Segurança Privada: Exército de Precários (6/8)

Monarquia

Este é o sexto episódio da série “Exército de Precários”. As pessoas da comunidade Fumaça têm acesso antecipado ao sétimo e oitavo episódios da série e, ainda, um conjunto de entrevistas extra, exclusivas, com algumas das personagens centrais da história. Se também queres ter acesso, faz uma contribuição recorrente aqui.

Esta reportagem foi escrita, produzida e editada para ser ouvida com auscultadores ou auriculares. O que se segue abaixo é a transcrição integral de toda a peça áudio.

Introdução

[Som de toque de telemóvel]
Ricardo Esteves Ribeiro: Chefe.
Nuno Viegas: Camarada, diz-me.
Ricardo Esteves Ribeiro: Então, estás bem?
Nuno Viegas: Estou ótimo, estou
ótimo. E tu?
Ricardo Esteves Ribeiro: Também. Olha, eu pedi ao Paulo Guimarães que me desse o número do Vítor Cruz. Aquele gajo que esteve no STAD, saiu do STAD, foi para o SSVP.
Nuno Viegas: Não é Hélder?
Ricardo Esteves Ribeiro: Acho que… Talvez. Mas é Cruz. Hugo! Hugo Cruz.
Nuno Viegas: Hugo Cruz. Exatamente.

Esta é uma chamada entre mim e o Ricardo Esteves Ribeiro, jornalista do Fumaça, na tarde de 22 de maio de 2020.

Ricardo Esteves Ribeiro: Então, eu liguei-lhe há um bocado.
Nuno Viegas: Okay.
Ricardo Esteves Ribeiro: Opá, e foi a conversa mais surreal que já tive.
Nuno Viegas: Então?
Ricardo Esteves Ribeiro: Que acaba com o gajo a dizer-nos que na terça-feira temos de ir ter à garagem de casa dele. Ele disse-me que o prédio, os dois prédios que o STAD comprou – um custou 800 mil euros e o outro não me lembro quanto -, foram pagos pelas empresas. O que é que o gajo diz que tem: ele diz que tem documentos que provam que o STAD está a receber dinheiro das empresas da AES, incluindo a Strong Charon. E ele diz, basicamente, que a Strong Charon e outras, não só dão uma avença mensal ao STAD para que o STAD bloqueie casos judiciais contra as empresas, como também para fazer com que eles – durante os processos que foram colocados em tribunal–, os associados deles aceitem acordos. Ele diz que essa é a razão por que a maior parte dos vigilantes aceita acordos. É porque o STAD os obriga.
Nuno Viegas: Foi por isso que ele saiu do STAD?
Ricardo Esteves Ribeiro: Ya. Agora, aquilo que ele tem: ele diz que há uma parte dos documentos que ele tem que ele nos deixa ver, mas não nos pode dar.
Nuno Viegas: Mas podemos tirar nota? Podemos tirar fotos?
Ricardo Esteves Ribeiro: Ele diz que estes documentos todos de dar dinheiro, tudo bem, porque são documentos que ele conseguiu ele próprio. Mas tem uma outra parte que são documentos que lhe foram dados. Ele diz que tem amigos que lhe deram uma série de mensagens que lhe demonstram como é que o STAD e as empresas gerem isto. Opá, ouve, tudo isto pode ser uma banhada total, pode ser uma maneira de sermos mortos na garagem dele.
Nuno Viegas: [Riso]
Ricardo Esteves Ribeiro: Mas há uma pequena chance de isto ser realmente ser aquilo que ele está a dizer, e se for aquilo que ele está a dizer é incrível.

E nessa chance fomos à garagem.

Este é o sexto episódio da série Exército de Precários: Monarquia. Seja toda a gente bem vinda ao Fumaça. Eu sou o Nuno Viegas.

Nuno Viegas: Que documentos é que ele tem?
Ricardo Esteves Ribeiro: Epá, diz que não dizia. Diz que dizia ao telemóvel, que temos de ir à garagem dele.
Nuno Viegas: Ahhhh… esta reportagem nunca mais acaba! [Riso]

Parte I – Garagem

Não é o mais nervoso que já estive para uma entrevista mas estava bastante stressado quando fomos falar com Hugo Cruz. Primeiro, porque implicou uma longa viagem de carro até Gondomar e eu odeio andar de carro. Depois, porque Hugo Cruz nos deixou à espera à porta do seu prédio, de material na mão, durante dez infinitos minutos. E, por fim, e isto é um preconceito, eu sei, era um segurança privado a chamar-nos para falar dentro de uma garagem, fora de vista.

Ainda assim, Hugo Cruz não era um segurança qualquer. Paulo Guimarães, líder dos protestos sobre a transmissão de estabelecimento nas Infraestruturas de Portugal, já nos tinha falado nele. Disse-nos, na altura, uns tempos antes, que Hugo Cruz sabia muita coisa. Tinha o que dizer. E não foi o único. Nos dias anteriores, já outro entrevistado nos tinha empurrado na mesma direção.

Hugo Cruz foi delegado sindical do STAD, o maior sindicato do setor. E o tema central era este: Hugo Cruz diz que as empresas da AES, incluindo a Strong Charon, dão dinheiro ao STAD. Sugere que os patrões o fazem para influenciar o funcionamento do sindicato, garantindo Contratos Coletivos de Trabalho mais favoráveis e o acesso a informações dos processos judiciais movidos por sócios.

Insinua até que a AES esteve envolvida na compra ou no financiamento da compra da nova sede do STAD, em Lisboa, e da delegação do Porto, em 2019. Só admite duas hipóteses: ou bem a AES adquiriu os edifícios, ou deu ao sindicato dinheiro suficiente para os comprar.

Hugo Cruz desceu e levou-nos para a cave da casa. Uma garagem separada em divisões para cada morador. A do nosso delator tem uma porta basculante que se fechou atrás de nós assim que entrámos.

Hugo Cruz é atlético, tem o cabelo rapado, fala sempre com ritmo e convicção. Anda direito, de cabeça levantada. Está aprumado. E é confiante. Um pouco convencido, até. Tem razões para isso. Entrou para a segurança em 2009, logo numa das maiores empresas, a atual Strong Charon, e logo como chefe de grupo, a coordenar uma equipa. Nunca esteve no fundo da cadeia alimentar.

Na Strong Charon, segundo o próprio, é conhecido como senhor dois milhões. É o dinheiro que, diz ele, ajudou outros vigilantes a ganhar em processos judiciais contra os patrões. As contas são do próprio; a alcunha já a ouvimos de outros.

A bem da verdade, a garagem de Hugo Cruz era absolutamente banal. Havia bóias de criança e garrafões arrumados nas laterais, cadeiras encostadas a um canto, pósteres do Futebol Clube do Porto colados às paredes. Tinha uma mesa com ferramentas, claro.

Ficámos sentados em círculo com os cadernos apoiados no joelho. Eu, o Pedro Miguel Santos e o Ricardo Esteves Ribeiro. Fomo-nos revezando para segurar, debruçados, o microfone a um palmo da boca do homem que prometia ser o grande delator da segurança privada, ou whistleblower como se diz agora.

Não há luz natural. O ar circula pouco, até porque Hugo Cruz insiste em fumar durante toda a entrevista. Sim, parece muito um filme. Começámos pelo passado, o exército, contado pelo próprio.

Hugo Cruz: Sou ranger, mesmo, de raiz. Estive foi no Afeganistão, estive em Angola, estive em Timor.
Nuno Viegas: Quantos anos?
Hugo Cruz: Primeiro, em Angola, dois; no Afeganistão, um; e, em Timor, um ano e oito meses.
Nuno Viegas: Depois vens para Portugal quando? Ou sais quando?
Hugo Cruz: Saí em 2009. Em 2009 já tinha 23 anos de serviço e optei por passar à reserva.

Este momento não ajudou particularmente a aliviar os meus nervos. Mas avançámos depois para temas mais confortáveis, menos bélicos. O alvo de Hugo Cruz hoje é o STAD, que integrava desde 2011 ou 2012 (não se lembra bem da data) e em que tinha chegado a delegado sindical.

O ponto de quebra, o que o fez deixar o sindicato, foi o referendo interno à aprovação do Contrato Coletivo de Trabalho entre o STAD e a AES, a entrar em vigor em 2019. Era o primeiro sem a AESIRF, a outra associação patronal. Era este, o da AES, que estabelecia a transmissão de estabelecimento no setor. Os sindicalistas e os patrões que o assinaram garantem que é o documento que mais protege os trabalhadores, que impede o limbo de que temos falado. Mas Hugo Cruz era contra o documento porque, diz, roubava direitos aos trabalhadores, cortava nos subsídios e horas extras, fazia cedências em direitos adquiridos. Vamos analisar isto daqui a pouco.

