Médio Oriente

Yazidis: o genocídio esquecido (2/2)

Este episódio foi produzido para ser ouvido e não apenas lido. O áudio original, acima, tem sons em inglês. Disponibilizamos a transcrição integral de toda a peça áudio, traduzida para português. A versão áudio, dobrada para português, pode ser ouvida abaixo.

PARTE 0 

No episódio anterior falámos sobre a comunidade Yazidi e o que aconteceu, em agosto 2014, quando o Daesh invadiu a região onde vivia, no norte do Iraque. Considerados “infiéis” e “adoradores do diabo”, cerca de 5000 yazidis foram mortos, muitos deles, enterrados em valas comuns. Mais de 6000 mulheres e crianças foram raptadas e escravizadas. 

Se ainda não ouviste a primeira parte, para aqui e vai ouvir. Será mais fácil entender o que a seguir vamos contar.

Entre 18 e 28 de março deste ano, viajei até ao norte do Iraque, conhecido como Curdistão iraquiano, para perceber como os yazidis deslocados estão a lidar com o trauma da violência que sofreram e como estão a lutar para preservar a memória do genocídio.

Apanhei um voo de Amã, capital da Jordânia, onde eu vivo, até Erbil, a capital da região curda do Iraque. Passei dez dias entre Erbil, no centro do Curdistão iraquiano, Dohuk, perto da fronteira da Síria, e Suleimania, perto da fronteira do Irão.

Eu sou a Marta Vidal. Seja toda a gente bem-vinda ao Dois Pontos, um programa Fumaça, de histórias contadas com tempo. 

PARTE I 

O que mais assusta na viagem entre Erbil, a capital da região curda do Iraque, e Dohuk, perto da fronteira da Síria, é a forma como o Majed conduz. O rádio do carro toca música popular curda com o volume no máximo e ele tira as mãos do volante para bater palmas e estalar os dedos. 

Estrada entre Erbil, a capital da região curda do Iraque, e Dohuk, perto da fronteira da Síria. Março de 2019.
Foto: Marta Vidal

A estrada é irregular, às vezes de terra batida. As melhores vias em direção a Dohuk passam por Mossul, mas o Majed não quer arriscar. Prefere ficar com o carro cheio de lama e poeira. Não quer passar perto de territórios que há não muito tempo estavam sob o controlo do Daesh, mas não se parece importar com o perigo de tirar as mãos do volante ou com o excesso de velocidade nas estradas estreitas e com curvas que passam por aldeias e vilas curdas. 

Quando decidi viajar até ao Curdistão iraquiano, pensei que só ia passar algumas semanas a fazer pesquisa e a escrever duas reportagens sobre a iminente derrota do Daesh, e sobre como os yazidis deslocados estavam a lidar com o trauma cinco anos depois do início do genocídio.

Pensei que ia voltar para a Jordânia, enviar as reportagens que escrevi e começar a trabalhar sobre um outro tema. Não imaginei que, meses depois da viagem, ainda ia estar a pensar sobre as histórias aterradoras que ouvi e a ler obsessivamente sobre o que aconteceu em 2014 – sobre porque é que o genocídio aconteceu, porque é o mundo não fez nada e porque é que o sofrimento Yazidi continua a ser ignorado.

Fui sem gravador, só com um bloco de notas e com o meu telemóvel para gravar as entrevistas mais importantes, sem imaginar que iriam ser ouvidas. Por isso, nesta reportagem faltam muitos dos sons da minha viagem, mas achei que as histórias que ouvi tinham que ser contadas. 

A meio da minha viagem, no dia 21 de março, os curdos celebraram o ano novo e o fim do inverno. Conhecido como Newroz, em português “novo dia”, o ano novo curdo é a festa mais importante. Dois dias depois, os curdos estavam na rua a celebrar por uma outra razão. 

