da área específica de segurança privada e não das questões laborais, nem das questões tributárias, nem das questões sociais.

O superintendente Pedro Neto Gouveia dirige o separtamento de segurança privada da PSP, desde setembro de 2015. Tem mandato até setembro de 2021. É ele o número 1 da regulação da vigilância portuguesa.

É um agente experiente. Foi Chefe da Área de Operações e Segurança do Comando Metropolitano da PSP de Lisboa; oficial de ligação do Ministério da Administração Interna junto da Embaixada de Portugal em Díli, Timor-Leste. E, depois, Diretor do Departamento de Operações da Direção Nacional da PSP.

Pedro Neto Gouveia está à cabeça do Departamento de Segurança Privada da PSP desde 2015.
Fotografia: Joana Batista/Fumaça

Coincidência interessante: Rui Pereira, que se chateou connosco no terceiro episódio, era o Ministro da Administração Interna quando foi criado o Departamento de Segurança Privada da PSP. E, em fevereiro de 2008, assinou um louvor a Pedro Neto Gouveia, considerando “os serviços” do superintente “em prol da PSP […] relevantes, extraordinários e distintos”. Adjetivos bem escolhidos, porque Pedro Neto Gouveia foi honrado, de novo, em 2015, com a Medalha de Prata de Serviços Distintos.

Pedro Neto Gouveia: Nós sempre que vamos efetuar uma ação de fiscalização, fiscalizamos tudo. Portanto, conseguimos concentrar em nós áreas que não são nossas. Não temos problemas nenhuns. E, portanto, tentamos, tentamos, dentro da medida do possível, e dentro das nossas competências, que são a capacidade de fiscalização e de regulação, fazer uma fiscalização transversal. Portanto, este trabalho que é feito, é feito no sentido de, sempre e permanentemente, olhar para a questão laboral, para os interesses dos trabalhadores acima de tudo. Obviamente que o regulador tem que olhar também para os interesses das empresas, porque isto é um setor económico que garante emprego e, portanto, temos que olhar para os dois lados da questão. Agora, não abdicamos em circunstância alguma de fazer os autos de notícia necessários e competentes para encaminhar para as entidades que têm a competência depois de dar o seguimento ao processo. O processo não é nosso.
Nuno Viegas: Mas, senhor superintendente, admite que isto está fora de mão?

Pedro Neto Gouveia: Diga?
Nuno Viegas: Admite que a situação está fora da mão?
Pedro Neto Gouveia: Não, não está fora de mão. Não está fora de mão.
Nuno Viegas: Acho que se nos levantássemos daqui e fossemos à segurança privada mais próxima, um posto 24 horas, garantidamente que eram três pessoas a trabalhar fora dos horários normais.
Pedro Neto Gouveia: Acredito que há necessidade de correção de muita coisa ainda na segurança privada.
Nuno Viegas: Mas é sistemático. Os abusos laborais estão absolutamente instalados, concorda com isto?
Pedro Neto Gouveia: Como em muitas outras áreas laborais, não é só nesta. Portanto,cabe….
Nuno Viegas: Tenho todo o gosto de falar com os reguladores de todas as áreas laborais e fazer a mesma questão.
Pedro Neto Gouveia: Obviamente que, no nosso caso – conforme lhe digo, e não rejeito responsabilidade, porque a área de regulação é nossa – no entanto: as questões laborais não são da nossa responsabilidade, as questões tributárias não são da nossa responsabilidade. No entanto, e conforme lhe disse, nós fazemos a fiscalização em todas as áreas.


Esta ideia da fiscalização transversal surgiu nas entrevistas que tivemos quer com a ACT quer com a PSP. Na verdade, é algo bastante óbvio, mas que está há anos para acontecer de forma automática e sistemática. Em maio de 2020, Pedro Neto Gouveia ainda a definia como algo a ser ultimado, no futuro.

A ideia é ter uma partilha de dados constante entre a Polícia de Segurança Pública, a Autoridade para as Condições no Trabalho, a Autoridade Tributária e a Segurança Social. Imaginemos que sempre que a PSP vai a um posto ver se toda a gente tem um cartão profissional aproveita para verificar se o mapa de férias está exposto, ou se os turnos estão legais. E, se houver alguma falha, avisam a ACT para seguir com esse processo na área laboral. Tanto a PSP como a ACT garantem que, em parte, isto já acontece.

Outra vantagem: cada uma destas entidades tem dados independentes sobre as mesmas empresas. E, se os cruzarem, podem apanhar irregularidades. Exemplo prático: a PSP sabe quantos seguranças trabalham para cada empresa, porque são eles que emitem os cartões profissionais. Se uma empresa tem 500 vigilantes inscritos na PSP, mas só paga a segurança social de 300 pessoas, quer dizer que está a fugir às obrigações com 200.  O objetivo de Pedro Neto Gouveia é que exista sempre este tipo de verificação. Mas, diz, isto não basta.

Pedro Neto Gouveia: Outra das questões que é importante é a questão testemunhal. A questão testemunhal é importante. As pessoas são condicionadas, conforme diz, e muito bem, devido às fragilidades do sistema e às fragilidades, às vezes, das relações laborais, e à própria necessidade. Nós sabemos que esta questão também é uma questão de necessidade.

Condicionar trabalhadores é mais fácil na segurança privada pela mesma particularidade que dificulta a fiscalização: ao contrário de uma fábrica, em que os funcionários trabalham todos no mesmo sítio, os postos dos vigilantes estão dispersos geograficamente. E isso é um obstáculo ao estabelecimento de plataformas de reivindicação coletiva. Se os trabalhadores não convivem, nem partilham um mesmo espaço físico, têm menos oportunidades de debater os seus problemas e perceber como responder de forma coordenada, participando num sindicato ou, por exemplo, organizando manifestações, greves e protestos para garantir os seus direitos laborais.