Para ele, o texto era tão mau que seria impossível ter sido aprovado em plenário, como foi, em outubro de 2018. Hugo Cruz acusa a direção do STAD de roubar essa votação, falsificando os resultados em Lisboa e restringindo quem podia participar nos plenários no Norte.

Hugo Cruz: Houve uma grande revolução aqui no sindicato do Porto, onde eu até queria abandonar e o Paulo Guimarães e muitos outros, dezenas de trabalhadores, não deixaram, agarraram-me, não deixaram, inclusive só não houve agressões dentro do STAD porque eu solicitei, por favor, para que isso não acontecesse, porque sou contra a violência.

Não temos confirmação desta história. Falta-lhe um rasto documental. Na verdade, mesmo pela descrição de Hugo Cruz, o STAD limitou-se a verificar quem era sócio do sindicato antes de os deixar entrar na reunião. E sobre votos roubados em Lisboa, nunca tivemos qualquer explicação sobre como é que isso teria sido feito.

Mas, seja o que for que tenha acontecido, Hugo Cruz deixou o STAD, onde era delegado sindical. Quando falou connosco, aliás, era próximo do Sindicato de Seguranças e Vigilantes de Portugal, o SSVP, um projeto que morreu antes de conseguir legalizar-se. Neste momento, Hugo Cruz apresenta-se como dirigente do SNVSP — Sindicato Nacional dos Vigilantes da Segurança Privada, que ainda está à espera de ser legalizado.

Não vamos entrar em detalhe na história confusa destas organizações, mas é importante, para contextualizar, que se saiba que Hugo Cruz não só é crítico do STAD como se tem mexido para criar outra estrutura sindical que competa com o STAD por espaço.

Mas as outras acusações, as que nos trouxeram aqui, chamam mais à atenção. Hugo Cruz sugere que empresas da AES, a associação patronal de Rogério Alves, que a Strong Charon, o seu patrão, integra, subornam o STAD e compraram as, ou financiaram a compra das, novas sedes do sindicato, em Lisboa e no Porto.

Hugo Cruz: Eu não posso te dar provas concretas disso, mas a maior prova concreta é que tudo que a AES quer, consegue, e o STAD nunca se contrapõe absolutamente em nada.

E foi aqui, ao fim de 54 minutos de entrevista, que percebemos que Hugo Cruz não nos ia dar nada, para além de acusações sem provas.

Ricardo Esteves Ribeiro: É assim: eu não tenho ainda a certeza de que o gajo tenha qualquer documento que seja interessante para nós, sinceramente. Mas acho que ele deve ter alguma coisa.
Pedro Miguel Santos: Há de ter emails, o que ele tem é emails.
Ricardo Esteves Ribeiro: Acho que é um bocado… estar à espera dele, acho que é…
Nuno Viegas: Não podemos ficar à espera dele.
Ricardo Esteves Ribeiro: Acho que devíamos continuar, fazer umas chamadas para ele e não sei que mais...


Ainda assim, houve duas coisas a chamar-nos a atenção. Primeiro, não era só Hugo Cruz: quando puxávamos do assunto outros vigilantes diziam-nos o mesmo, que tinha sido a Strong Charon a comprar as novas sedes do STAD. O rumor estava instalado. E, depois, o triplo negócio, fechado em 2019, foi gerido sem particular transparência.

Rui Tomé, vice-coordenador nacional do STAD. Já o temos ouvido nos últimos episódios.

Rui Tomé: Mudamos de instalações porque o STAD entendeu que as instalações atuais, pela dimensão que o sindicato tem e pelas condições… não quer que elas não fossem dignas, porque são dignas, mas com a aquisição de novas instalações, quer no Porto, quer aqui em Lisboa também, veio proporcionar mais condições aos associados. Portanto, deu mais dignidade aos associados. E se nós pudermos proporcionar melhores condições aos associados, portanto, acho que esse é o caminho certo. E foi exatamente com essa intenção que nós o fizemos.
Nuno Viegas: A sede de Lisboa passou do Cais do Sodré para o Areeiro.
Rui Tomé: Areeiro.
Nuno Viegas: Quanto é que custou o edifício no Areeiro, sabe?
Rui Tomé: Isso é público.
Nuno Viegas: Indicaram, na altura, cerca de 640 mil euros. Mas há uma discrepância que queria verificar consigo.
Rui Tomé: Como vê, você sabia. Você sabia. Como vê, o sindicato é um sindicato transparente.
Ricardo Esteves Ribeiro: [Riso] Estava num panfleto. Arranjamos um panfleto no site.
Nuno Viegas: Encontrámos um panfleto onde, por acaso, era verificado. Faz ideia quanto é que custou a adaptar e a mobilar o espaço?

Rui Tomé: Não temos esses dados e nem sequer está mobilado. Há de chegar a altura.
Nuno Viegas: Muito bem. E em relação à do Porto, também não tem noção do valor, em quanto e que ficou?
Rui Tomé: Não. Não.
Nuno Viegas: Muito bem. E sabe como é que financiaram as duas compras?
Rui Tomé: Isso também é público.
Nuno Viegas: Mas pode responder-me?
Rui Tomé: É público. Veja. Veja.
Nuno Viegas: Pode, por favor, responder-me?
Rui Tomé: Veja. Veja. Veja. Veja o que está escrito publicamente através dos nossos comunicados e veja o que é que está lá escrito.
Nuno Viegas: Rui Tomé, como é que financiaram a compra da sede e da delegação?
Rui Tomé: Eu já lhe disse. Veja as informações. 
Nuno Viegas: Não me disse, está-me a mandar passear. Por favor, responda.
Rui Tomé: Obviamente que através de um empréstimo bancário, como é normal.
Nuno Viegas: Fizeram um empréstimo bancário para as duas?
Rui Tomé: Como é normal.
Nuno Viegas: Fizeram um empréstimo bancário para as duas?
Rui Tomé: Não.
Ricardo Esteves Ribeiro: Para uma delas, é isso?
Rui Tomé: Sim.
Nuno Viegas: Por favor, pode dar-me uma resposta completa e explicar-me as coisas?
Rui Tomé: O sindicato fez a aquisição de duas instalações: uma em Lisboa e outra no Porto. Houve assembleias gerais onde foram tomadas decisões relativas à compra das duas instalações e essas deliberações foram dadas na assembleia geral, portanto, e foram feitas as duas aquisições. É aquilo que eu respondo.
Nuno Viegas: Continua a não me ter respondido.
Rui Tomé: Não lhe respondo mais nada. Sobre isso não lhe respondo a mais nada.
Nuno Viegas: Quem é que comprou a antiga sede nacional do STAD, no Cais do Sodré?
Rui Tomé: Quem é que comprou a antiga sede?
Nuno Viegas: Sim. Venderam a sede que era no Cais do Sodré. Quem é que comprou? 
Rui Tomé: [Riso]
Nuno Viegas: Sabe e não me quer dizer ou não sabe, não se recorda?
Rui Tomé: Sei, mas não vou lhe responder.
Ricardo Esteves Ribeiro: Muito bem.
Nuno Viegas: Pode-me dizer porquê?
Rui Tomé: Porque entendo que não tenho que lhe responder.

Rui Tomé, vice-coordenador do STAD.
Fotografia: STAD

Rui Tomé não nos disse quem comprou a sede do STAD, em Lisboa, nem a quem compraram os edifícios em Lisboa e no Porto. Quando garante que os dados são públicos, aponta para o Relatório de Atividade Sindical, um dossier de capa salmão, produzido anualmente para explicar aos associados o que o sindicato anda a fazer, quais os resultados e como andam as finanças. Pedimos este documento durante duas semanas para preparar a entrevista. O vice-coordenador do STAD deu-nos o relatório no próprio dia, quando chegou à redação. E, enquanto o Ricardo Esteves Ribeiro começava a conversa, eu ia lendo o documento na diagonal. 

Este é um problema comum, aparentemente. O relatório não está disponível online — nem este, nem os de anos anteriores. É preciso ir a uma delegação para ter uma cópia, pelo que nos disse mais do que um sócio do sindicato.

A Strong Charon, implicada por Hugo Cruz no negócio, também não é a entidade mais transparente. A empresa recusou o pedido de entrevista do Fumaça, e nunca respondeu às questões que enviamos por escrito.