Reportagem Euronews
As Forças Democráticas Sírias anunciaram o fim do autoproclamado califado do Estado Islâmico. O anúncio teve lugar após a reconquista militar da cidade de Baghouz, junto à fronteira com o Iraque. O combate no último reduto do Daesh na Síria decorria há várias semanas. Agora, os combatentes curdos e árabes das Forças Democráticas Sírias prometem lutar contra os milhares de extremistas que ainda estão espalhados pelo território.

Com o cigarro sempre aceso e a camisa muito bem engomada, Majed também celebrou. É curdo, tem 36 anos e nasceu na província de Hasakah, na Síria. Fugiu para a região curda do Iraque, em 2008, porque era procurado pela Mukhabarat, os temidos serviços de inteligência sírios, devido ao seu ativismo político. 

Majed, de 36 anos, fugiu para a região curda do Iraque, em 2008.
Fotografado em março de 2019.
Foto: Marta Vidal

Agora vive em Erbil e é apenas um entre um milhão e meio de refugiados e deslocados que procuraram abrigo no Curdistão iraquiano. Conheci o Majed através de amigos que trabalham com organizações não-governamentais de defesa dos direitos humanos no Médio Oriente.

Ele ia para Dohuk em trabalho e, por isso, ofereceu-me boleia, porque eu tinha marcado entrevistas lá com pessoas que trabalham com sobreviventes yazidis em campos de refugiados.

Estrada entre Erbil, a capital da região curda do Iraque, e Dohuk, perto da fronteira Síria. Março de 2019.
Foto: Marta Vidal

São menos de 150 quilómetros, mas a viagem entre Erbil e Dohuk demora mais de duas horas e meia. Soldados curdos, conhecidos como peshmerga, param-nos várias vezes em postos de controlo,  que parecem portagens, só que com soldados armados a revistar carros em vez de funcionários em cabines ou máquinas automáticas a receber o pagamento do trajeto. Os soldados curdos perguntam de onde somos, para onde vamos. Como o condutor é curdo, o nosso carro nunca fica parado mais de meio minuto. Se fossemos árabes seria diferente. As tensões entre curdos e árabes pioraram com a presença do Daesh, que tornou ainda mais complicadas as disputas territoriais e políticas entre as duas comunidades. 

“Curdos e europeus?”, perguntam os soldados. “Podem passar.” 

O Curdistão é diferente do resto do Iraque e essa diferença faz-se sentir em quase tudo: fala-se curdo, não árabe; a bandeira é diferente, o exército é diferente e até o visto para entrar no Curdistão iraquiano é diferente do visto emitido por Bagdade. A maioria dos curdos no Iraque sublinha essa diferença. Dizem que são curdos, não iraquianos. Por isso, em setembro de 2017, 92% dos curdos disseram sim à independência do resto do Iraque num referendo que o governo central de Bagdade anulou, declarando-o inconstitucional

Reportagem France 24
Jornalista:
Os votos ainda estão a ser contados, mas as celebrações de independência já começaram.
Homem curdo a celebrar na rua: O Curdistão não é o Iraque! Não precisamos de ficar com o Iraque.
Jornalista: Televisões curdas estimaram que 78% dos curdos participaram no referendo para a independência. Espera-se que o “sim” ganhe por uma larga margem. Para celebrar, saiu-se à rua da capital da região autónoma para um dia de celebrações.
Homem curdo a celebrar na rua: Estamos aqui a celebrar porque hoje criamos um estado curdo. Somos curdos. Não somos árabes, nem persas, nem outra coisa qualquer. Somos curdos e vamos ser para sempre curdos.
Jornalista: Enquanto se festejava em Erbil, forças de segurança iraquianas posicionaram-se na região disputada de Kirkuk, depois de Bagdade declarar um recolher obrigatório. Muitos residentes não curdos da região diversa opuseram-se ao referendo, tomando o partido do governo iraquiano que declarou que o referendo é inconstitucional. As autoridades curdas lembraram que o voto não é vinculativo e que é apenas uma forma do presidente curdo, Massoud Barzani, ter um mandato para negociar a independência. 

