Segurança Privada: Exército de Precários (2/8)

Purgatório

Este é o segundo episódio da série “Exército de Precários“. As pessoas da comunidade Fumaça já podem ouvir os quatro episódios iniciais e, ainda, um conjunto de entrevistas extra, exclusivas, com algumas das personagens centrais da história. Se também queres ter acesso, faz uma contribuição recorrente aqui.

Esta reportagem foi escrita, produzida e editada para ser ouvida com auscultadores ou auriculares. O que se segue abaixo é a transcrição integral de toda a peça áudio.

Introdução

Paulo Guimarães: Excelentíssimos Senhores Jornalistas,
Informamos que dia 17 Fevereiro pelas 10 horas será realizada uma manifestação, realizada pelos vigilantes da Empresa Segurança Privada PSG, em frente às Infraestruturas de Portugal, situadas no Freixo ( Avenida de Paiva Couceiro, 4300 Porto).
O objetivo da manifestação será denunciar à comunicação social todos os atropelos à lei que os vigilantes têm sofrido por esta entidade patronal.

17 de fevereiro calhava a uma segunda-feira. Este email chegou-nos três dias antes, a 14 de fevereiro, dia dos namorados, pouco depois das duas da tarde. A mensagem, de um endereço desconhecido injustiç[email protected], foi enviada para o Fumaça e algumas outras redações.

Paulo Guimarães: (…) Porque consideramos demasiado grave o que está a acontecer, gostaríamos de contar com a vossa presença.

O Ricardo Esteves Ribeiro apanhou o comboio e foi lá ter.

Paulo Guimarães: (…) Com os melhores cumprimentos. Os lesados da PSG.

No fim desta mensagem vinha o contacto telefónico de um segurança privado, Paulo Guimarães. É ele que está a ler.

Ricardo Esteves Ribeiro: Eu nem sequer avisei que ia. Portanto, na prática, o que aconteceu foi que eu cheguei cheguei à estação, à praça de táxis à porta da estação e liguei para o Paulo: “Daqui fala o Ricardo, do Fumaça. Vocês mandaram-nos um email e eu cheguei agora ao porto. Vou aí ter”. Pah, e o que eu ouvi do outro lado foi uma pessoas que tinha acabado de ter a melhor notícia do dia.

Fala o próprio Ricardo Esteves Ribeiro, do Fumaça.

Ricardo Esteves Ribeiro: E ele disse: “Ai Ricardo, ainda bem, ainda bem”. Provavelmente porque, naquela altura, não estava lá nenhum jornalista. E eu cheguei à praça de táxis, apanhei um táxi para lá, disse-lhe onde é que era, e quando chegámos lá – estávamos a passar na rua, aquilo é ao pé do rio – ele para e diz qualquer coisa do género ‘não sei bem onde é que é’. E eu disse: “Ah, mas deve ser aqui, aqui à frente da IP”. E eu digo: “Olha, estão ali as pessoas”. E ele diz: “Mas era para isto que vinha?” E eu: “Sim”. Então, acho que o motorista não estava à espera de que estivesse tão pouca gente.

Manifestação de seguranças em frente à sede da empresa pública Infraestruturas de Portugal, na Avenida Paiva Couceiro, no Porto, a 17 de fevereiro de 2020.
Fotografia: Lesados da PSG

Há cerca de 30 seguranças privados na Avenida Paiva Couceiro. Estão à frente da sede das Infraestruturas de Portugal, no Porto, a IP. A Infraestruturas de Portugal é responsável pela gestão de 2 mil e 500 quilómetros de linhas ferroviárias, 500 estações de comboio e 15 mil quilómetros de estradas, pontes e túneis em todo o país. Os transportes terrestres em Portugal movem-se nos caminhos da IP. A empresa pública nasceu, em 2015, da fusão da Rede Ferroviária Nacional, a REFER, e a Estradas de Portugal, ou EP, mesmo no fim do primeiro mandato de Pedro Passos Coelho.

Ricardo Esteves Ribeiro: Não era muita gente e não só não era muita gente como não faziam barulho nenhum. Só estavam à conversa. Era como se fosse um grupo de amigos que se lembrou de ir pescar, todos juntos, e estavam ali à conversa. Podiam estar perfeitamente ali a pescar. Liguei ao Paulo, porque não fazia ideia quem era, e queria ir lá falar com ele e vi que estava a atender o telemóvel, então fui ter com ele.

Ricardo Esteves Ribeiro: Ah, Paulo. Tudo bem?
Paulo Guimarães: Ricardo, dê-me só um minutinho, está bem? Que nós estamos aqui mesmo aflitos. Está bem? Só um minutinho.
Ricardo Esteves Ribeiro: Claro que sim. Eu vou estar por aqui. Vou falar com algumas pessoas. Até já.

Paulo Guimarães é magro, tem o cabelo grisalho, está sempre bem penteado e de barba feita. Tem panache. Neste dia, vestido com um casacão azul escuro, coordena as operações. É ele que vai organizando as visitas da comunicação social e de políticos. Há poucos jornalistas. Dos partidos, veio à manifestação um deputado do Bloco de Esquerda e dois representantes do PCP. Os vigilantes seguram cartazes A3, impressos com letras pretas.

Paulo Guimarães teve direito a alguns minutos do telejornal da RTP, à hora de almoço. Enquanto fala, os vigilantes amontoam-se ao fundo do plano. Tentam disfarçar o riso. Vão-se empurrando mutuamente para a primeira fila. Depois deu-nos uma entrevista.

Ricardo Esteves Ribeiro: Algumas das pessoas que eu entrevistei hoje diziam-me que apesar de haver quarenta mil pessoas que são seguranças privados ou que, pelo menos, têm licença para serem seguranças privados em Portugal, estavam aqui apenas vinte ou trinta pessoas durante esta manifestação, o que demonstrava falta de solidariedade. Concorda com isso?
Paulo Guimarães: Não, não concordamos. Nós não estamos aqui de vinte a trinta, nós estamos aqui com setenta homens. Mas, deixe-me que lhe digam. Não há nenhum posto de trabalho que não esteja a ser assegurado. Está tudo assegurado. Isto não é uma greve, isto é uma manifestação de trabalhadores para os trabalhadores. À manifestação, como sabe, só vieram trabalhadores que estão de folga. Todos os nossos postos de Infraestrutura de Portugal estão a ser cumpridos, mas não descartamos, como eu lhe disse há um bocadinho, um pré-aviso de greve se este braço de ferro se mantiver. E, aí, com certeza que não serão sessenta, nem setenta. Com certeza que serão muitos mais a aderir esta greve, porque os trabalhadores da segurança privada estão fartos de serem marginalizados por estas empresas.

Na verdade, não estão ali 70 homens.

Ricardo Esteves Ribeiro: Ele tem ali um campo de distorção de realidade que para ele não estão ali 30 pessoas. Para ele estão o dobro ou o triplo das pessoas que lá estão. E eu acho que ele, quando me estava a dizer isto, ele acreditava mesmo que estavam lá mais pessoas. Provavelmente, hoje, se fosse ver as imagens ou fotografias ou coisa do género ia perceber que não estavam.

Paulo Guimarães, que convocou e organizou a manifestação de seguranças em frente à sede da empresa pública Infraestruturas de Portugal, na Avenida Paiva Couceiro, no Porto, a 17 de fevereiro de 2020, prestando declarações à RTP.
Fotografia: Lesados da PSG

Outra nota factual: apesar da ameaça, sozinho, Paulo Guimarães não pode convocar uma greve, e ele sabe disso. Não é delegado, nem dirigente sindical. Naquele dia, em fevereiro de 2020, ainda nem era sindicalizado.

O email que nos enviou, o evento de Facebook que andou a partilhar, nada tem uma estrutura formal. Os vigilantes de Paulo Guimarães falam por um grupo de WhatsApp para confirmar as presenças. Não vieram autocarros com protestantes de todo o país. Não há operários de outros setores destacados pela CGTP-Intersindical. Estão aqui os seguranças do Norte que, por acaso, estavam de folga a esta hora. E Paulo Guimarães fala por eles porque sabe falar. Tem o discurso estudado. Sabe no que quer tocar e que temas evitar. Sabe resumir o porquê de estarem ali, sabe como apontar o dedo aos patrões.