É detida pelo Grupo Trivalor, uma Sociedade Gestora de Participações Sociais — ou SGPS — com um portfólio de investimentos centrado em indústrias de serviços. O único acionista de que encontramos registo é João Crisóstomo Silva, um empresário muito pouco mediático, que detém 89,9% da Trivalor. Mas não tem um cargo oficial na estrutura do Grupo. É representado pela filha, Sofia Crisóstomo Silva, na presidência do Conselho Geral e de Supervisão.

Quando digo pouco mediático, é porque, praticamente, não existe em público. Online, encontrei duas notícias com o seu nome. Uma é do Observador, em dezembro de 2014: João Crisóstomo Silva doou quase 26 mil euros à campanha para a reeleição de Aníbal Cavaco Silva como Presidente da República, em 2011 — era o máximo legal. A outra é do Correio da Manhã, em outubro de 2002: o dono do Grupo Trivalor comprou ao Estado o edifício do antigo posto fiscal do Portinho da Arrábida, em Setúbal, por 1 milhão e 110 mil euros. 

O Grupo Trivalor surgiu em 1989 da fusão da Gertal, Ticket Restaurant, Sogenave e ITAU. Desde aí estabeleceu a Cerger, um serviço de catering; comprou a Iberlim, uma empresa de limpezas; lançou a B2B, que faz gestão de contas e de recursos humanos; comprou a Serdial, que tem máquinas de venda automática; fundou a Sinal Mais, que gere outsourcings diversos; investiu na Flexben, para organizar sistemas de incentivos; na FEB, uma empresa de café; adquiriu A Temporária, uma empresa de trabalho temporário; e a VivaMais, que lida com saúde no trabalho.

Na segurança privada comprou a Strong, em 2002, e geriu a fusão da empresa com a Charon, S.O.V., Alarmibérica e Infrasecur. O processo ficou fechado em 2018 com a criação formal da atual Strong Charon.

O Grupo Trivalor tem — como acabámos de ver — interesses vastos. No total, emprega 26 mil pessoas distribuídas por mais de uma dezena de empresas. Portanto, é difícil cobrir todas as figuras do grupo numa investigação, ver uma a uma as ligações possíveis e prováveis entre os funcionários das subsidiárias, os administradores, e a compra e venda das sedes do STAD. Compilámos, mesmo assim, com o maior grau de detalhe que conseguimos, essa lista.

Gastámos dois meses e meio a encontrar as escrituras de venda dos edifícios e a procurar todos os outros envolvidos no negócio. Foi mais difícil do que devia ser, considerando que, por lei, estes documentos são públicos — os serviços do Registo Predial não são particularmente eficientes.

Eis o filme destas vendas, factualmente: a sede histórica do STAD, em Lisboa, no Cais do Sodré, foi vendida ao bar Copenhagen, de António Manuel Gomes Mendes. Pagaram 700 mil euros, a pronto, através de uma locação financeira, um empréstimo, do BCP. O acordo foi mediado pela M2 – Sociedade de Mediação Imobiliária. Não encontrámos ligações entre qualquer uma das pessoas envolvidas neste negócio e qualquer empresa de segurança privada.

A nova sede do STAD, na Rua João de Silva, no Areeiro, foi comprada por 640 mil euros à atual Global Media Group, da TSF e do Diário de Notícias. Tinham lá a redação de algumas revistas do Grupo até há poucos anos, pelas informações que nos deram. O negócio foi mediado por Maria Vargas, consultora imobiliária unipessoal e, novamente, pela M2. Não encontrámos ligações entre qualquer uma das pessoas envolvidas neste negócio e qualquer empresa de segurança privada.

Até aqui, o STAD arrendava o seu escritório no Porto. Comprou a nova sede no Largo da Ramada, Cedofeita, à Maxirent, um fundo de investimento imobiliário, por 186 mil euros, incluindo 70 mil euros num empréstimo do banco Montepio. O negócio foi mediado pela Finiplace. Esta compra deu algum trabalho a destrinçar, porque é difícil saber quem controla a Maxirent, um fundo imobiliário. A Maxirent é gerida pela Refundos, que é uma gestora de fundos de investimento imobiliários. O beneficiário último maioritário da Refundos, através de uma série de holdings e participações dispersas por múltiplas empresas, é a família Queiroz Pereira, do Grupo Semapa, que controla a Navigator e a Secil, duas das maiores empresas industriais do país. E, aqui, também não encontrámos ligações entre qualquer uma das pessoas envolvidas neste negócio e qualquer empresa de segurança privada.

Deixando claro: nunca encontrámos qualquer prova documental de que a AES, a Strong Charon, ou qualquer empresa de segurança privada pagasse fosse o que fosse ao STAD. Nem nos negócios das sedes, nem como avenças. Ninguém nos conseguiu mostrar provas. Só há acusações infundadas e negações veementes de todos os envolvidos.

Rogério Alves, presidente da Associação de Empresas de Segurança
Fotografia: Rogério Alves & Associados

A Strong Charon nunca falou connosco. Já Rogério Alves, presidente da AES, associação que a representa, registou a sua indignação.

Nuno Viegas: Mais do que um vigilante, mais do que um ex-delegado sindical do STAD indicaram que a compra da sede e da delegação sindical do Porto foi financiada diretamente por contribuições de empresas associadas à AES. Portanto, pergunto-lhe: quanto dinheiro é que a AES e as empresas associadas injetaram no STAD?
Rogério Alves: Enfim, presumo que a sua pergunta, que consubstancia um disparate de todo o tamanho...
Nuno Viegas: A pergunta ou a afirmação?
Rogério Alves: A pergunta. Meu amigo, quer dizer, a pergunta faz eco daquilo que lhe disseram. Estou com curiosidade de saber mais coisas dessas. Isso é uma coisa ridícula, pura e simplesmente. Ridícula. E acho que as pessoas não deviam sublimar os seus problemas – disse que é um ex-delegado sindical, não sei se saiu zangado com o sindicato ou o quer que seja – não deviam sublimar os seus problemas espicaçando a imaginação. Isso é uma coisa ridícula, totalmente absurda, que não tem nexo nenhum no que diz respeito à AES. Quer dizer, no que diz respeito à AES. Outras entidades não faço ideia nenhuma.
Pedro Miguel Santos: Nem a empresas da AES?
Rogério Alves: Nem a empresas… Que eu tenha conhecimento não, como é óbvio. Seria uma coisa tão ridícula.
Pedro Miguel Santos: Até nos disseram que quem comprou o mobiliário da nova sede da AES… do STAD, desculpe.
Rogério Alves: Da AES, coitadinha. A AES nem sede tem, que é aqui no meu escritório. Mas diga-me lá, para ver se eu também exijo uma sede.
Pedro Miguel Santos: …quem pagou o novo mobiliário da nova sede do STAD foi a Strong Charon.
Rogério Alves: Mas eu faço-lhe uma sugestão, se me permite. Acho que se deve dirigir à Strong Charon e fazer essa pergunta.
Pedro Miguel Santos: Mas isso sem qualquer tipo de dúvida.
Rogério Alves: Porque isso é uma coisa de grande gravidade e penso que a Strong Charon também estará interessada, neste caso, em ser a Strong Charon a processar essa pessoa, e espero que não tragam aqui no regaço mais deste quiz...
Pedro Miguel Santos: Isto não é um quiz. É porque isto é muito grave.
Rogério Alves: …deste quiz meio aparvalhado, não me leve a mal. Não os meus queridos amigos mas, quer dizer, a imaginação humana também devia ter alguns limites.

Parte II – Bolso

A garagem de Hugo Cruz não foi o nosso primeiro contacto com as teorias conspirativas sobre um conluio entre o STAD e a AES. 

O STAD domina o sindicalismo na segurança privada praticamente desde que há sindicalismo na segurança privada. Em 2019, os gastos do sindicato chegaram perto de 880 mil euros, de acordo com o seu relatório de atividade sindical. 

E, além disso, o STAD diz ter 6000 vigilantes associados. Por essas contas, representa mais de 13% da classe — um em cada 10 seguranças. E está agregado à maior confederação sindical portuguesa, a CGTP Intersindical. Tem o espaço, a plataforma e o estatuto para negociar de igual para igual com os patrões. 

Mas não parece ser isso que está a acontecer. 