Os curdos continuam a fazer parte do Iraque, mas continuam também a levar uma vida à parte, muito diferente da que se vive em Bagdade.  

Desde a Guerra do Golfo, nos anos 90, que a região curda do Iraque é governada de forma autónoma. Em 1991, os Estados Unidos, a França e o Reino Unido estabeleceram no norte do Iraque uma zona de exclusão aérea para proteger os curdos perseguidos pelo regime de Saddam Hussein. Em 2005, o Curdistão iraquiano tornou-se oficialmente numa região federal autónoma reconhecida pelo Iraque e pelas Nações Unidas. 

Hoje, o Curdistão iraquiano é considerado uma das zonas mais seguras e estáveis no Iraque. Por isso,  recebe cerca de um milhão e meio de refugiados vindos da Síria e deslocados de outras zonas do Iraque. 

Em agosto de 2014, depois do ataque do Daesh e da invasão de Sinjar, centenas de milhares de yazidis procuraram abrigo no Curdistão iraquiano. Cerca de 200.000 ainda não regressaram a casa e muitos deles vivem há cinco anos em campos de refugiados espalhados pela região curda do Iraque.

Campo de refugiados em Dohuk, no Curdistão iraquiano, 2019.
Foto: Faris Mishko/Yazda

Na província de Dohuk, a região curda mais próxima da Síria e de Sinjar, há pelo menos 12 campos de refugiados servidos pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, conhecido em português como ACNUR. Parámos em Sharia, uma vila perto de Dohuk onde a maioria da população é Yazidi. Com a chegada de dezenas de milhares de yazidis que fugiram de Sinjar em 2014, criou-se um campo de refugiados que hoje dá abrigo a cerca de 20.000 pessoas. 

Há várias organizações não-governamentais a dar apoio humanitário nos campos, mas as condições continuam a ser más cinco anos depois de terem sido estabelecidos. As tendas e contentores não protegem do calor sufocante do verão, nem impedem a chuva de entrar no inverno. 

Campo de refugiados em Dohuk, no Curdistão iraquiano, 2019.
Foto: Faris Mishko/Yazda

Sem trabalho e sem oportunidades, os campos são espaços de tédio, de repetição. Há milhares de tendas brancas alinhadas, todas iguais. A única forma de ocupar o tempo é com a espera. Espera-se por notícias de familiares que desapareceram, espera-se que a situação em Sinjar melhore, ou espera-se pelas decisões dos pedidos de asilo para ir para um outro país, onde haja segurança e estabilidade e onde não se tenha de continuar a esperar. 

Mas acima de tudo, os campos de refugiados são espaços feitos de vazios – o vazio deixado pelas casas que foram destruídas, pelos familiares que morreram, pelas aldeias e vilas que já não existem. É o vazio de ser refugiado, de viver numa tenda e de já não pertencer a lugar nenhum.  

Falei com Bahar Ali e Bayan Rasul, as fundadoras de uma organização não-governamental curda chamada Emma, que dá apoio a refugiados yazidis e sobreviventes do genocídio e que tem um centro comunitário em Sharia, no distrito de Dohuk. As duas são curdas, viveram nos Países Baixos, onde chegaram como refugiadas e trabalharam juntas como ativistas. Bahar Ali falou-me sobre as dificuldades dos refugiados yazidis no Curdistão iraquiano.

Bahar Ali
O problema dos yazidis [refugiados no Curdistão Iraquiano] é que muitos querem deixar [os campos de refugiados], sentem que não têm ninguém que os proteja. [Quisemos] dar-lhes a mensagem de que todos nós temos a responsabilidade de os proteger. Publicámos um relatório sobre a situação nos territórios yazidis antes do Daesh e o relatório mostrou como eram negligenciados antes do Estado Islâmico. A região mais pobre no Iraque era a região Yazidi. Não havia escolas, nem estradas, nem distribuição de água. Eram um grupo muito marginalizado. 