Paulo Guimarães: Querem fugir, refugiar-se em leis muito próprias deles. É a lei geral do trabalho. E eles pura e simplesmente negam-se a cumprir a lei geral do trabalho.

Em dezembro de 2019, dois meses antes desta manifestação, a Strong Charon, uma das maiores empresas de segurança privada do país, perdeu o concurso público para vigiar as estações de comboio portuguesas. É um dos contratos mais valiosos entre o setor e o Estado. Desde 2016 que trazia à Strong Charon cinco milhões e 750 mil euros por ano.

Em 2019, o contrato foi divido em dois blocos: Norte e Sul. Para as estações de comboios entre Valença e Lisboa, da fronteira norte com Espanha à capital portuguesa, a Infraestruturas de Portugal atribuiu o contrato público à PSG, uma empresa mais pequena mas em ascensão no mercado. Quando soube do resultado do concurso, em dezembro desse ano, a Strong Charon informou os vigilantes que tinha nas estações de comboio de que eles iam com o contrato. A partir de 1 de janeiro de 2020, eram funcionários da PSG, com os mesmos postos, as mesmas funções e os mesmos salários. Já a PSG disse que não estava obrigada a aceitar os trabalhadores de outra empresa. Não tinha de os contratar.

Ricardo Esteves Ribeiro: Como é que se chama e por que é que está aqui?
José Gomes: Eu chamo-me José Gomes. Estou aqui por causa de uma transmissão do posto na IP. No meu caso, a PSG nem nos contactou. Nós recebemos apenas uma carta da Strong Charon a dizer que no dia um de janeiro passávamos automaticamente para a PSG e que a PSG garantia tudo.

A Strong Charon, que perdeu o concurso, diz que trabalham para a PSG. A PSG, que ganhou o contrato, diz que são funcionários da Strong. E, sem entendimento, nenhuma empresa se responsabiliza pelos trabalhadores. São funcionários das duas e de nenhuma. Ninguém lhes paga salário.

Ricardo Esteves Ribeiro: Como é que se chama e por que é que está aqui?
João Carvalho: Ora bem, eu chamo-me João Carvalho. Quer dizer, eu não tenho dinheiro. Já estou com problemas económicos. Agora, a minha ex-esposa, porque eu tenho dois filhos, tenho um filho com 14 anos, já me meteu na justiça, porque estou com atrasos. Estou entre a espada e a parede. Não sei o que é que hei-de fazer. Estou à espera agora de receber a carta para ir a tribunal de menores. Pois olha, meu amigo, você vai ter de ir pedir dinheiro às Infraestruturas, que eu não sei como é que vou pagar as minhas contas.

Mesmo recusando contratar todos os funcionários da Strong Charon, a PSG continua a precisar de recrutar. Nenhuma empresa tem 200 seguranças privados, nos quadros, à espera de um lugar. Portanto, por conveniência, a PSG vai posto a posto e contrata os vigilantes que vão ficar sem emprego. Dá-lhes contratos novos. Sem antiguidade. Com período experimental.

Ricardo Esteves Ribeiro: Como é que se chama e por que é que está aqui?
Jorge Reis: O meu nome é Jorge Reis. Estou aqui porque a empresa em que estava anteriormente – a Strong Charon, em que estive desde 2004 – pura e simplesmente me despachou, porque perdeu o cliente Infraestruturas de Portugal. Passei para a PSG. Agora estou na PSG, mas pura e simplesmente não me dão a antiguidade que eu tinha desde 2004.

No setor da segurança privada existe um diferendo: quando um contrato muda de mãos, o que é que acontece aos vigilantes? Quando esse contrato é público, que poder tem o Estado sobre o destino daquelas pessoas?

E, quando não se sabe o que é que a lei quer dizer, quando o contrato não previa esta discórdia, enquanto as dúvidas se resolvem em tribunal, o que é que acontece aos trabalhadores, às pessoas que ficam sem salário, sem subsídio de desemprego, sem perspetivas de carreira, sempre que um contrato público é entregue a outra empresa?

Este é o segundo episódio da série “Exército de Precários”: Purgatório.
Seja toda a gente bem vinda ao Fumaça. Eu sou o Nuno Viegas.

Parte I – Paulo

Conhecemos Paulo Guimarães na manifestação de fevereiro. Depois disso, tivemos 3 entrevistas com ele, durante mais de sete horas, na sua casa, em Vila Nova de Gaia. Sempre que fomos lá ter, Paulo Guimarães desceu para nos receber na rua. Nunca estava mal disposto. Insistia em pagar-nos um café, para abrir a conversa.

Ricardo Esteves Ribeiro: Então, Paulo, tudo bem?
Nuno Viegas: Como está?
Paulo Guimarães: Tudo bem. Querem tomar um cafézinho, antes de falarmos?
Ricardo Esteves Ribeiro: Pode ser.
Paulo Guimarães: Vocês já almoçaram?
Ricardo Esteves Ribeiro: Já, já.
Nuno Viegas: Francesinha. Meia francesinha cada um, na verdade.
Paulo Guimarães: Foi? [Riso] No Santiago?
Nuno Viegas: No Santiago.
Paulo Guimarães: Maravilha.
Ricardo Esteves Ribeiro: É a melhor?
Paulo Guimarães: É bonzinho.

O café serve para montar a entrevista. O segurança de Campanhã aproveita esses minutos para ir lançando temas, sugerir questões a abordar, garantir que a conversa lhe vai dar espaço para falar de tudo o que tem para nos dizer. Só depois subimos para o apartamento com garagem e varanda, uma gata deambulante e um peixe num pequeno aquário, na sala.

Paulo Guimarães tem 48 anos, é casado, tem filhas. No fim das conversas oferece-se sempre para nos dar boleia até à estação de comboios do outro lado do rio. E continua a falar, faz perguntas sobre jornalismo, sobre o trabalho do Fumaça. Interessa-se. Quando temos tempo, convida-nos para um almoço. Nunca chegamos a aceitar.

Paulo Guimarães: Olha, eu gostava de te começar a contar a minha história, se quiseres ouvi-la.
Ricardo Esteves Ribeiro: Quero.
Paulo Guimarães: Sobre a nossa manifestação, e tudo começou aqui, em dezembro, por volta do dia 16, 15, 16, comecei a acompanhar a situação do concurso público, no site do Governo.
Ricardo Esteves Ribeiro: Tu já sabias antes que o contrato expirava?
Paulo Guimarães: Não, curiosamente
Ricardo Esteves Ribeiro: Ninguém sabia, ninguém falava disso?
Paulo Guimarães: Ninguém sabia. Nada, nada.

O contrato mudar de mãos significava um abanão na vida de Paulo Guimarães, uma nova incerteza. Estamos a falar com ele porque, ao ver-se com essa dúvida, quando os trabalhadores se sentiram abandonados por patrões e por sindicatos, Paulo Guimarães atravessou-se, pôs-se na linha da frente. E, para o fazer, aproveitou os conhecimento de três décadas na segurança privada tempo em que correu muitas empresas, muitos postos, entre clientes públicos e privados.

Paulo Guimarães: Estou na segurança privada vai fazer cerca de 27 anos. Já passei por várias empresas. Estou, neste momento, a trabalhar nas Infraestruturas de Portugal, na Património, e faço parte daquela equipa já vai fazer 14 anos. Eu cresci numa terra que se chama Rio Tinto, no Forno. Estive dois anos na Marinha e, quando saí, quis enveredar por uma farda. Tão simples quanto isto: era uma farda, porque eu gosto de fardas e gostava das fardas e pensava que a segurança privada teria outro valor no nosso país. Em jovem optei por sair da escola e penalizo-me até hoje por isso. Depois, voltei a estudar mais tarde. Queria dinheiro, queria brincar, queria andar aí com os meus amigos e queria comprar uma mota, Ricardo. Eu queria comprar uma mota. Então, com 16 anos, eu virei-me para o meu pai e disse: “Quero deixar de estudar”. Então, o meu pai disse: “Tu fazes o que quiseres. Não acho bem mas, pronto, tu é que sabes”. E cheguei ao sétimo ano e parei de estudar. E o meu pai arranjou-me logo trabalho Logo. E, então, o meu falecido irmão, Manuel Guimarães, que trabalhava na Central Papeleira de Alenquer, em Alenquer, era diretor dessa empresa, e arranjou-me imediatamente trabalho para um armazém pesadíssimo. E aquilo era pesadíssimo. Mas estive lá 3 anos. Depois fui para a tropa. E na altura eu queria uma Yamaha RZ. Uma Yamaha RZ custava 316 contos. E comecei a trabalhar e o meu primeiro ordenado eram 24 contos. E o meu pai houve uma vez que estávamos a jantar e disse-me: “Oh rapaz, vai lá abaixo à garagem e e vai ver o que é que lá tens para ti”. E abri a garagem. Estava lá a minha mota. O meu pai comprou-me a mota mas obrigou-me a pagar mensalmente a mota. Ele disse-me: “Todos os meses vais ter de me dar 10 contos”. Eu ganhava 24 e tinha de lhe dar 10 contos para pagar a mota. Mas sabem que eu cheguei ao fim e ele tinha o dinheirinho guardado para mim?