Vigilante 1: Fui do STAD, mas aquela situação que vocês sabem, aqui do STAD, que é tudo uma cambada de impostores e de latifundiários – não quer dizer que os outros também não sejam, mas ainda não tenho provas dos outros, não, é?

Vigilante 2: É um sindicato com um funcionamento extremamente antiquado.
Nuno Viegas: O STAD não defende os vigilantes o suficiente?
Vigilante 2: Na minha opinião, não.

Vigilante 3: Eu ainda não vi do STAD, em relação às progressões na carreira, eu não ouvi nada ainda, ninguém fala de nada. Mas era uma coisa que eles deviam bater, porque a segurança privada não tem futuro.

Vigilante 4: O STAD — e isto é uma crítica interna que tenho que fazer — move-se de pessoas que não têm pensamentos próprios. Eu era impossível pertencer à direção do STAD.

Como na ASSP, o sindicato de Rui Brito da Silva, do último episódio, no STAD, a corrupção surgia na boca dos vigilantes como a única forma de justificar os falhanços dos seus representantes sindicais. O problema é este: um vigilante hoje não tem condições laborais substancialmente melhores do que há 30 anos. Os ordenados subiram, claro, sempre um pouco acima do salário mínimo nacional — é esta a grande bandeira de patrões e sindicatos. Mas degradou-se o pagamento de horas noturnas, feriados, fins-de-semana e horas extraordinárias. Houve direitos que, simplesmente, deixaram de existir.

O primeiro Contrato Coletivo de Trabalho de que encontrámos registo entre a AES, a AESIRF e o STAD foi publicado a 29 de janeiro de 1991. Tem 19 páginas de conquistas laborais que parecem ter-se esfumado. O exemplo mais claro são as horas extra. Em 1991, o trabalho suplementar estava “abolido, em princípio” salvo em “casos inteiramente justificáveis (…) mas a título facultativo para o trabalhador”.

Excerto do Contrato Coletivo de Trabalho de 1991, assinado entre a AES e o STAD.

Ou seja, era a empresa que tinha de explicar, cuidadosamente, porque é que precisava mesmo que alguém fizesse umas horas extra, e o vigilante era livre de escolher trabalhar mais ou não. Se ficasse, recebia mais 50% à hora na primeira hora, e 75% nas seguintes. Se fosse das oito da noite às sete da manhã — o chamado trabalho noturno — o aumento era de 100%.

As horas extra eram um direito. Agora, são um dever, e pagam pior, proporcionalmente. Hoje, o trabalho suplementar é obrigatório na segurança privada “salvo quando, havendo motivos atendíveis, [o trabalhador] expressamente solicite a sua dispensa”. Estas horas extra obrigatórias são pagas a 50% durante o dia e 75% à noite. O trabalho noturno já só conta das nove da noite às seis da manhã, já agora — perderam-se duas horas. E, além disso, as horas extras feitas em dias úteis já não contam para o banco de horas, como antigamente.

Isto é a degradação de um dos direitos laborais mais centrais para um segurança privado, porque fazer horas extraordinárias é um dado adquirido para os vigilantes. Os turnos diários são de 10 ou 12 horas, que já não valem o mesmo do que há 30 anos.

Desde 1991, este negócio não parou de crescer. Mas os sindicatos, com o STAD à cabeça, deixaram que um dos pilares da vida dos seus associados fosse sucessivamente fragilizado. E a moeda de troca era regulamente esta: aumentos salariais para descolar a profissão do salário mínimo nacional.

Rui Tomé, vice-coordenador nacional do STAD.

Ricardo Esteves Ribeiro: Isto é incompetência negocial ou é a AES e a AESIRF que têm o STAD no bolso?
Rui Tomé: Bem, agora está a fazer uma insinuação que eu, de facto, não gostei dessa expressão, porque nem a AESIRF, nem a AES, nem ninguém mete o STAD no bolso. O STAD é um sindicato vertical. É um sindicato com princípios, que não se vende a ninguém, e muito menos ao patronato. Aquilo que é possível conquistar pela força também dos trabalhadores, é conquistado. Quando também não há força para conquistar direitos, não há força, não se pode conquistar. Mas o STAD não se vende.
Ricardo Esteves Ribeiro: Portanto nestes casos foram perdidos direitos.
Rui Tomé: Não foram perdidos. A questão do trabalho suplementar
Ricardo Esteves Ribeiro: Passou a ser obrigatório fazer trabalho… suplementar e foi pago menos do que era pago antes. É uma perda, não é?
Rui Tomé: Não. A questão… Nós estamos a fazer uma comparação em 96. Nós estamos em 2019. Estamos em 2019. Portanto, já se passaram muitos anos.
Ricardo Esteves Ribeiro: Mas o Rui estava há pouco a dizer que esses anos todos foram de ganhos de direitos.
Rui Tomé: Pois foram. Pois foram.
Ricardo Esteves Ribeiro: Aqui estou-lhe a dar um caso exatamente contrário.
Rui Tomé: Não. Não foi em contrário.
Ricardo Esteves Ribeiro: Não acha que isto é uma perda de direitos?
Rui Tomé: Não é uma perda de direitos, não senhor.


Não foram só as horas extraordinárias. Quando um trabalhador trocava de empresa, era proibido aplicar período experimental no novo emprego.

Em 1991, quem não tivesse um contrato a termo renovado recebia uma compensação equivalente a dois dias de remuneração por cada mês trabalhado.

Trabalhar em feriados também já não dá direito a uma folga compensatória. As diuturnidades — bónus salariais pagos por cada dois anos de antiguidade — desapareceram do documento.

Depois há as pequenas coisas, aquilo a que nunca tiveram acesso. Seguranças privados não têm hora de almoço. Quando estão numa portaria, ainda podem comer uma sandes. Se não, ficam sem comer. E o STAD, por admissão própria, não tem interesse em mudar isto, nunca exigiu este direito.

Ricardo Esteves Ribeiro: Passadas não sei quantas décadas do STAD a liderar estas negociações, acha que esta próxima negociação do contrato coletivo de trabalho vai ter, finalmente, um horário de almoço para todos os vigilantes?
Rui Tomé: Bem, o contrato prevê que em turnos… Ou melhor, neste setor da segurança privada, horários de oito horas seguidas… Isto, isto… é evidente que nós entendemos que o trabalho não pode ficar oito horas sem sem ter um período para fazer uma refeição. Aliás, está previsto. Está previsto no Código de Trabalho que ao fim de cinco horas o trabalhador tem que ter uma pausa para fazer a sua sua refeição. O trabalhador trabalha oito horas seguidas porque é quase impossível, num setor que tem portarias de 24 horas e que em muitas portarias existe um trabalhador, para que o trabalhador pudesse ter uma hora de intervalo, ou duas horas, como prevê o Código do Trabalho, esse lugar teria que ser ocupado. A pergunta que eu faço é: em milhares de portarias, e milhares de trabalhadores que estão sozinhos na portaria, era exequível haver um trabalhador para substituir cada trabalhador? Não.

Rui Tomé está a apontar um problema real de organização no trabalho. Mas não é, registe-se, inultrapassável. Há milhares de negócios em todo o país abertos à hora de almoço com atendimento ao público e onde os funcionários têm pausas para refeições. Implicaria um aumento de custos para os patrões, sim, mas, geralmente, é isso que significa reforçar direitos laborais.

De qualquer forma, as condições de trabalho atuais dos vigilantes explicam-se, defende o presidente da AES, Rogério Alves, pela sensatez dos sindicatos. Não pediram aos patrões mais do que eles podiam dar.