Bahar trabalhou durante 30 anos em programas de ajuda humanitária e como ativista dos direitos humanos, especialmente dos direitos das mulheres. Horrorizada com as histórias de assassinatos, raptos e escravatura que começaram a surgir depois da invasão de Sinjar, em 2014, dedicou-se à causa Yazidi e a planear a reconstrução de Sinjar. 

Bahar Ali, ativista e cofundadora da organização não-governamental (ONG) Emma, no seu escritório em Erbil, no Curdistão iraquiano, 2018.
Foto: ONG Emma

Bahar Ali
A ideia de genocídio é contínua. Existia mesmo antes do Estado Islâmico. De acordo com o relatório e os workshops que fizemos, desenvolvemos um plano para reconstruir Sinjar e a província de Ninawa. Sabíamos que não era a altura para reconstruir o território, porque ainda estava em guerra, mas a ideia era dar-lhes esperança, dizer [aos yazidis]: “Fiquem aqui, estamos a pensar em reconstruir estas áreas para que possam voltar quando o Estado Islâmico deixar o território.” Foi uma mensagem positiva para os yazidis: “Dizer sim, somos todos responsáveis por vocês.” 

A responsabilidade do Curdistão iraquiano pelos yazidis, de que fala Bahar, é um assunto particularmente delicado. Antes do Daesh ter invadido Sinjar, a região estava sob o controlo dos peshmerga, as forças armadas curdas, que tinham o dever de proteger os yazidis. Mas quando o Daesh se começou a aproximar, os pershmerga – as únicas forças armadas presentes em Sinjar – retiraram-se sem resistir à invasão e sem avisar os yazidis do perigo que se aproximava. Mais tarde, as autoridades curdas disseram que foram forçadas a retirar-se por falta de recursos para combater o Daesh, mas os yazidis acusam os peshmerga de os terem abandonado e dizem que muitas vidas poderiam ter sido salvas se tivessem, pelo menos, sido avisados a tempo de fugir. 

Mas, na verdade, também foram as forças curdas a libertar Sinjar do Daesh. No dia 13 de Novembro de 2015, os peshmerga anunciaram a reconquista da cidade de Sinjar, como reportou a RTP:  

Reportagem RTP
No Iraque, militantes curdos conseguiram retomar o controlo da cidade de Sinjar que estava nas mãos do Estado Islâmico. O cenário que encontraram foi de destruição. Foram necessários 15 meses de luta para recuperar a cidade.

Batalhas entre os curdos e o Daesh continuaram até 2017, quando a presença do grupo terrorista foi completamente eliminada de Sinjar, mas até hoje muito poucos yazidis regressaram a casa. A maioria não tem nenhum sítio para onde voltar. Sinjar foi quase toda destruída e, cinco anos depois da região ter sido invadida, quase nada foi reconstruído. Sem financiamento do governo regional curdo nem do governo iraquiano, Sinjar parece habitada apenas por fantasmas. O canal de televisão turco TRT visitou a cidade e ouviu uma das poucas yazidi que regressou após a libertação. 

Reportagem TRT World
Jornalista
: Sinjar é praticamente uma cidade fantasma. A área era habitada por yazidis, uma minoria étnica e religiosa. Agora, as ruas têm apenas vestígios de vidas humanas antes da ocupação do Daesh para pessoas como Baybon, que voltou recentemente, mas diz que é impossível continuar a viver lá.
Baybon: A situação em Sinjar é muito má. Apesar de terem conseguido trazer de volta eletricidade, há cortes constantemente, às vezes não temos eletricidade durante vários dias. A água não se pode beber. Não fazem nada por Sinjar. A maioria das casas foram destruídas. 

A presença de várias forças armadas curdas e iraquianas, de conflitos entre elas e entre os próprios curdos tem impedido muitos yazidis de voltar para Sinjar. Apesar da região de Ninawa, onde fica o distrito de Sinjar, ser administrada pelo poder central iraquiano, a região tem sido alvo de disputas territoriais entre os dois governos. A província era oficialmente governada por Bagdade, mas, entre 2003 e 2014, o distrito de Sinjar era na prática gerido pelos curdos.

