Reparações históricas

Debate sobre a dívida pública do colonialismo

Gomes Eanes de Zurara. Não seria preciso muito mais do que andar um par de minutos desde o Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa, onde se realizou este debate ao vivo, para o ver. Engolido por centenas (milhares?) de pessoas que por ele passam diariamente sem lhe dar cavaco, sem darem conta sequer da sua existência — hoje ou sempre —, jaz ele, todo pedra e relevo, há mais de 150 anos. Nos últimos 60, junta-se também ao rol de ícones escolhidos pela ditadura de Salazar a ter lugar no Padrão dos Descobrimentos.

Gomes Eanes de Zurara. O nome dirá pouco a quem não tem de lavor escarafunchar a História colonial, mas as honras de estátua ninguém lhe tira. Rodeado de outras aclamadas figuras da expansão e da exaltação da expansão colonial portuguesa, incluindo o próprio Luís de Camões, que dá nome à praça e sobressai por mais alto ter sido posto, Zurara é em Lisboa símbolo de passado e presente. De um passado antigo — de Portugal imperial, colonial, esclavagista. De um presente atual — de uma nação cujos representantes políticos continuam a pintar esse Império com glória.

Gomes Eanes de Zurara. Foi preciso esperar até ao século XXI para que Zurara passasse de nome de placa de estátua que nem nas vistas dá a figura proa do estudo pós-colonial. Foi Ibram X Kendi quem o resgatou dos mares do esquecimento. O historiador norte-americano publicou em 2016 o livro Stamped from the Beginning: the Definitive History of Racist Ideas in America, vencedor do National Book Award for Nonfiction. Nele, aponta o dedo à pessoa que primeiro deixou escrita a ideia de que negros eram inferiores, o criador da “negritude”.

Gomes Eanes de Zurara. “Em 1452, o sobrinho do Infante D. Henrique, o rei Afonso V, contratou Gomes Eanes de Zurara para escrever uma biografia sobre a vida e o trabalho no comércio de escravos do seu ‘querido tio’”, escreve Ibram X Kendi. Continua: “Em 1453, Zurara terminou a defesa inaugural do comércio de escravos africanos, o primeiro livro europeu da era moderna sobre África. Chronica do descobrimento e conquista de Guiné inicia o registo histórico das ideias racistas anti-negros.” No livro, Zurara retrata os guineenses como inferiores, dizendo que “vivem como bestas”. Descrevendo a captura de 45 homens por parte de Infante D. Henrique à chegada ao território que hoje se chama Guiné-Bissau, escreve que “ele refletiu com grande prazer sobre a salvação daquelas almas que antes estavam perdidas.”

Gomes Eanes de Zurara pode servir de imagem do princípio de um projeto político que serviu a pilhagem de terras, a expropriação de recursos, a massiva violação sexual e a transformação de corpos negros em mercadoria, criando o maior mercado transatlântico de pessoas escravizadas na história. No seu texto do século XV encontra-se já alguma da linguagem de que a “missão civilizadora” portuguesa se apropriaria para justificar a manutenção desse império.  E hoje, mais de cinco séculos depois de Chronica do descobrimento e conquista de Guiné e 48 anos após a Revolução de Abril, os símbolos do colonialismo continuam bem vivos na construção da nação portuguesa — começando pelo hino e pela bandeira e terminando nos manuais escolares utilizados nas aulas de História. 

“Faz parte da construção da identidade nacional portuguesa o orgulho da colonização. Isso está incutido no pensamento social hegemónico de uma forma profunda”, resume Jessica Bruno, doutoranda do programa de pós-colonialismos e cidadania global do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, e uma das convidadas do debate que publicamos hoje. A ela juntam-se Elísio Macamo, professor catedrático de Estudos Africanos e Sociologia na Universidade de Basileia, e Yussef, militante do Movimento Africano de Trabalhadores e Estudantes – RGB e membro do grupo Consciência Negra, para discutir “A dívida pública do colonialismo.”

Quando, pela primeira vez, se passaram, em 2022, a contar mais dias passados depois do 25 de Abril do que durante a ditadura que o antecedeu, escolhemos debater um dos três “D”s da Revolução (“Desenvolvimento, Democracia e Descolonização”). Teremos realmente feito a descolonização? Será possível pagar as dívidas do colonialismo? Devemos implementar reparações históricas para vítimas e descendentes de vítimas do império? Devem os portugueses de hoje pagar pelas ações dos portugueses do passado?

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