Nuno Viegas: Com melhorias de condições destas para o lado dos patrões, a AES tem o STAD no bolso, não?
Rogério Alves: Não percebo a sua pergunta. Importa-se de ser um bocadinho mais específico?
Nuno Viegas: Contrato após Contrato Coletivo, desde 1993, as condições laborais pioraram.
Pedro Miguel Santos: O pagamento, a retribuição pela hora…
Rogério Alves: Meu caro, vamos lá ver, vocês adoram essas expressões de “ter o STAD no bolso”. Não sei se vão perguntar ao STAD se sente algibeirado.
Ricardo Esteves Ribeiro: Isso vamos de certeza.
Nuno Viegas: Vamos, vamos. Garantidamente.
Pedro Miguel Santos: Sem dúvida.
Rogério Alves: Vou ficar à espera. Mas acredito em vocês, também, piamente. O que vos vou dizer é o seguinte: essas suas premissas não deveriam conduzir a essa conclusão. Tudo o que o meu amigo disse é verdade, penso eu. Não fui conferir, mas acredito piamente em si. Agora, a conclusão, o desfecho, é um desfecho, na minha opinião, se me permite discordar de si, errado. E mais, não é só errado, é até um bocadinho panfletário. Porque dizer a uma associação patronal que tem um sindicato no bolso não é uma coisa inócua. Não é uma coisa inocente. Sobretudo, estando a falar de um sindicato que é um sindicato poderoso, filiado na Intersindical. Quer dizer, isso é, repare, uma coisa para o STAD até um pouco insultuosa e para nós totalmente despropositada. Portanto, não quereria estar a colocar as coisas dessa maneira, digamos, com um certo marialvismo associativo, porque isso não tem o mínimo de correspondência com a verdade. E, como sabem, neste mais recente Contrato houve algumas cedências de parte a parte para se conseguir uma coisa pela qual também muito nos batemos que foi, grosso modo, um aumento a dois anos de 20%.
Nuno Viegas: Não havia aumentos há 12 anos, Doutor
Rogério Alves: Está bem. Mas a questão… Se isto é ter o STAD no bolso, não percebo. Agora, não havia aumentos há bastante anos. E nós empenhámo-nos…
Nuno Viegas: Foram os primeiros aumentos do seu mandato.
Rogério Alves: Está bem. Mas isso é uma maneira de ver as coisas.
Nuno Viegas: Quando se passa 12 anos sem conseguir um aumento laboral, um aumento de salários, ou há uma grande habilidade negocial da associação empresarial, ou há uma grande subserviência por parte do sindicato.
Rogério Alves: Ou há uma grande realismo de ambas as partes e a constatação [de] que o mercado não suporta esses aumentos. Mas o problema é que muitas vezes o próprio diagnóstico do setor permite fazer um equilíbrio para manter os postos de trabalho num quadro muito recessivo.

Na verdade, não foram 12 anos. Erro nosso. A categoria base já tinha tido um aumento de 27 euros por mês entre 2011 e 2018. Ainda assim, da perda de direitos surge o descontentamento, e do descontentamento, da desconfiança, as acusações como a de Hugo Cruz. Rumores sobre avenças, sobre subornos, sobre corrupção como a única forma lógica de explicar as sucessivas cedências do STAD ao patronato.

Parte III – Autoritarismo

O atual STAD foi fundado a 1 de novembro de 1941 como Sindicato dos Contínuos e Porteiros de Lisboa. Era um grupo com implantação local, mas expressão reduzida a nível nacional.

Durante a ditadura, representava, entre muitos outros, um paquete — ou moço de recados, como se dizia — da fábrica de pneus da Firestone Portuguesa: Carlos Trindade. Depois do 25 de Abril, foi este jovem, com um grupo de estudantes, a trazer a onda revolucionário para o seio do Sindicato dos Contínuos. Nas palavras do próprio STAD, libertaram o sindicato “do jugo corporativo/fascista (…) com o objectivo de conquistarem uma vida melhor”.

Carlos Trindade, presidente da Mesa da Assembleia Geral do STAD e líder histórico do sindicato.
Fotografia: STAD

A 17 de maio de 1974, com 19 anos, Carlos Trindade tomou a liderança do Sindicato dos Contínuos e Porteiros de Lisboa e assumiu a presidência da Mesa da Assembleia Geral da organização. Nunca mais saiu. Está no poder há mais de 46 anos, desde que há democracia em Portugal.

Depois da Revolução, esteve à cabeça da expansão geográfica do coletivo e a sua transformação no Sindicato dos Trabalhadores de Serviços de Portaria, Vigilância, Limpeza, Domésticas e Actividades Diversas — STAD.

Com 66 anos, mestre em História Moderna e Contemporânea pelo ISCTE, Carlos Trindade é hoje dos dirigentes sindicais mais antigos de Portugal. Através do STAD, tornou-se uma das figuras-chave da Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses — a CGTP-Intersindical que agrega alguns dos maiores sindicatos do país.

Entrou para o Conselho Nacional da CGTP em março de 1980; para a Comissão Executiva da CGTP em março de 1993; para a Concertação Social, o Conselho Permanente de Concertação Social e o Conselho Económico e Social em 2002; e para o Comité Económico e Social Europeu em 2011. Saiu da direção da CGTP a 16 de fevereiro de 2020, quando atingiu o limite de idade definido pelos estatutos da intersindical, 65 anos. Era, na altura, a pessoa há mais tempo na direção da CGTP.

Na CGTP, Carlos Trindade está na oposição. A Intersindical é, historicamente, próxima do Partido Comunista Português. Até hoje, todos os dirigentes máximos da CGTP foram militantes do PCP. Já Carlos Trindade está na Comissão Política Nacional do Partido Socialista. Já foi candidato do PS à Assembleia da República, nunca eleito. Na CGTP, é secretário-geral da Corrente Sindical Socialista e uma das vozes dissidentes da direção da Intersindical, particularmente, por estes dias, quando esta faz críticas ao Governo de António Costa ou ataques cerrados ao capitalismo.

O STAD é um bastião do PS no seio de uma CGTP comunista. O que não quer dizer que os responsáveis do sindicato o admitam. Pedimos uma entrevista a Carlos Trindade, mas o atual presidente da Mesa da Assembleia Geral do STAD e líder histórico do sindicato achou mais apropriado que a conversa fosse com Rui Tomé, o vice-coordenador nacional, com o pelouro da segurança privada, que ouvimos há pouco.

Ricardo Esteves Ribeiro: Que influência é que tem o PS no STAD?
Rui Tomé: [Riso] Não tem influência nenhuma, e vou-lhe dizer porquê. O sindicato, seja o presidente da Assembleia Geral, seja um outro dirigente… Nós, no sindicato, daquela porta para dentro há um partido único, que são os trabalhadores. Daquela porta para fora, seja dirigentes, seja trabalhadores, cada um tem a livre escolha, quer politicamente, quer ideologicamente, quer desportivamente, quer religiosamente de tomar as posições que entender. E, neste caso, há sócios que são, que são militantes de vários partidos…
Ricardo Esteves Ribeiro: O Rui é militante do PS?
Rui Tomé: …e até da Direita. E não é por isso que vão ser tratados de forma diferente. Portanto
Nuno Viegas: O Rui é militante do PS?
Rui Tomé: Não, eu não sou militante. Nem do PS nem de nenhum partido.
Nuno Viegas: Quantas pessoas da direção do STAD é que são militantes do PS?
Rui Tomé: Faço-lhe a pergunta de outra forma: que interesse é que isso tem para entrevista?


Os sindicatos são estruturas políticas, mas não podem ser organismos partidários. E, no entanto, é óbvio, e está documentado, que há influência e interferência dos partidos políticos na gestão do sindicalismo português. Rui Tomé está a dar uma resposta ensaiada.

Vamos a um exemplo prático. Na tarde em que falámos com Hugo Cruz na sua garagem, quando nos prometeu documentos que nunca nos chegou a dar, marcámos uma outra entrevista, quase por acaso, para as onze da noite, com outro antigo delegado sindical do STAD, outro segurança privado com queixas sobre o funcionamento do maior sindicato do setor. A única pessoa em toda esta investigação que nos pediu anonimato.

Falámos com ele durante três horas, no seu posto, enquanto acabava o turno. No fim, já de madrugada e cheios de fome, acabámos numa fila de dezenas de carros para comprar hambúrgueres no drive-thru do McDonalds mais próximo — o que é tão desapontante como soa. Comemos na sala dele, e foi aí que conseguimos algo que nos permitisse ouvi-lo sem o identificar: documentos que comprovavam toda a história que nos contou.

Ex. delegado sindical do STAD: Quando se sentiu que havia contestação interna, até junto de mesmo alguns delegados que faziam contestação interna dentro do STAD, começou-se a perceber… uma pessoa começa a conhecer este, começa a conhecer aquele… Porque é que nós não conseguimos desenvolver, digamos, um processo destes, não é? E formou-se uma lista – não é? – para tomar, digamos, de assalto o STAD.
Pedro Miguel Santos: Assalto democrático?
Ex. delegado sindical do STAD: Assalto democrático, claro. Assalto democrático. Mas o STAD teve uma postura miserável, podemos dizer.

É aqui que se torna interessante a proximidade do STAD com o PS. Só encontrámos registo de um desafio eleitoral à direção de Carlos Trindade e o STAD nunca nos indicou outros. Em 2016, a ala comunista do STAD reuniu-se para formar uma lista. Os aliados do PCP tentaram afastar democraticamente a mão do PS no sindicato.