O pai deu-lhe a mota e o dinheiro.

E, depois da vida militar, Paulo Guimarães tornou-se segurança. Trabalhou para a 4Esse, para a SOV e para o Grupo 8. É aí que vai ter à estação de comboios de Campanhã, no Porto, em 2008. Em 2016, quando a Strong Charon assumiu a vigilância das estações ferroviárias de todo o país, ficou no mesmo posto, mas mudou de empresa.

É um funcionário privado destacado há mais de uma década para guardar um edifício público. Como ele, há milhares. Só as estações de comboios precisam de algo como 500 seguranças privados, espalhados pelo país, a garantir vigilância 24 horas por dia. Sobre este processo, o recurso a empresas privadas para desempenhar serviços em instituições públicas, vamos falar no próximo episódio.

Por agora, voltemos a dezembro de 2019. A Strong Charon perde o contrato de vigilância das estações do Norte para a PSG. Os seguranças descobrem em cima da hora.

Paulo Guimarães: E aqui é que estava a dificuldade. Porque se nós soubéssemos, não é? Nós, às tantas, tínhamo-nos prevenido de outra maneira. Mas, como o vigilante é sempre o último a saber, o trabalhador é sempre o último a saber, é tudo feito no escuro… E, em conversa com um colega meu, ao nosso lado, também nós sabíamos mais ou menos que poderia haver concurso ou não – eu estava a contar que o concurso seria para junho deste ano e acabou por ser em dezembro e, fortuitamente, acabei por ir ao site, e vi lá IP Património e Infraestruturas. E fiquei logo “o que é isto?”. Fiquei logo a olhar assustadíssimo, não é? Olha, pronto, já vem aí conversa… No dia… Curiosamente, passados dois ou três dias, por volta do dia 14, 15 (tenho aqui emails, posso te confirmar isso depois), as Infraestruturas de Portugal, através da central de segurança, manda para todos os trabalhadores um e-mail que dizia algo tão simples quanto isto: “A partir de amanhã estão autorizadas as chefias da PSG a entrar nas instalações, conhecer as instalações e falar connosco”.

O site em que Paulo Guimarães viu o resultado do concurso é o BASE, um portal criado durante o primeiro Governo de José Sócrates. As entidades públicas são obrigadas a divulgar aqui quase todos os contratos que assinam e as despesas externas em que incorrem. Qualquer pessoa pode consultar os contratos.

Cais de embarque na estação ferroviária de Porto-Campanhã, uma das principais do país, onde se encontram as Linhas do Norte, Douro e Minho, e cuja vigilância passou das mãos da Strong-Charon para as da PSG, a 1 de janeiro de 2020.
Fotografia: António Amen – Obra do próprio, CC BY-SA 3.0

O que dizia, em dezembro de 2019, era que a PSG tinha ficado com a segurança privada de todas as estações de comboios de Valença a Lisboa. De Lisboa a Faro o contrato foi para a COPS e para a Delta Force, duas pequenas empresas de segurança privada. A segurança das estações mudava de mãos a 1 de janeiro de 2020.

Paulo Guimarães: Meteu-me medo e, nesta sequência, dia 17 de dezembro recebemos a carta, [dizendo] que a partir do dia 1 de janeiro seríamos funcionários da PSG, como se nós fossemos descartáveis, como se nós fossemos uma peça de xadrez. É tão simples quanto isto. Dia 17 de dezembro, eu começo… Nós temos um grupo de Facebook, muito restrito, dos trabalhadores das Infraestruturas de Portugal. Até era só mais a Norte, agora já temos mais pessoal do Sul, até para os podermos acompanhar e ajudar. Essa página existe para isso mesmo, para irmos tirando dúvidas e irmos falando sobre o que é que está bem e o que é que está mal. E eu começo a destilar para lá informação, que era para a malta se aperceber, porque ninguém se tinha apercebido de nada. tínhamos, portanto, 13 dias, mais ou menos 14 dias, para resolver isto.

Quando a Strong Charon perdeu o concurso público e enviou uma carta a avisar os seguranças de que passavam para a PSG, invocou uma figura legal, a transmissão de estabelecimento. É um sistema previsto nos artigos 285, 286 e 287
do Código do Trabalho.

A transmissão de estabelecimento existe, em teoria, para proteger postos de trabalho quando uma empresa ou exploração muda de dono. Diz que, quando se assume um investimento, tem de se manter empregados os funcionários antigos. Os novos patrões ficam responsáveis pelos contratos de todos os trabalhadores. Dão-lhes as mesmas funções, os mesmos direitos. Só muda o nome no topo do recibo de vencimento. E não podem despedir ninguém, pelo menos sem justa causa.

Eis um exemplo prático: se compro um café e trabalham lá quatro pessoas, toda a gente a ganhar 1000 euros por mês, eu tenho de as manter empregadas, a ganhar o mesmo, e com as mesmas funções e direitos. Não posso mandar trabalhadores embora sem uma razão válida.

Em dezembro, quando ganhou o concurso para fazer a segurança das estações ferroviárias, a PSG disse que conseguia fazer o Norte do país com 210 seguranças. São menos 30 do que a Strong Charon empregava para o mesmo serviço.

Se houvesse uma transmissão de estabelecimento – como a Strong Charon disse aos funcionários que ia acontecer –, a PSG tinha que empregar esses 30 vigilantes (de que diz não precisar) e, só depois, despedi-los e pagar uma compensação por cada ano de antiguidade que o funcionário tinha acumulado com a Strong Charon.

Portanto, a PSG recusa a transmissão de estabelecimento. Diz que não se aplica. E vai, posto a posto, contratar, um a um, os seguranças de que precisa, deixando de fora aqueles que diz estarem a mais. Os que emprega recebem contratos novos. Perdem a antiguidade e têm um período experimental em que podem ser despedidos sem justificação. É como se acabassem de entrar no setor.

Paulo Guimarães: Nós recebemos lá, então, dois senhores da PSG: “Eish, Paulo, cuidado, porque a vossa empresa não nos vai dar carta nenhuma. Nós vamos dar tudo, mas olhe que a vossa empresa não nos vai dar carta nenhuma”. Portanto, logo numa de intimidação, como quem diz: vai chegar ao final do ano, não vais ter carta nenhuma de transmissão, vais ser obrigado, se quiseres trabalhar, a passar a zeros ou então vais para a Strong Charon.

Passar a zeros significa perder os direitos conquistados pelos trabalhadores, por cada ano que passam numa empresa. O exemplo mais claro do que está em causa são os despedimentos por justa causa. Quando se é despedido, recebe-se uma indemnização proporcional à antiguidade. O valor exato depende da legislação em vigor quando se assinou o contrato de trabalho mas, em regra, quanto mais tempo se passa numa empresa, mais se recebe caso se seja despedido.

Quando se assina um contrato com uma nova empresa, como a PSG quer que os seguranças privados façam, esta contabilização volta a zero: o tempo começa a contar do início, a indemnização possível diminui. Também se perdem direitos previstos em contratos antigos, como receber mais pelas horas noturnas, por exemplo.

Paulo Guimarães começa aqui a desenhar a estratégia. Fileiras cerradas dos seguranças contra a empresa. Não há trabalho sem condições laborais.