Seria fácil assumir que uma classe com 45 mil pessoas teria um poder negocial considerável frente aos patrões. Mas, para o exercerem, têm de desenvolver um corpo de reivindicações coletivo e um plano de protesto, e para chegar aí, precisam de estabelecer laços sociais empáticos entre colegas, que lhes permitam desenvolver uma consciência comum dos problemas sistémicos do setor. Tudo isto é muito mais difícil quando se está a trabalhar sozinho numa portaria, em que o único colega que se conhece é o que nos vem substituir no fim do turno, como acontecia a Denys Vatolin no Tribunal de Benavente, que ouvimos logo no início.

Quando se separa trabalhadores, mina-se a solidariedade e a reivindicação coletiva. O trabalhador solitário está desprotegido. É o alvo perfeito para abusos laborais.

Pedro Neto Gouveia: Nós às vezes, em processo contraordenacional e em processo de averiguação destas circunstâncias, as pessoas vão testemunhar que afinal não recebem nada por baixo da mesa. Portanto…. E às vezes é muito complicado.
Pedro Miguel Santos: O trabalhador mente sobre a sua própria situação, é isso que está a dizer?
Pedro Neto Gouveia: Exatamente, é isso. Portanto, em processo… Ele é capaz de denunciar mas, depois, em processo… Porque tem medo, porque tem necessidades, porque é frágil a sua situação, por tudo – é uma questão social, é uma questão social e, efetivamente, é uma emergência. 

Esta emergência laboral tem responsáveis. E a nossa análise, depois de dois anos de investigação, é esta: os critérios de contratação dos concursos públicos beneficiam as empresas que violam a lei. Quem baixar mais os preços, recebe como prémio do Estado contratos milionários. E, para baixar preços na segurança, rouba-se os trabalhadores.

O Estado externalizou os serviços de portaria e vigilância para poupar dinheiro. Quando o fez, tinha de ter consciência pelo menos disto: estava a passar as funções de um funcionário público para um funcionário privado que seria mais mal pago e mais precário. Quando o fez, o Estado recorreu, e recorre hoje, a externalizações – ou outsourcings – para suprimir necessidades permanentes.

Não é possível alegar ignorância. A ACT sabe disto. A PSP sabe disto. Logo, o Estado tem a obrigação de estar informado sobre as práticas das empresas que anda a contratar. E, ainda assim, continua a ser o principal cliente do setor. Desde 2008, gastou mais de mil milhões de euros com estas empresas.

O Estado está a criar as condições que motivam os abusos e a falhar na fiscalização que os pode impedir. O Estado está a promover a precariedade, a fuga ao fisco e o bullying laboral. E nós, como sociedade, aprendemos a ver isto como algo normal, como uma inevitabilidade.

Mas a que preço? O que é que acontece quando se abusa durante décadas de seguranças privados? No próximo episódio, vamos ao fim da história. 

CORREÇÃO: Maria Fernanda Campos assumiu, em janeiro de 2021, o cargo de inspetora-geral da Autoridade para as Condições do Trabalho, substituindo interinamente Luísa Guimarães até ser nomeada nova titular para o cargo. Não detetámos a mudança de funções ao escrever este episódio, em que Maria Fernanda Campos é ouvida ainda na qualidade de sub-inspetora-geral da ACT.

FIM


“Vampiros” é o sétimo episódio da série “Exército de Precários”. 

As pessoas que fazem parte da comunidade Fumaça já podem ouvir o oitavo e último capítulo, para além da entrevista “extra” que o acompanha. Com este sétimo episódio deixamo-vos a nossa conversa com Maria Fernanda Campos, subinspetora-geral da Autoridade para as Condições do Trabalho. A número dois da ACT falou-nos da dificuldade em fiscalizar o universo da segurança privada no país e reconhecer os abusos laborais praticados pelas empresas.

Se queres ouvir esta entrevistas e receber mais cedo o episódio final desta série, faz uma contribuição recorrente em fumaca.pt/contribuir, ajudando o Fumaça a ser o primeiro projeto de jornalismo totalmente financiado pelas pessoas.

Este episódio foi escrito pelo Nuno Viegas, que fez também a investigação e reportagem desta série com o Ricardo Esteves Ribeiro e comigo, Pedro Miguel Santos. Eu e o Ricardo fizemos a edição e o factchecking.
O Bernardo Afonso também participou nas discussões de verificação de factos e fez, ainda, a edição de som, o sound design, e compôs, interpretou e misturou a banda sonora original.

A Joana Batista criou a imagem, a Maria Almeida fez a estratégia de marketing e a Sofia Rocha e o Tomás Pinho implementaram a página online. Passem por lá para ver as ilustrações, a transcrição de todos os episódios e documentação que ajuda a aprofundar o que ouviram hoje.

A Margarida David Cardoso participou nas sessões de edição coletiva de todos os episódios desta série.
Fazem ainda parte da equipa Fumaça: Danilo Thomaz e Mo Tafech.

Durante este episódio ouviram-se sons de arquivo da SIC.

Com o apoio:

A série “Exército de Precários” foi realizada com o apoio de bolsas de investigação jornalística atribuídas pela Fundação Calouste Gulbenkian (2018) e Fundação Rosa Luxemburgo (2020). Os contratos podem ser consultados em www.fumaca.pt/sobre.

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