Eis a história. No final de 2015, um grupo de associados do STAD lançou uma candidatura à direção do sindicato, opondo-se à lista encabeçada por Carlos Trindade, presidente em funções da Assembleia Geral e, à data, também Coordenador Nacional. A lista, numa declaração ideológica muito óbvia, chamava-se “Lista por um sindicalismo de classe, em unidade na defesa dos direitos — devolver o sindicato aos trabalhadores”.

As eleições estavam marcadas para a última semana de janeiro de 2016. Em quase todas as eleições democráticas são precisas, pelo menos, duas coisas para concorrer: uma lista com as pessoas candidatas a cada cargo ou a cada órgão e um número mínimo de subscritores, pessoas que assinam um papel a dizer que querem que aquela lista se candidate. É o filtro básico para que ninguém concorra e receba só um voto ou dois. No STAD, o mínimo são duzentas assinaturas.

A lista de oposição entregou, a 22 de dezembro, dentro dos prazos, duzentas e quinze assinaturas — as necessárias para formalizar a candidatura e ir a votos.

A 29 de dezembro, a Mesa da Assembleia Geral do STAD — a MAG — indicou que a candidatura era inadmissível por não ter assinaturas válidas suficientes. Dos 215 subscritores, a MAG eliminou 96, incluindo cinco candidatos — foi quase metade. Desses, um terço caiu por não ter as quotas em dia; outros 30% foram eliminados porque eram ao mesmo tempo candidatos e subscritores da lista; o resto foi recusado por uma série de incorreções formais, como terem a entidade empregadora desatualizada ou terem escrito mal o número de associado.

Excerto da decisão da Mesa da Assembleia Geral do STAD, recusando a lista candidata às eleições de 2016.

A Mesa da Assembleia Geral, presidida por Carlos Trindade, deu três dias à candidatura para regularizar as assinaturas. Tinham 31 de dezembro, 1 e 2 de janeiro. E, durante a festa de passagem de ano e o feriado de ano novo, corrigiram erros burocráticos desistiram de alguns nomes, juntaram 70 novos subscritores e enviaram tudo de novo para formalizar a candidatura dentro dos tempos exigidos pela MAG.

E, ainda assim, a candidatura foi recusada porque uma lista não pode apresentar novos subscritores fora do prazo de apresentação de candidaturas, de acordo com a Mesa da Assembleia Geral.

Deixando isto claro: a Mesa da Assembleia Geral do STAD, que é encabeçada por Carlos Trindade, eliminou metade das assinaturas de uma lista de oposição e deu um prazo para se corrigirem os problemas, sabendo que não ia aceitar novas assinaturas que respondessem às suas exigências, mesmo que os candidatos as conseguissem reunir durante o ano novo. E fez tudo isto obedecendo aos estatutos.

Nesta altura, nos finais de 2015 para 2016, Carlos Trindade tinha dois cargos no STAD: era presidente da Mesa da Assembleia Geral e, simultaneamente, coordenador nacional do sindicato. A MAG é eleita diretamente pelos sócios de quatro em quatro anos, com os restantes órgãos sociais — Direção Nacional e o Conselho Fiscalizador. É a MAG que supervisiona o processo eleitoral e o órgão máximo de decisão no seio do STAD: a assembleia plenária, em que podem participar todos os associados. Já o coordenador nacional, que tem funções executivas, de gestão dia-a-dia, é nomeado de entre os membros da Direção Nacional, em que o presidente da MAG tem assento, apesar de sem direito de voto. E, desde 1974, a Direção Nacional é constituída sempre por membros de uma lista que inclui Carlos Trindade.

E, além disto, nas eleições de 2016, o líder do STAD era novamente candidato a presidente da MAG, nas eleições que o próprio supervisionava. E o que fez Carlos Trindade, presidente da MAG, foi eliminar a única lista que podia colocar em causa alguma da sua influência e até a sua reeleição para a MAG.

Pensemos nisto assim — e esta caricatura é algo grosseira, admito: fosse ele político, e estaria a acumular muitas das funções de Primeiro-Ministro, Presidente da República, Presidente da Assembleia da República, e Presidente da Comissão Nacional de Eleições. Se parece um conflito de interesses é por que o é.

Voltemos ao ex-delegado sindical que estava na lista de oposição, a que caiu.

Ex. delegado sindical do STAD: Todo esse processo, digamos, continuou, pedimos ao juiz… Metemos uma providência cautelar e o juiz diz que nós tínhamos de meter um processo judicial, mas no dia 5 de janeiro já estava os documentos do STAD na rua, não é? Lista A e tudo, com as caras deles e tudo. Ou seja, todo aquele processo já estava feito, já não estavam a contar connosco. Tudo saiu.

É por isto que sabemos os detalhes da história. A lista chumbada desafiou as eleições em tribunal. Temos as versões dos dois lados. E os factos são claros. Eis mais uma coisa clara: a primeira recusa da MAG, a 29 de dezembro de 2015, quando elimina metade dos subscritores da lista, está sustentada em bases muito frágeis.

Trinta e duas assinaturas caíram por não terem as quotas em dia. Há um problema: o STAD não consegue afirmar com certeza que tem os cadernos eleitorais em dia, porque não sabe bem quem é que anda a pagar as quotas em cada momento. Cito: há “algum atraso no conhecimento na sede do STAD do pagamento de quotizações” e “o lançamento contabilístico é feito com periodicidade o que provoca em alguns casos que não seja imediato”. 

O que isto quer dizer é que há atrasos no envio de documentos das empresas e no cruzamento de dados entre delegações. Os cadernos eleitorais, por admissão do STAD, estão desatualizados e nem sempre correspondem à realidade.

Rui Tomé vice-coordenador nacional.

Ricardo Esteves Ribeiro: Isto demonstra que a MAG e a direção não têm tido capacidade para gerir de forma responsável este processo eleitoral, não concorda?
Rui Tomé: Não. Não. Nem vejo como é que é que você chega a essa conclusão.
Ricardo Esteves Ribeiro: Portanto, a MAG diz é possível que haja um desfasamento. Que haja pessoas que até já pagaram mas “nós, contabilisticamente, ainda não recebemos o dinheiro, portanto, não sabemos se já pagaram, e essas pessoas ficam de fora”.
Rui Tomé: Aquilo que
Ricardo Esteves Ribeiro: E depois eles não podem ser subscritores. Por isso é que lhe estou a dizer: não acha que é a direção e a Mesa da Assembleia Geral a não ter capacidade para, na verdade, gerir este processo?
Rui Tomé: Todo todo todo este processo foi conduzido de forma transparente...
Ricardo Esteves Ribeiro: Em que sentido é que diz isso?
Rui Tomé: … e, não estando cumprido o que… não estando cumprido o que está previsto nos respectivos estatutos, a Assembleia Geral, através do seu presidente, teve toda legitimidade para considerar que a lista não reunia e não cumpria com tudo o que estava previsto nos estatutos e, legitimamente, tomou a decisão que tinha que tomar.


Só as pessoas que foram eliminadas porque o STAD não sabia se tinham pago quotas chegavam para fazer cair a lista. Mas a MAG não ficou por aí. Trinta e três assinaturas caíram por serem de candidatos. Pessoas que faziam parte da lista e eram, ao mesmo tempo, subscritoras. A Mesa da Assembleia Geral do STAD diz que isto é ilegal. Ou bem que são candidatos ou bem que são subscritores.

Já o regulamento eleitoral do STAD discorda. Artigo 6, ponto 4: “Os candidatos subscritores da candidatura serão identificados pelo nome completo legível, assinatura, número de associado e empresa onde trabalham”. É previsto, especificamente, como é que os candidatos subscrevem a própria lista.

O argumento era este: volto a citar a defesa do STAD, escrita no acórdão: “existia um erro de escrita no art. 6.º, ponto 4, do Regulamento Eleitoral STAD”. Fim de citação. Onde se lia candidatos subscritores, deveria ler-se apenas candidatos. A Mesa da Assembleia Geral mudou as regras em pleno ato eleitoral.

Excerto da decisão da Mesa da Assembleia do STAD, explicando que existia “um erro de escrita” no Regulamento Eleitoral.

Só depois da lista opositora ter contestado a decisão é que acabou por aceitar essas 33 assinaturas, apesar de insistir que tinha tomado a decisão correta, estatutariamente, da primeira vez. Recuou sabendo que não fazia diferença, não chegava, ia chumbar a lista na mesma. E, Carlos Trindade, como presidente da MAG, travou a única lista que o tentava destronar.