Paulo Guimarães: E a linha que nós íamos seguir era: “Ninguém assina nada, ninguém passa a zeros, ninguém faz nada disso”. Era tudo legal ou então ninguém passava, tínhamos que ir todos para o tribunal. Mas, Ricardo, quando nós falamos em tribunal a um trabalhador que já tem medo, porque está precário, [a proximidade do] Natal, é tudo junto… É tudo uma panóplia de situações ali. Aquilo criou pânico. E eu olhei para os trabalhadores, aqueles 20 a 25 trabalhadores, e eu imediatamente percebi que criou um desconforto. Houve dois ou três que fugiram logo de lá e foram logo tentar resolver a situação à PSG. Logo. Tanto assim é que alguns desses que fugiram foram para a PSG imediatamente assinar um contrato precário onde continha os 60 e os 90 dias de experiência. Incrível, isto. E estou-te a falar, Ricardo, de homens com 25 e 30 anos de casa, ou seja, eles não se importavam de ficar a zeros.
Ricardo Esteves Ribeiro: Queriam era receber o seu salário mensalmente?
Paulo Guimarães: Queriam receber o seu salário. Portanto, isto é terrível.
Ricardo Esteves Ribeiro: Mas tu percebes isso, ou não?
Paulo Guimarães: Percebo, porque é o tal… Percebo que as dificuldades são grandes. Percebo que, lá está, cada um tem a sua vida. E eu, graças a Deus, tenho a minha vida estabilizada – trabalho muito, também –, mas também não me meto com grandes aventuras. Fui sempre um homem com… Olha, aquela situação da mota, que já te contei, que o meu pai me responsabilizou com 16 anos, provavelmente ainda serve de exemplo para mim, ainda hoje.

Parte II – Guimarães

No natal de 2019, a uma semana de a PSG assumir a vigilância das estações de comboio, Paulo Guimarães ainda não tinha aceitado assinar o contrato. A partir de Campanhã, é influente entre os vigilantes. Conhece toda a gente. Lê a legislação. Ouve os debates no parlamento. Sabe quem são os decisores políticos. É para aí que se vira à procura de poder negocial. Envia um email à Ministra do Trabalho, Ana Mendes Godinho, ao Secretário de Estado da Segurança Social, Gabriel Bastos, ao Ministro das Infraestruturas e da Habitação, Pedro Nuno Santos e ao Partido Comunista Português porque, disse-nos, é um partido que ajuda os trabalhadores.

Paulo Guimarães: Sabe quantas respostas tive? Eu digo-lhe: zero.

Então, Paulo Guimarães muda de tática. Estava desperado. A passear pelo Facebook, lembra-se de enviar mensagem a Catarina Martins, coordenadora do Bloco de Esquerda, por Messenger.

Paulo Guimarães: Para meu espanto, passado um dia ou dois, a senhora respondeu-me. E aquilo foi uma lufada de ar fresco, para mim. Enchi o peito. Porque, epá, pelo menos, tenho uma resposta.

Catarina Martins perguntou, através do Facebook, o que é que os trabalhadores planeavam fazer. Paulo Guimarães ia levar um grupo de vigilantes à delegação da PSG, no Porto, dentro de poucos dias. E queria apoio, pedia que fosse um representante do partido com eles. Mas as datas não funcionaram. Os partidos andavam a negociar o Orçamento do Estado, atrasado pelas eleições legislativas de 2019. O Bloco de Esquerda acabou por não se juntar. Os seguranças de Paulo Guimarães foram na mesma ter com a empresa.

Paulo Guimarães: Vamos fazer barulho. Vou com 20 trabalhadores, entramos por lá adentro do escritório e as pessoas todas desesperadas, colegas meus aos gritos, aos berros. E vem um senhor de lá dentro e diz: “Epá, vocês tenham paciência mas a PSG é assim que vai fazer, a PSG não vai dar antiguidade a ninguém. Nós estamos de boa-fé, vocês acreditem em nós”, aquela conversa toda. Toda a gente aos berros e eu chego a beira do senhor e digo-lhe: “O contrato que vocês estão a apresentar tem uma cláusula que é dos 90 dias de experiência, se o senhor está de boa-fé, se a empresa está de boa-fé, retirem essa cláusula do contrato.” E ele, imediatamente, disse: “Epá, mas isso é possível, deixe-m
e só fazer uma chamada”.

A PSG cedeu a Paulo Guimarães sem a intermediação de sindicatos nem de partidos. Quem já tinha contrato teve direito a uma adenda, uma nova cláusula, que eliminava o período experimental. Os outros receberam acordos já sem esse artigo.

Paulo Guimarães também aceitou assinar, aí, o seu contrato com a PSG. E, a 1 de janeiro de 2020, entra ao serviço sem período experimental. Mas continua a não ter antiguidade. Portanto volta a puxar pela rede de contactos feita em quase 30 anos de vigilância. E, desta vez, quer puxar também pelos partidos. Quer artigos no jornal. Quer negociar em público. Volta à estratégia que funcionou da última vez.

No Facebook, deixa um comentário a uma publicação de José Soeiro, deputado do Bloco de Esquerda, eleito pelo círculo do Porto. E, novamente, tem resposta. Marca uma reunião em Lisboa, na Assembleia da República. Reúne documentos e leva provas do limbo legal em que está preso, da discórdia sobre a transmissão de estabelecimento.

Paulo Guimarães: E eu entrego então aquilo, muita informação ao deputado, e ele começa a ler. E a dada altura diz (e eu não vou dizer aquilo que ele disse, mas disse): “O que é que é esta porcaria? O que é isto?” É aí que muda de paradigma toda a nossa luta. E ele, no fim da reunião, diz (eu até me estou a arrepiar, Ricardo): “Paulo, queres marcar uma manifestação?” E eu digo: “Ó José Soeiro, epá, uma manifestação, com o pessoal assim cheio de medo?” Já estávamos a trabalhar há um mês e meio, com farda, com tudo. Cheiinhos de medo. E eu arrisco e digo: “Epá, José Soeiro, pela nossa antiguidade vamos ter que ir à luta”.

Paulo Guimarães nunca tinha organizado uma manifestação. Usou a máquina do Bloco de Esquerda: o partido imprimiu os cartazes; foi um funcionário do Bloco a avisar a Câmara Municipal de que havia uma concentração e, assim, se montou o protesto de 17 de fevereiro.

Desta vez, não vai à sede da PSG. Vai para a frente do edifício das Infraestruturas de Portugal, no Porto, o cliente. Transfere o problema de uma empresa privada para uma entidade pública. Quer forçar o Estado a pressionar a PSG.

Ricardo Esteves Ribeiro: Mas, então, vocês organizaram a manifestação em quantos dias?
Paulo Guimarães: Quatro dias. Quatro, cinco dias, assim, muito de repente. E eu cheio de medo, Ricardo, devo-te confessar. Porque eu era assim: “Epá, Deus queira que os trabalhadores…” – eu, sempre a falar com os trabalhadores – “…epá, apareçam, apareçam, apareçam.” Aparecem quatro trabalhadores: “Epá, a minha mãe está mal; o meu filho tem que ir para o hospital…” E eu começo a ver a isto a desmoronar. Mas começo a fazer contas durante a noite e digo assim: “Epá, eu com 20 a 30 gajos já tenho a certeza”.
Mas isto acabou por ser uma jogada de póquer (e eu não sou um grande jogador de póquer, diga-se de passagem), mas eu fiz um bluff do caraças, Ricardo. Vinte a 30 gajos, numa imensidão de 300. Eu sei que foi aqui no Porto, e não foi nenhuma greve, foi uma manifestação. Para o Ricardo perceber, foi a maior manifestação (isto é outro orgulho que eu tenho), a maior manifestação alguma vez feita, de vigilância privada. Manifestação. Isto não é uma greve. Foi a maior manifestação que se fez no Porto. Trinta homens.

Ricardo Esteves Ribeiro: Mas, ainda assim, tu achavas que iam 30, achavas que iam 20, achavas que ia, 50?
Paulo Guimarães: Eu estava a contar 20, 25, 30, à volta disso. No dia da manifestação começo-me a perceber um, dois, três, quatro, cinco… Eu a contar cabeça por cabeça, quatro, cinco, seis, sete… A RTP a ligar-me, as rádios a ligarem, e eu, assim: “Olha, queres ver? Vamos estar aqui cinco gatos ou seis, eles até fogem, porque não tem impacto nenhum.” Para minha surpresa, vem o meu grande amigo, o Ivan Machado, trás o pessoal todo de Espinho; o Santos vem de Guifões; o Carvalho vem de Leixões. Começamos a aperceber-nos de que estamos 20, 30 homens.