A maioria dos yazidis fala curdo e, por isso, tem sido frequentemente descrita como uma minoria religiosa curda. Mas em vilas como Bashiqa e Bahzan, perto de Mossul, os yazidis falam árabe como língua materna. O governo regional curdo diz que os yazidis são curdos e que, por isso, os seus territórios devem ser incluídos nessa região autónoma. Sinjar continua, por isso, a ser um território disputado.

Um comunicado publicado pela organização Yazda, em 2016, lembra que a identidade dos yazidis é uma escolha individual. A Yazda, que foi formada com o objetivo de representar e defender a comunidade Yazidi a nível mundial, e de que falamos no episódio anterior, defende que os yazidis não devem ser definidos como curdos ou iraquianos, mas como – cito – “um grupo com uma religião, cultura, história e valores distintos” e que foi precisamente por causa dessa identidade distinta que foram perseguidos durante séculos. 

PARTE II 

Em agosto de 2014, a única deputada yazidi no Parlamento iraquiano estimava que 6383 yazidis, maioritariamente mulheres e crianças foram raptados, escravizados e transportados para prisões, campos militares e casas de membros do Daesh entre o Iraque e a Síria. Tornadas escravas, as mulheres e raparigas yazidis foram sistematicamente violadas, espancadas e torturadas

Apenas algumas semanas depois, as primeiras mulheres começaram a fugir do cativeiro e a ser resgatadas. Yazidis deslocados no Curdistão iraquiano organizaram redes para encontrar e salvar as mulheres e crianças raptadas. Com contactos e informadores infiltrados nos territórios ocupados pelo Daesh, alguns yazidis, muitos deles à procura das suas próprias filhas, mulheres e sobrinhas, conseguiram resgatar centenas de mulheres e crianças. Os esquemas eram engenhosos. 

Reportagem NPR
Abdullah Shrim:Tínhamos informadores e pessoas que nos ajudavam com as missões de resgate, usando uma padaria como fachada.

No início ouve-se a voz de Abdullah Shrim, que antes do genocídio era apicultor, e montou uma rede que salvou 338 yazidis capturados. Ele contou à NPR – Rádio Pública Nacional, dos Estados Unidos, como funcionava: mulheres iam de porta em porta para vender pão, chocolates ou roupa, de modo a poderem entrar nas casas e ver se havia mulheres ou crianças yazidis aprisionadas. 

As operações de resgate envolviam riscos muito elevados e várias informadores foram apanhados pelo Daesh e executados. Para ajudar as famílias yazidis a encontrar familiares em cativeiro e financiar estas operações de alto risco, as autoridades curdas abriram um departamento dedicado a lidar com assuntos de rapto e resgate em Dohuk. O preço para resgatar um yazidi da escravatura do Daesh e trazê-lo para um campo de refugiados no Curdistão iraquiano variava entre os 2700 e os 13.500 euros. 

Na província de Dohuk, várias organizações começaram a dar apoio médico e psicológico aos sobreviventes que voltaram do cativeiro do Daesh, profundamente traumatizados. Bayan Rasul, outra das fundadoras da organização Emma, psiquiatra especializada no tratamento do trauma, falou-me de como tentou ajudar as sobreviventes yazidis a lidar com os problemas depois da fuga do Daesh.  

Bayan Rasul
As sobreviventes têm vários problemas. [Quando ainda estão em cativeiro dizem:] “Quando eu for libertada, todos os meus problemas vão ser resolvidos.” Mas, quando são libertadas, enfrentam muitos outros problemas. As casas foram destruídas, as famílias estão separadas, muitos membros da família foram assassinados, alguns [foram] para a Alemanha, Austrália ou o Canadá… Têm outros problemas. Quando estão nas mãos do Daesh a única preocupação é como libertar-se, como fugir, mas depois de fugir há muitos outros problemas que têm que enfrentar. 