Apesar disto, tanto quanto temos registo, o Regulamento Eleitoral do STAD ainda não foi alterado. Em janeiro de 2016, a lista de Carlos Trindade concorreu sozinha e ganhou. 

Ex. delegado sindical do STAD: Nós denunciámos – não é? – durante o mês de janeiro — as eleições foram em janeiro — denunciámos com documentos, dissemos que eram as eleições do faz de conta, não sei quantos, continuamos a fazer o trabalho, à espera que o juiz nos…
Pedro Miguel Santos: Foste votar?
Ex. delegado sindical do STAD: Não, não. Apelámos à abstenção como protesto. Eles tiveram muitos postos em que eu sei que saíram de lá de mãos vazias.


O acórdão final neste processo foi decidido a 6 de julho de 2017. Um ano e meio depois das eleições. Os juízes consideraram que não tinham competência para intervir e que a lista deveria ter procurado apelar o caso internamente antes de recorrer aos tribunais, respeitando os princípios de auto-regulação sindical. Deviam ter pegado nas assinaturas e convocado uma Assembleia Geral, ou apelado ao Conselho Fiscalizador. Não podia ser um juiz da Relação de Lisboa a decidir sobre a vida interna de um sindicato.

Ex. delegado sindical do STAD: O juiz, no meio daquilo tudo, com pressões ou sem pressões, não sei, responde-nos assim: “Não meto nisto, vocês pegavam nas assinaturas e convocavam uma Assembleia Geral. Era o que vocês deveriam ter feito”. Mas isso passado dois anos e meio. O juiz nunca deu razão ao STAD, nunca deu-nos razão a nós. Disse isto, “vocês pegavam nas assinaturas e vocês deveriam ter convocado uma Assembleia Geral”.
Ricardo Esteves Ribeiro: E, entretanto, eles fizeram eleições.
Nuno Viegas: E foram eleitos.
Ex. delegado sindical do STAD: E foram eleitos. E continuaram, e andam aí.
Ricardo Esteves Ribeiro: Com que percentagem?
Ex. delegado sindical do STAD: Isso até podia ser com um voto, ganhavam. São só uns. Podia ser só o Trindade a votar.


O tribunal nunca, em momento algum, dá razão a qualquer um dos lados. O caso caiu, portanto, tecnicamente, a oposição perdeu o processo. Mas não por a lista ter sido eliminada de forma democrática. Só porque reclamaram da maneira errada. Mas não é isso que a direção do STAD tenta fazer passar, ou pelo menos Rui Tomé.

Ricardo Esteves Ribeiro: Mas nunca houve uma lista concorrente à sua?
Rui Tomé: Houve, houve.
Ricardo Esteves Ribeiro: Quando?
Rui Tomé: Nas ultimas eleições.
Ricardo Esteves Ribeiro: Não as deste ano. Em 2016.
Rui Tomé: Houve uma lista que concorreu mas que não, portanto, não reuniu os requisitos para avançar com a sua candidatura.
Nuno Viegas: No que é que falharam os requisitos?
Rui Tomé: Agora não me recorda aqui, mas há vários… Foi para tribunal e o tribunal, portanto, julgou que, de facto, não estavam reunidos os requisitos e, como tal, ficou…
Ricardo Esteves Ribeiro: O tribunal não disse isso.
Nuno Viegas: O tribunal nunca disse isso.
Ricardo Esteves Ribeiro: O tribunal o que disse foi que não tinha competência para avaliar o caso e que era um caso que tinha de ser avaliado pela Mesa da Assembleia Geral. Mas o tribunal nunca disse que não…
Rui Tomé: Então, mas se foi metida uma ação em tribunal
Ricardo Esteves Ribeiro: Para a impugnação das eleições. 
Rui Tomé: Sim, e o tribunal é… Então, exatamente.
Nuno Viegas: Não, o tribunal disse que não tinha competência para decidir. O tribunal nunca tomou uma decisão.
Ricardo Esteves Ribeiro: Não era caso para avaliar. Tinha tinha que ser a Mesa da Assembleia Geral.
Rui Tomé: Se o tribunal tomou essa decisão que não tinha competência e a Mesa da Assembleia Geral, cumprindo exatamente os estatutos...

Carlos Trindade continua a presidir à Mesa da Assembleia Geral do STAD em 2021 como em 1974. Já a coordenação nacional passou, em 2016, para as mãos de Vivalda Silva até aí vice-coordenadora com o pelouro da limpeza. Mantiveram ambos os cargos depois das eleições mais recentes, em março de 2020.

A Constituição da República Portuguesa obriga um sindicato a reger-se por princípios democráticos. O que este caso e os documentos que o explicam parecem demonstrar é que o STAD é governado como uma monarquia.

E isto importa porque, quando um sindicato se torna anti-democrático é, por um lado, um sindicato ilegal e, por outro, um mau representante dos direitos dos trabalhadores. 

E as tendências antidemocráticas não se vêem só na supressão de listas opositoras. Vêem-se também quando Rui Tomé diz, sem qualquer base legal, no segundo episódio, que Paulo Guimarães não podia ter convocado uma manifestação em frente às Infraestruturas de Portugal por causa da transmissão de estabelecimento, que não tinha legitimidade.

Talvez seja isto que explica a falta de interesse dos vigilantes no seu maior sindicato. Em 2019, os dados mais recentes a que temos acesso, houve apenas 53 plenários organizados pelo STAD na segurança privada. Nestas reuniões feitas entre trabalhadores e delegados sindicais para discutir as condições laborais numa empresa, havia uma média de oito pessoas.

O STAD diz ter 15 mil associados. Pelo que Rui Tomé nos disse, 6 mil são seguranças privados. A vasta maioria dos outros 9 mil trabalham no setor das limpezas. É uma vez e meia mais. Mas houve 10 vezes mais plenários no setor da limpeza do que na vigilância. Os delegados sindicais organizaram 556 reuniões com 12 profissionais cada, em média. Há menos participação e menos interesse na segurança privada.

Uma nota sobre este número de sócios, já agora. O STAD diz ter 15 mil trabalhadores inscritos. É esse número que temos usado e é esse número que passa na imprensa.

Mas, nas eleições de 2020 para os órgãos sociais, só havia 9 mil pessoas com as quotas pagas no STAD, logo, com capacidade para votar. 

Rui Tomé: Mas esses números não refletem, portanto, o número de sócios pagantes, porque os sócios para poderem votar têm, na altura, têm que ter três meses de quotas pagas. Portanto, nessa altura pode haver, portanto, algumas centenas de sócios que não tenham os tais três meses
Ricardo Esteves Ribeiro: Mas não hão de ser milhares, não é?
Rui Tomé: …e não vão poder pagar, não vão poder, obviamente, votar. 

Rui Tomé, vice-coordenador nacional do STAD, está a usar a mesma lógica que o presidente da ASSP, Rui Brito da Silva, usou para justificar um número falso de membros no último episódio. Tal como a ASSP não tinha 500 associados, mas 150 sócios pagantes, o STAD não tem 15 mil membros em pleno direito, mas 9 mil.

Pegando nesses 9 mil — os sócios reais — há mais uma conta fácil. Em 2020, menos de 17% foram às urnas: 1500 pessoas. Mas, após discutirmos tudo isto, Rui Tomé na direção há três mandatos, não gosta de que se fale numa monarquia.