Manifestação de seguranças em frente à sede da empresa pública Infraestruturas de Portugal, na Avenida Paiva Couceiro, no Porto, a 17 de fevereiro de 2020.
Fotografia: Lesados da PSG

É, diga-se, impossível verificarmos se foi mesmo a maior manifestação. Mas foi aqui que começámos. Em frente à Infraestruturas de Portugal, num dia nublado, com cartazes em papel A3 a exigir a transmissão de estabelecimento. E é aqui que Paulo Guimarães, rodeado por dezenas de seguranças privados, fala com o diretor da PSG para o Norte do país, Luís Gonzaga.

Paulo Guimarães: Eu, a meio da manifestação, recebo uma chamada do senhor Luís Gonzaga: “Paulo, epá, a PSG vai resolver a situação”, a tentar, digamos (ele é boa pessoa, não vou dizer…) condicionar-me. Mas, se tentou, não ia conseguir, porque eu ia até o fim, ali tinha que ir até o fim. Mas ele tentou, de alguma forma. Mas ele é super simpático e com um sorriso: “Epá, a PSG já vai dar tudo, tenham lá calma”.

Pela segunda vez, a PSG cedeu a Paulo Guimarães. Antes, tinham eliminado o período experimental, com um concentração na sede da empresa. Agora recuperam a antiguidade perdida, com uma manifestação à frente do cliente. Os vigilantes das estações de comboio de Valença a Lisboa receberam adendas aos contratos assinados em fevereiro de 2020. Tiveram a antiguidade reconhecida. Foi um segurança privado a receber o telefonema. Não havia sindicalistas lá para atender. Mas não foi por falta de convite.

O sindicato mais representativo da segurança privada é o STAD, Sindicato dos Trabalhadores de Serviços de Portaria, Vigilância, Limpeza, Domésticas e Actividades Diversas. Pelas contas do sindicato, tem cerca de 6 mil vigilantes a pagar quotas. Não é o único sindicato em que se pode inscrever um segurança privado. Mas é, de longe, o maior.

Perguntámos ao vice-coordenador nacional do STAD com o pelouro da segurança privada, Rui Tomé, porque é que não tinham ido à manifestação de Paulo Guimarães.

Rui Tomé: Que eu saiba, para haver uma manifestação ela tem de ser convocada. Foi convocada uma manifestação por quem?
Ricardo Esteves Ribeiro: Por trabalhadores da PSG.
Nuno Viegas: Qualquer pessoa pode marcar uma manifestação.
Rui Tomé: Não. Os trabalhadores não têm legitimidade para marcar uma manifestação.
Nuno Viegas: Qualquer pessoa pode marcar uma manifestação.
Ricardo Esteves Ribeiro: É um direito cívico.
Rui Tomé: Uma coisa é um conjunto de trabalhadores de cidadãos estarem num determinado local a falarem. Outra coisa é uma manifestação.
Nuno Viegas: Houve uma manifestação marcada onde estiveram presentes deputados.

Rui Tomé: Não é marcada.
Nuno Viegas: A questão aqui não é se a manifestação era legal ou não. A questão aqui é: porque é que o STAD nem…

Rui Tomé: Não, se é legal ou não.
Nuno Viegas: É legal. A questão aqui é…
Rui Tomé: Se não é legal o STAD não pode dar apoio a uma iniciativa que não era legal.
Ricardo Esteves Ribeiro: Mas não era legal, esta?
Nuno Viegas: Está a dizer que foi ilegal, a manif?
Rui Tomé: Você está-me a dizer que os trabalhadores convocaram uma manifestação.
Nuno Viegas: Como qualquer cidadão pode em Portugal.
Rui Tomé: Não. Não convocaram. Os trabalhadores decidiram reunir-se em determinado local. Não convocaram, não convocaram…


O que Rui Tomé está a fazer é, como sindicalista, atacar a legitimidade de um protesto de trabalhadores. E o que o dirigente do STAD  que está a sugerir não tem qualquer fundamento legal.

O direito à reunião e à manifestação está consagrado explicitamente na Constituição da República Portuguesa. Artigo 45: “1. Os cidadãos têm o direito de se reunir, pacificamente e sem armas, mesmo em lugares abertos ao público, sem necessidade de qualquer autorização; 2. A todos os cidadãos é reconhecido o direito de manifestação.”

Por definição, juridicamente, um protesto de pessoas na rua, é uma manifestação. A distinção que Rui Tomé está a fazer não existe. Qualquer pessoa pode convocar uma manifestação de forma legal sem ter de estar autorizado por seja quem for. Só tem de  avisar a Câmara Municipal de que vai haver uma concentração de pessoas se for ocupar a via pública.

Manifestação de trabalhadores da segurança privada organizada pelo STAD, em 2018, defendendo a revisão do Contrato Coletivo de Trabalho (CCT) entre este sindicato e as associações patronais: AES e AESIRF.
Fotografia: STAD

Rui Tomé foi mais longe. Nos minutos seguintes, disse nunca ter sido informado da manifestação. Mas foi.

Ricardo Esteves Ribeiro: A pergunta é porque é que o STAD não foi. Porque é que estamos às voltas?
Rui Tomé: Porque o STAD entende… O STAD tem toda a legitimidade para marcar as concentrações e manifestações que entender no momento oportuno. O STAD, naquele momento, não fez nenhuma manifestação e nenhuma concentração nem nenhuma manifestação. Portanto…
Ricardo Esteves Ribeiro: Então, porque é que não se juntou?
Rui Tomé: …o STAD nem sequer foi informado que havia essa…
Ricardo Esteves Ribeiro: Uma das pessoas que liderou essa manifestação disse-nos que falou com o STAD.
Rui Tomé: As pessoas são livres de dizer aquilo que entenderem.
Ricardo Esteves Ribeiro: Ah, então é mentira?
Nuno Viegas: Mas mentiu?
Rui Tomé: Eu não sei se é mentira.
Ricardo Esteves Ribeiro: É mentira que o Paulo Guimarães, vigilante da PSG, falou com o STAD?
Rui Tomé: Se o STAD… Vocês estão a colocar aqui uma situação...
Ricardo Esteves Ribeiro: É uma pergunta muito simples: porque é que o STAD não esteve na manifestação?
Rui Tomé: Não é. Disse-lhe há pouco.
Ricardo Esteves Ribeiro: Pois, e está-me a dizer que não foi informado. Nós tivemos a informação contrária. Eu estou a perguntar se ele mentiu.
Rui Tomé: Estou a dizer-lhe que o STAD vai às manifestações e convoca as manifestações ou concentrações dentro daquilo que são os seus princípios e os seus objetivos. Naquele momento, os trabalhadores entenderam livremente se manifestar e fizeram-nos no seu direito.
Nuno Viegas: O STAD foi informado de que aquilo ia ocorrer, ou não?
Rui Tomé: O STAD? Mas você está a falar do STAD, quem? A instituição STAD?
Ricardo Esteves Ribeiro: [Riso]
Nuno Viegas: Estamos a separar agulhas?
Rui Tomé: Claro. É evidente.
Nuno Viegas: Dirigentes do STAD. Delegados sindicais do STAD. O STAD foi informado de que aquilo ia acontecer? O Rui sabia sabia que aquilo ia acontecer??
Rui Tomé: O STAD não esteve presente porque o STAD entendeu que, não sendo uma iniciativa do STAD, por não ter convocado uma concentração, uma manifestação, o STAD entendeu que não devia estar presente.
Nuno Viegas: Para terem esse entendimento era porque foram informados de que ia acontecer, ao contrário do que disse antes.
Rui Tomé: É evidente. É público. Foi público.

Nuno Viegas: Ah, então foram informados.

Parte III – Os Outros

A PSG mudou os contratos, mas só a título excecional. O aditamento assinado por Paulo Guimarães, a 24 de fevereiro, devolve-lhe a antiguidade. Para todos os efeitos, é como se trabalhasse para a PSG, desde 2008, data em que entrou para o posto atual, de Campanhã.

Mas o documento de duas páginas deixa uma ressalva. Alínea D: “O presente aditamento não consubstancia uma aceitação da operabilidade do artigo 285 do Código do Trabalho ao caso em apreço”. Ou seja, cedemos nestes contratos, em específico, mas não se volta a repetir. A transmissão de estabelecimento não se aplica. Isto foi boa vontade ou, na linguagem da adenda, a execução da “livre autonomia contratual” da empresa e dos seguranças.

Quem estava a trabalhar recuperou direitos. Mas estas centenas de vigilantes continuam a ser funcionários de uma empresa que recusa formalmente a transmissão de estabelecimento. Outros nunca receberam um contrato. E o problema não acaba na Estação de Campanhã. Centenas de pessoas estão abrangidas pela transmissão falhada entre a Strong Charon e a PSG de Lisboa a Valença.

António Santos, até janeiro de 2020, vigilante da estação de comboios da Gare do Oriente, em Lisboa, com a Strong Charon.

António Santos: A mim ninguém me abordou. Só recebi a carta em casa. Eu fiquei um bocado revoltado porque como é que vou pagar a pensão, a casa, a prestação? Este mês já foi um bocado mais complicado. No próximo mês vai ser mais. Estou sem dinheiro, já. Aguentei já dois meses. Já não foi mau. E este mês já não posso pagar a pensão do meu filho.
Nuno Viegas: Está a receber subsídio de desemprego?
António Santos: Não. Estamos à espera.


Esta é uma das consequências de ficar num limbo profissional. Nem se consegue as declarações para pedir o subsídio de desemprego à segurança social. Ninguém despediu António Santos. Mas em março de 2020 quando o entrevistámos também já ninguém lhe pagava salário.

A sua indignação é contida. É uma pessoa reservada. Fala pouco. Num tom baixo. O que mais o preocupa, o que vai repetindo ao longo da entrevista, é conseguir a custódia do filho. Divorciou-se ao fim de 10 anos de casamento. Na Strong Charon, tentava negociar o horário flexível, para ter a guarda partilhada. Depois de a PSG ficar com a vigilância das estações de comboio, deixou de receber um ordenado e começou a falhar os pagamentos da pensão de alimentos.

Nuno Viegas: Tem perspetivas de emprego?
António Santos: Nós temos sempre propostas de trabalho. Temos os conhecimentos de supervisores de outras empresas. No meu caso eu tenho sempre conhecimento de outras empresas que estão solidárias para connosco. Só que às vezes não podemos inscrever-nos noutras empresas a full-time. Só part-time.
Nuno Viegas: Porquê? Não podem inscrever-se a full time porquê?
António Santos: Porque nós estamos no processo de transmissão. Como já temos o contrato de trabalho, somos efetivos, temos antiguidade. Como é guerras de empresas não podemos ir naquelas duas empresas. Temos de dar prioridade a que resolvam entre empresas e tribunais.
Ricardo Ferreira: Porque uma das garantias que nós temos — desculpa interromper, António — o dinheiro destes ordenados que não tivemos, esse dinheiro vai vir. Isso é uma garantia. Só que nós não comemos agora, alguns, se calhar, não comem agora, para comer tudo de uma vez, para se alimentarem tudo de uma vez. Porque esse dinheiro vai vir. Esse dinheiro é garantido.


A voz que interrompeu António Santos é a de Ricardo Ferreira. Trabalhavam juntos na Gare do Oriente, para a Strong Charon. E vieram falar connosco ao mesmo tempo, em março de 2020. E, apesar de estarem os dois na mesma estação, na mesma equipa, e na mesma empresa, tiveram processos diferentes.

A PSG nunca ofereceu um contrato a António Santos. Já Ricardo Ferreira, teve um contrato à frente, em dezembro de 2019, com período experimental, sem antiguidade, e recusou.

Ricardo Esteves Ribeiro: Mas, Ricardo, no dia 1 do contrato, ou seja, no dia em que a PSG tomou conta do contrato na Gare do Oriente, vocês tentaram entrar ao trabalho?
Ricardo Ferreira: Sim. Fizemos o procedimento de três dias que tem de ser feito consoante a escala, com testemunhas e chamar a PSP.
Ricardo Esteves Ribeiro: Que procedimento é esse?
Ricardo Ferreira: Uns levam farda, outros não levam, mas levam na mala, para se apresentar ao serviço. É óbvio que vai lá estar outra empresa que não a que nós temos contrato, que é a Strong Charon. E é óbvio que nos vão recusar. Só que temos de ter testemunhas. Se for todos, melhor, mas nessas situações, às vezes, basta dois ou três. E chamar a polícia. Neste caso, ali é a Polícia de Segurança Pública, para fazer os devidos autos para se juntar ao processo. Para quê? Para que a empresa não alegue o abandono por parte do trabalhador.

Quando se apresentam ao trabalho, sem contrato e sem farda, os vigilantes sabem que não podem entrar. Estão a juntar provas para um caso judicial. É nos tribunais que vão procurar respostas, quando ninguém os aceita como empregados, e ninguém os despede formalmente.

É um longo caminho. Pelas contas de Ricardo Ferreira: um mês para poderem abrir o processo, um mês para pedir apoio jurídico, umas semanas para preparar o advogado, outro mês para a empresa responder. E só aí é que começa a batalha nos tribunais. A justiça é lenta e sujeita a externalidades. Em 2020, os processos sobre a transmissão de estabelecimento foram interrompidos pela pandemia de covid-19. Ainda não há decisões. Ainda há quem espere para ser ouvido pela primeira vez por um juiz. A decisão pode demorar anos, mesmo sem crises de saúde globais.

Ricardo Ferreira mora com a mãe. Tem menos despesas, apesar de também pagar a pensão de alimentos do seu único filho. Portanto, diz que pode esperar mais do que António Santos. Nem toda a gente tem esse luxo.

Na Gare do Oriente, em Lisboa, três seguranças – António Santos, Ricardo Ferreira e Rodrigo Santos – passaram por dificuldades financeiras e problemas em assegurar o pagamento de pensões de alimentos aos filhos por terem ficado no limbo, sem salários, durante o processo de transmissão do serviço de vigilância da Strong-Charon para a PSG.
Fotografia: Wikipédia/CC BY 2.5

Na estação ferroviária da Gare do Oriente encontrámos três vigilantes diferentes que passavam ao mesmo tempo por lutas judiciais sobre a custódia de filhos e sobre a transmissão de estabelecimento. O outro é Rodrigo Santos, que começou a trabalhar na segurança privada quando ainda vivia no Brasil. Veio para Portugal há 20 anos.

Rodrigo Santos: Ainda sou daquela época que a residência era carimbada no passaporte. Era carimbada ali. Depois que inventaram esse cartão do título de residência, o SEF inventou esse cartão.

Em Portugal, Rodrigo Santos só foi segurança na Strong Charon. Passou 16 anos na empresa. Em janeiro recusou a oferta de emprego da PSG. Não lhe reconheciam a antiguidade.

Rodrigo Santos: E agora estou no limbo. Estou no limbo como todos os colegas. Não tenho ordenado, não tenho subsídio de alimentação. Tenho três pensões alimentícias para pagar. Eu quero saber quem vai arcar com todos esses danos morais que tanto a Strong Charon como a PSG estão a me causar.
Nuno Viegas: Tem dinheiro para sobreviver até quando, sem trabalhar?
Rodrigo Santos: Não sei, mais uns dois ou três meses. Depois disso, eu não sei. Estou à espera que essa situação fique resolvida para eu dar entrada no seguro-desemprego.
Nuno Viegas: Se fosse escolher, preferia trabalhar para a Strong Charon em outro sítio ou ficar na Gare do Oriente PSG?
Rodrigo Santos: Para dizer a verdade, se eu pudesse escolher, eu não trabalharia para nenhuma das duas.
Nuno Viegas: Porquê?
Rodrigo Santos: Porque isso que estão a fazer comigo é uma falta de respeito. Eu sou um homem de 42 anos, com três filhos. Não sou uma criança. É uma falta de respeito.

Parte IV – As Outras

O desapontamento de Rodrigo Santos, a sensação de que não se é valorizado, foi surgindo um pouco em todas as conversas que tivemos. Muitos seguranças privados sentem-se abandonados.

Não trabalham na empresa. Estão destacados para postos por todo o país. Nas portarias mais pequenas só se cruzam com colegas quando vão ser substituídos, no final de cada turno.

Os supervisores gerem dezenas de postos. Alguns aparecem de mês a mês, ou com menos frequência ainda. Falam por mensagem.