Nuno Viegas: Mas diga-me uma coisa: quando é que foi a última vez que houve duas listas a irem a votos, no STAD, a chegarem mesmo às urnas?
Rui Tomé: Que eu me recorde, não. Nunca houve duas listas. Tirando os últimos quatro anos, que foi a que acabou por ficar por fora, não me recordo que tenha havido...
Ricardo Esteves Ribeiro: Portanto, a única vez em que isso aconteceu, o STAD ganhou na secretaria.
Nuno Viegas: O STAD não. Carlos Trindade ganhou na secretaria.
Rui Tomé: Eu agradeço que vocês não façam esse tipo de comentários. Não. Não. Não. Não. Não me parece correto. E se vocês continuarem com este tipo de insinuações, eu dou por terminada a minha entrevista. Porque eu acho que, sendo o STAD convidado para uma entrevista, o que me parece é que vocês estão a fazer um interrogatório e as insinuações que vocês estão aqui a fazer, estarem aqui a conectar o sindicato com o PS, essa consideração que você fez do Carlos Trindade, não me parece correto da vossa parte tendo aqui o STAD como vosso convidado, que vocês estejam a fazer este tipo de insinuações.
Nuno Viegas: Nós estamos a colocar as questões que são levantadas dentro do setor.
Rui Tomé: Colocar é uma coisa. Colocar é uma coisa, e vocês têm toda a legitimidade para colocar. E o STAD responderá ou não responderá, conforme aquilo que entendermos.
Ricardo Esteves Ribeiro: Isso está sempre no seu direito de não responder.
Nuno Viegas: Então, colocando-lhe outra questão: durante esta investigação, falámos com vários ex-delegados sindicais do STAD que acusam o sindicato de reprimir a oposição interna e de colocar de lado quem tinha posições contrárias à direção. Quem não segue a linha de quem manda no sindicato é afastado?
Rui Tomé: Eu nem sequer, eu nem sequer vou comentar essa afirmação.
Ricardo Esteves Ribeiro: É uma pergunta.
Rui Tomé: Não sei de quem você está a falar, que delegado é que fez essas afirmações. Aquilo que eu lhe posso dizer, e disse isso aqui várias vezes: o sindicato é um sindicato onde existe democracia. Todos os delegados e dirigentes têm direito à sua opinião. Ninguém é censurado e, como tal, quem fez essas afirmações não sei quem foi, aquilo que posso dizer é que, por parte do STAD, essas insinuações são falsas. Não sei quem as fez. E, repito: dentro do sindicato há liberdade de pensamento, há liberdade de expressão, há liberdade de opinião e não há censura dentro do sindicato. Aliás, se houvesse censura, alguma coisa estava errada.

O que acontece no interior do STAD não afeta só os 6 mil seguranças que Rui Tomé diz pertencerem ao sindicato. Toda a classe, 45 mil pessoas, joga, há décadas, por regras definidas, em grande parte, pela mão do STAD.

E quando o sindicato histórico do sistema falha, quando deixa os seguranças a sentirem-se abandonados e mal representados, abre-se espaço para abusos. E as tendências antidemocráticas das lideranças do STAD abrem espaço para que seguranças desapontados não procurem mudar as instituições que existem, mas criar novos sindicatos, estruturas como a ASSP, de Rui Brito da Silva.

Mas há outro lado da moeda, algo em que o STAD tem sido fundamental para os seguranças: presta apoio jurídico. Em 2019 ,os advogados do sindicato ajudaram os sócios a conquistar quase 390 mil euros em indemnizações pagas pelos patrões por violarem direitos laborais. É muito, mas menos do que no ano anterior: quase 620 mil euros, em 2018. Estes dados incluem o setor da limpeza, para além da segurança. Pedimos separados. Não nos deram. Mesmo assim, mostra o impacto que o STAD tem. 

O valor é alto porque, neste setor, quase toda a gente leva o patrão a tribunal. Seja por falharem pagamentos ou perpetuarem campanhas de bullying laboral contra os funcionários. No fim — e é daqui que vem grande parte do dinheiro recebido — tendem a assinar acordos extrajudiciais por uma fração do que lhes é devido. Das empresas, poucas chegam a pagar multas.

No próximo episódio, vamos às consequências: o faroeste da segurança privada.

FIM

NOTA I: CONTRATAÇÃO COLETIVA 

Depois da gravação deste episódio houve mudanças nas leis que regem a vida laboral dos vigilantes. Foi publicada, a 29 de janeiro, a revisão de vários Contratos Coletivos de Trabalho entre a AES e os sindicatos, entre os quais o STAD. O que mudou?

Os salários base de vigilantes aumentaram. Desde 1 de janeiro deste ano recebem mais 3,98€ por mês do que no final do ano passado. Em janeiro de 2022, passarão a receber 812,17€, mais 12€ por mês. É um aumento total de 15,98€ por mês em dois anos.

Recomeça o pagamento dos feriados a 100% (em 2018 e 2019, o valor foi cortado para metade), o trabalho suplementar diurno volta a ser pago a 50% (nos dois anos anteriores era apenas a 37,5%), e há ligeiros aumentos noutros subsídios. 

Mas ainda não é desta que seguranças terão horário de almoço consagrado no seu Contrato Coletivo de Trabalho. Ainda assim, tiveram um aumento de quatro cêntimos no subsídio de refeição. 

No acordo que sindicatos e patrões fizeram, a paz laboral parece acordada até 2023. E há pouca margem negocial para mais conquistas para os vigilantes nos próximos dois anos. As alterações que entraram em vigor valem até 31 de dezembro de 2022. Vários dos abonos e subsídios serão atualizados apenas de acordo com a inflação, em janeiro do próximo ano, sem qualquer negociação. 

NOTA II: ALTERAÇÕES À LEI QUE REGULA A TRANSMISSÃO DE ESTABELECIMENTO

Desde 2019, uma discórdia sobre como ler a cláusula da transmissão de estabelecimento do Código do Trabalho, sobre a qual falámos durante os primeiros episódios desta série, deixou milhares de seguranças privados num limbo legal, sem emprego ou sem direitos laborais. Depois de anos de luta dos trabalhadores da vigilância, o Parlamento respondeu na passada quinta-feira, 11 de fevereiro: foi aprovada uma nova forma de interpretar a Lei. 

Os partidos de esquerda já se tinham entendido para um texto comum na Comissão de Trabalho mas, agora, em plenário, PS, BE, PCP, PEV, PAN e as deputadas não inscritas Joacine Katar Moreira e Cristina Rodrigues votaram favoravelmente uma alteração ao Código do Trabalho onde fica claro que sempre que um contrato de prestação de serviços de muda de mãos, os trabalhadores mantêm o seu posto e todos os seus direitos. Seja no setor público ou no privado. Com menção específica aos serviços de vigilância, alimentação, limpeza ou transportes. PSD, CDS, Chega e IL abstiveram-se. 

No segundo episódio de “Exército de Precários” falámos com as vítimas desta discórdia entre patrões e sindicatos: vigilantes como Paulo Guimarães, nas Infraestruturas de Portugal,  Sofia Figueiredo, na ACT, ou Isilda Santos, no Tribunal de Almada. No terceiro, seguimos a negociação  política para a alteração da lei, desde o início, questionando juristas e legisladores. 

As alterações agora introduzidas no Código do Trabalho aplicam-se a concursos públicos em curso já este ano de 2021, incluindo os já adjudicados. Agora, só falta a promulgação pelo Presidente da República para que a legislação entre em vigor. 


“Monarquia” é o episódio seis da série “Exército de Precários”. 


As pessoas que fazem parte da comunidade Fumaça vão receber mais cedo os dois últimos episódios desta série e ainda um conjunto de entrevistas “extra”: conversas aprofundadas com algumas das personagens centrais da história. Com este sexto episódio podem escutar a entrevista que fizemos a Rui Tomé, dirigente do STAD, o maior e mais antigo sindicato da segurança privada. Rui Tomé é vice-coordenador nacional e trata dos assuntos laborais dos vigilantes. Nesta conversa, falamos sobre o que tem feito o sindicato para defender os trabalhadores e, ainda, sobre os mecanismos de democracia interna no seio desta organização.

Se queres ouvir esta e outras entrevistas e receber mais cedo os episódios finais desta série, faz uma contribuição recorrente em fumaca.pt/contribuir, ajudando o Fumaça a ser o primeiro projeto de jornalismo totalmente financiado pelas pessoas.

Este episódio foi escrito pelo Nuno Viegas, que fez também a investigação e reportagem desta série com o Ricardo Esteves Ribeiro e comigo, Pedro Miguel Santos. Eu e o Ricardo fizemos a edição e o fact checking.
O Bernardo Afonso também participou nas discussões de verificação de factos e fez, ainda, a edição de som, o sound design, e compôs, interpretou e misturou a banda sonora original.

A Joana Batista criou a imagem, a Maria Almeida fez a estratégia de marketing e a Sofia Rocha e o Tomás Pinho implementaram a página online. Passem por lá para ver as ilustrações, a transcrição de todos os episódios e documentação que ajuda a aprofundar o que ouviram hoje.

A Margarida David Cardoso participou nas sessões de edição coletiva de todos os episódios desta série.
Fazem ainda parte da equipa Fumaça: Danilo Thomaz e Mo Tafech.

Com o apoio:

A série “Exército de Precários” foi realizada com o apoio de bolsas de investigação jornalística atribuídas pela Fundação Calouste Gulbenkian (2018) e Fundação Rosa Luxemburgo (2020). Os contratos podem ser consultados em www.fumaca.pt/sobre.

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