Na transmissão de estabelecimento, a pouca importância dos vigilantes para empresas é clara. Ao fim de décadas nos quadros, os seguranças são empurrados porta fora com uma carta-modelo e referências a figuras legais de que a maior parte nunca ouviu falar. Não há agradecimentos nem despedidas.

Isilda Santos: Foi muito ingrato. Por tudo o que eu lhes deu ao longo dos anos, e dei-lhes muito, trabalhei muito, vesti a camisola. Parecendo que não, nós, os vigilantes, somos a primeira imagem da empresa. E eu fui sempre uma boa imagem da empresa. E acho que foi uma ingratidão a forma como eles me despacharam: “Já és um alvo a abater porque já tens tantos anos de casa. Já nos ficas muito cara”. E, alias, disseram-me isso.

Isilda Santos. Estava há 28 anos na mesma empresa quando passou pela primeira vez por uma transmissão de estabelecimento.

Isilda Santos: Levei uma carta de agradecimento que nem adeus, nem obrigado pelos anos que me deram, nem coisa nenhuma. Estou muito magoada. Eu e, creio, a generalidade dos colegas com 20 e tal, 30, e mais anos de casa.

Isilda Santos está a falar connosco na esplanada de um café em Almada. A dona fechou mais tarde para nos deixar acabar a conversa. Com 56 anos, há 30 que trabalha no setor. E nunca passou pela Strong Charon. Nem pela PSG. Nunca esteve numa estação de comboios. É segurança no Tribunal de Almada. Até agosto de 2019, trabalhava para a Securitas. Desde aí é funcionária da COPS.

Seis meses antes da luta de Paulo Guimarães, Isilda Santos passou exatamente pelo mesmo processo, noutra entidade pública. O contrato para a segurança dos tribunais mudou de mãos. A Securitas disse que havia transmissão, a COPS, a ganhar o seu primeiro grande contrato público, discordou. O resultado foi o mesmo: uns seguranças ficaram sem emprego. Outros receberam um novo contrato, sem antiguidade, e com período experimental. Mas, desta vez, a empresa que perdeu o concurso não quis transmitir todos os trabalhadores.

Isilda Santos: Só tivemos três colegas que transitaram, os outros dois não. Porque a própria Securitas fez a escolha do que queria. Ou seja, os vigilantes mais velhos transitaram. Os mais novos levaram-nos com eles. Não ficaram na COPS.

Isilda Santos diz que isto é o sistema. As empresas usam as trocas de contratos para se livrarem de funcionários com muitos anos de casa, os trabalhadores a quem tinham de pagar indemnizações maiores caso extinguissem o posto de trabalho. Os mais novos ficam na empresa. Trocam de posto. São pressionados a meter férias até a empresa ter trabalho para lhes dar.

Contactámos repetidamente a Securitas para falar destas práticas. Nenhum representante da empresa aceitou dar uma entrevista. Enviámos, em agosto de 2020, uma lista de questões por escrito. A Securitas nunca respondeu.

Mas Isilda Santos garante que os representantes da empresa deixavam este sistema claro. Até 2014, trabalhava para a Securitas como vigilante de uma sucursal do banco Millennium BCP. Quando a empresa perdeu esse contrato, um supervisor disse-lhe que preferia não a empregar.

Isilda Santos: Chamou-me à Securitas, disse: “Eu não tenho cliente para si, o que é que pensa fazer?”. Eu disse: “então, se não tem cliente para mim tem uma boa solução, que é mandar-me embora”. “Não, que você sai muito cara para a mandar embora”. Disse-me isto na minha cara. “Então olhe, o senhor decida o que pretende fazer”.

A transmissão da Securitas para a COPS, nos Tribunais, deu-se em agosto de 2019. A meio do ano. Abre-se mais uma discórdia: quem paga o subsídio de natal? O que é que acontece às folgas acumuladas? E às férias por gozar? O patrão antigo acerta contas? Os custos ficam divididos proporcionalmente? Ou passa tudo para os novos responsáveis pelo contrato?

A COPS decidiu só pagar os cinco meses em que empregou os funcionários. A Securitas não pagou um cêntimo. E os seguranças continuam sem receber valores em dívida desde o natal de 2019.

Denys Vatolin: Fui para a segurança privada. Foi uma opção minha, de uma profissão que eu escolhi para mim, gosto. No início, foi logo meu primeiro emprego. Eu entrei para a Securitas, para o Tribunal de Benavente.
Ricardo Esteves Ribeiro: Foi quando?
Denys Vato
lin: Sete de janeiro. Entrei para o tribunal. Trabalhei até dia um de agosto. Entretanto, a Securitas perdem o concurso para a COPS. Quando vem a empresa COPS, aí comecei a ter alguns problemas nos vencimentos, nos subsídios.

Sala de audiências do Tribunal de Benavente, em 2018. Denys Vatolin trabalhava aqui, ao serviço, primeiro, da Securitas e, depois, da COPS, até ter saído da empresa, alegando constantes violações dos seus direitos laborais.
Fotografia: Facebook do Tribunal Judicial de Benavente

Denys Vatolin era, quando o entrevistámos, segurança no Tribunal de Benavente. Foi transmitido, tal como Isilda Santos. Nem um ano depois de entrar na COPS, fez queixa formal contra a empresa por não pagar a totalidade do subsídio de férias e de Natal. O processo ainda está a decorrer. Mas um representante da empresa confirmou-nos que só pagaram o proporcional a cinco meses.

Denys Vatolin: Vou ao tribunal do trabalho.
Ricardo Esteves Ribeiro: E já vais ao tribunal?
Denys Vatolin: Vou, sim, por falta de pagamento, daquilo que me devem. Os tais proporcionais e os subsídios de férias. Já fui de férias duas vezes e ainda não recebi as férias.


Centenas de seguranças privados vigiam os tribunais portugueses. Foram todos a concurso em junho de 2019. Mas este nem foi o único grande contrato público a mudar de mãos nesse ano. Em agosto, houve concurso público para dezenas de serviços do Ministério do Trabalho. O contrato engloba serviços como o IEFP, o Instituto do Emprego e Formação Profissional, e a ACT, a Autoridade para as Condições do Trabalho. Estava nas mãos da 2045. Em 2019 foi dividido geograficamente por 3 empresas: PSG, Comansegur e Ronsegur.

E, desta vez, nenhuma das empresas – nem a 2045, nem a PSG, nem a Comansegur, nem a Ronsegur – reconhece a aplicabilidade da transmissão de estabelecimento. Portanto, a única forma de os seguranças manterem os postos e os turnos – à volta dos quais construíram a sua vida –, é mudarem de empresa, assinarem um contrato sem antiguidade, e com período experimental.

Sofia Figueiredo, vigilante da portaria da sede da ACT, em Lisboa, que começámos a ouvir no episódio anterior.

Sofia Figueiredo: Liguei para o meu supervisor da 2045 e disse assim: “Olha, vocês vão-me transmitir?”. E ele “Transmitir? Não. Nós não assinamos esse acordo”. “Desculpa lá, mas estão-me a dizer que não sabem o que é que vai acontecer comigo?”. “Sim. Estamos a dizer que não sabemos o que é que vai acontecer contigo”.

Nesse dia, Sofia Figueiredo falou com dois sindicatos diferentes, uma inspetora da ACT que ia a sair do trabalho, e um deputado do Bloco de Esquerda. Não precisou de o encontrar por Facebook. Sofia Figueiredo foi candidata pelo Bloco de Esquerda nas eleições legislativas de 2019. Era a número sete no círculo eleitoral de Setúbal. O Bloco só elegeu dois representantes no distrito.

Falámos com ela na nossa redação, no Bairro Alto, em Lisboa, numa tarde de março. Sofia Figueiredo é baixa. Tem um metro e meio, talvez. Fala sempre com um sorriso. Parece ter energia infindável. Nos últimos anos participou no movimento pela criação do Estatuto do Cuidador Informal, após se tornar cuidadora de um familiar que faleceu, em 2019.

Hoje, ocupa-se com a transmissão de estabelecimento. Depois da entrevista continuou – continua, até hoje – a mandar-nos mensagens com documentos, fontes e sugestões para a investigação.

Em outubro de 2019, quando a segurança de edifícios do Ministério do Trabalho passou para a PSG, nos lotes de Lisboa e Algarve, Sofia Figueiredo queria manter o posto. Mas a 2045 nem aplicou a transmissão de estabelecimento, nem lhe deu um novo local de trabalho. Já a PSG, ofereceu um contrato sem antiguidade, como faria nas estações ferroviárias dois meses depois.

Sofia Figueiredo: Recordo-me de haver um amigo meu que disse: “Não assines. Eles estão no ministério em reunião”. Só que não consegui aguentar mais aquela pressão. Eu estive duas semanas sem dormir. Isto é desgastante, psicologicamente. Desgasta imenso. “Não assines. Estão numa reunião no Ministério”. “Mas eu vou assinar hoje”. “Mas inventa uma desculpa”. E eu inventei uma desculpa. Disse que tinha tido uma inundação em casa e não podia assinar. Para saber o que é que resultava… Eu tenho isto tudo no WhatsApp. Eu queria saber o que é que saía da reunião para depois agir em conformidade. Só que não me deram oportunidade. Já me estavam a dizer que no outro dia ia ter uma pessoa a estagiar no meu posto.

As palavras do supervisor numa mensagem enviada a 26 de novembro de 2019 são: “Avise-me quando estiver a ir para lá. Porque se não for hoje lá, eles vão recrutar e meter alguém amanhã lá em formação”. Depois reforça: “É mesmo urgente que vá lá”.

O que está a dizer é que o posto de trabalho de Sofia Figueiredo na sede da Autoridade para as Condições do Trabalho está em risco por Sofia Figueiredo exigir os seus direitos laborais.

Sofia Figueiredo: Dei-me por vencida e fui assinar, nunca me desvinculando da 2045. Eu pensei: “Vou brigar com isto até ao fim”. E brigar com isto até ao fim significa isso mesmo. Acho que a luta se faz no Parlamento e na rua. Eu sentia-me um bocadinho sozinha. Até que faço uma ponte com o Paulo Guimarães, do Porto, e conseguimo-nos articular.

O email que recebemos a 14 de fevereiro de 2020, o que convocava a manifestação em frente às Infraestruturas de Portugal, no Porto, estava assinado por Paulo Guimarães. Mas foi escrito, soubemos depois, por Sofia Figueiredo. A vigilante da ACT queria ajudar, mas não podia dar a cara. Tinha medo de represálias, de ser despedida enquanto estava a cumprir o período experimental, aquele que os protestos de seguranças conseguiram tirar dos contratos na IP. Paulo Guimarães, o líder orgânico dos protestos no Porto, chama a Sofia Figueiredo “uma máquina da luta”.

E Sofia Figueiredo assume que estava a comprar uma luta quando decidiu assinar o contrato da PSG. Queria manter o posto, mas também queria forçar as empresas a aplicar a transmissão de estabelecimento, a ir a tribunal resolver a questão, a criar precedente. Portanto, mudou-se para a PSG e pôs em tribunal os patrões: os novos, e os antigos, a 2045. É uma decisão utilitária. Também é uma linha vermelha moral.

Nuno Viegas: Nunca ponderou não assinar e procurar outro emprego?
Sofia Figueiredo: Não. Porque eu queria o meu posto de trabalho. Acho que são os meus direitos e que vou ter de ser ressarcida dos meus direitos. Portanto, eu continuo a aguardar que a adenda chegue ao meu local de trabalho.


Sofia Figueiredo, como Paulo Guimarães, convenceu, direta ou indiretamente, dezenas de seguranças privados a falar connosco durante os últimos meses. Mas, quando falou connosco não tinha uma adenda como a que a PSG aceitou aplicar na IP. Sofia Figueiredo teve de cumprir um período experimental. Nem a PSG, nem a 2045 reconhecem que devia ter ocorrido uma transmissão de estabelecimento nos edifícios do Ministério do Trabalho. E, como nos Tribunais, entre a Securitas e a COPS, as contas ficaram penduradas.

No final do ano, a PSG pagou a parte do subsídio de Natal referente a um mês de trabalho, os próprios confirmaram isto. A 2045 não deu um cêntimo e nunca respondeu aos nossos pedidos de entrevista. As duas empresas dizem que não é nada com elas. Refugiam-se na mesma lei. Atiram o vigilante para o mesmo limbo.

Não sabemos o número exato de pessoas desempregadas entre estes contratos, porque parece que nunca ninguém fez as contas. Perguntámos às empresas, aos sindicatos e aos reguladores. Só nas Infraestruturas de Portugal, de Lisboa a Valença, são dezenas. Com os Tribunais, com os edifícios do Ministério do Trabalho, o número vai subindo, deve chegar aos três dígitos.

Milhares de vigilantes passaram por este limbo no último ano e meio.

Quando se fica no purgatório, ninguém se responsabiliza. As dúvidas sobre o que fazer com estas pessoas, como dividir os encargos, arrastam-se em tribunal há mais de um ano. Desde que estes processos começaram, desde que falámos com os seguranças que fomos ouvindo, houve tempo para a vida deles mudar. Porque hoje o limbo legal duras meses, anos. 

Isilda Santos continua no Tribunal de Almada, mas colocou um processo em tribunal contra a empresa que a transmitiu, a Securitas. 

Denys Vatolin despediu-se da COPS, no Tribunal de Benavente. Agora, trabalha para a Esegur, mas mantêm o processo judicial contra o antigo empregador. 

João Carvalho, que estava no contrato das Infraestruturas de Portugal, continua desempregado. Entretanto, já teve de pagar a renovação do cartão de segurança privado, obrigatório para continuar a trabalhar legalmente 

Jorge Reis, transmitido da Strong Charon para a PSG nas estações ferroviárias, recebeu as adendas negociadas por Paulo Guimarães. Ainda planeia levar o patrão a tribunal. 

José Gomes, que não recebeu um contrato da PSG depois de ser transmitido pela Strong Charon, foi readmitido em junho, pela antiga empresa, com um novo contrato, sem antiguidade.

Sofia Figueiredo recebeu uma adenda da PSG em novembro de 2020 reconhecendo-lhe a antiguidade. A empresa cedeu, sem dizer que há transmissão, depois de pedir uma série de esclarecimentos à Direção-Geral do Emprego e das Relações do Trabalho, a DGERT.

Mas, afinal, quem tem razão?
O que dizem patrões, advogados, políticos e reguladores?
O que é devia ter acontecido a estas pessoas?

É nessas visões opostas, nos detalhes dessa luta judicial, que mergulhamos a seguir. No próximo episódio, falamos com os responsáveis.

FIM


“Purgatório” é o episódio dois da série “Exército de Precários”. 

As pessoas que fazem parte da comunidade Fumaça já têm acesso aos primeiros quatro episódios desta série e ainda a um conjunto de entrevistas “extra”: conversas aprofundadas com algumas das personagens centrais da história. Com este segundo episódio podem escutar em detalhe um resumo das muitas conversas que tivemos com Paulo Guimarães, vigilante das Infraestruturas de Portugal que tem liderado a luta dos seguranças do Porto por melhores condições de trabalho.

Se queres ouvir esta e outras entrevistas e ainda os primeiros quatro episódios da série, faz uma contribuição recorrente em fumaca.pt/contribuir, ajudando o Fumaça a ser o primeiro projeto de jornalismo totalmente financiado pelas pessoas.

Este episódio foi escrito pelo Nuno Viegas, que fez também a investigação e reportagem desta série com o Ricardo Esteves Ribeiro e comigo, Pedro Miguel Santos.
Eu e o Ricardo fizemos a edição e o factchecking.
O Bernardo Afonso fez a edição de som e o sound design, e compôs, interpretou e misturou a banda sonora original.
A Joana Batista criou a imagem, a Maria Almeida fez a estratégia de marketing e a Sofia Rocha e o Tomás Pinho implementaram a página online. Passem por lá para ver as ilustrações e a transcrição de todos os episódios.
A Margarida David Cardoso também ajudou na produção. Fazem ainda parte da equipa Fumaça: Danilo Thomaz e Mo Tafech.

Com o apoio:

A série “Exército de Precários” foi realizada com o apoio de bolsas de investigação jornalística atribuídas pela Fundação Calouste Gulbenkian (2018) e Fundação Rosa Luxemburgo (2020). Os contratos podem ser consultados em www.fumaca.pt/sobre.

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