Painéis com rostos das pessoas desaparecidas, em Sinjar, no Curdistão iraquiano, 2018.
Foto: Faris Mishko/Yazda

Bayan acrescenta que, até hoje, apenas metade dos cerca de 6300 yazidis raptados foram resgatados, os outros estão desaparecidos. E que o resgate da escravatura do Daesh é apenas o início de um resgate mais profundo do trauma dos horrores vividos e da devastação da comunidade Yazidi. 

Bayan Rasul
5% do orçamento [do Governo curdo] vai para o Ministério da Saúde, mas apenas 0,1% desse orçamento é usado para tratar doenças mentais, e só para tratar psiquiatria clássica: esquizofrenia, depressão e ansiedade. Não há programas para lidar com o trauma, nenhum apoio psicossocial. Não havia psicoterapeutas no Curdistão, em 2014. Por isso, desenvolvemos um plano para treinar professores, assistentes sociais, organizações não-governamentais e profissionais de saúde para como responder [ao trauma]. O trauma era coletivo, por isso também precisávamos de medidas coletivas. Começámos a trabalhar ao nível macro, a reunir-nos com ministros, autoridades curdas e yazidis para pedir que as mulheres que voltaram [do cativeiro do Daesh] fossem protegidas e reconhecidas como vítimas da guerra. 

Bayan sabe bem o que é ter de fugir do seu país. Escapou ao regime de Saddam Hussein, nos anos 90, estudou psiquiatria na Holanda e voltou para o Iraque com a missão de melhorar os cuidados de saúde mental e aliviar o trauma profundo que se vive numa região que continua a ser devastada por violência.

Bayan Rasul, psiquiatra e cofundadora da organização não-governamental (ONG) Emma, fotografada no escritório de Bahar Ali, em Erbil, no Curdistão iraquiano, 2018.
Foto: ONG Emma

No seu escritório, mostra-me desenhos feitos por sobreviventes yazidis que acompanhou como psiquiatra e terapeuta. Uma delas desenhou o retrato de uma amiga que se tinha suicidado em cativeiro para não ser violada. Outra desenhou uma borboleta, porque o seu maior desejo era poder voar dali para fora. Para fora das prisões do Daesh, mas também para fora dos campos de refugiados, para fora do corpo brutalizado que continua a carregar as cicatrizes de um sofrimento inimaginável.  

Bayan Rasul
Vimos na televisão que uma rapariga que tinha conseguido fugir do Daesh tinha cometido suicídio, porque tinha sido violada. Era considerada uma vergonha ser violada. Muitas raparigas tinham medo da famílias e dos crimes de honra. Para nós, era a altura para agir, porque nessa altura ninguém tinha um plano para responder [ao trauma]. A saúde mental no Curdistão ainda estava numa fase primitiva. 

Em 2015, um programa especial de reabilitação financiado pelo Governo alemão permitiu que cerca de 1100 sobreviventes yazidis que estavam a viver em campos de refugiados no Curdistão recebessem vistos humanitários para a região de Baden-Württemberg, no sul da Alemanha, para que tivessem acesso a cuidados de saúde e psicoterapia que são ainda difíceis de encontrar no Iraque.  

A Alemanha, que já recebeu 150.000, é um dos destinos mais desejados. Para uma comunidade tão fechada e com regras tão rígidas como a Yazidi, viver entre pares é fundamental. É uma questão de assegurar a sobrevivência da religião, do seu modo de viver, das suas tradições. 

Considera-se que a “virtude” da família depende da castidade das mulheres. As relações sexuais fora do casamento são proibidas e quando esta regra é quebrada, mesmo no caso de violação, considera-se que perderam a “honra” e passam a carregar um pesado estigma. 

Para além disso, a religião Yazidi é endogâmica. Só é considerado yazidi quem nasce yazidi, não são permitidas conversões nem casamentos fora da comunidade. As relações sexuais com pessoas de outra religião são estritamente proibidas e punidas com a expulsão da comunidade. Tradicionalmente, a violação por um homem não-yazidi era considerada uma das piores manchas na “honra” da família. Por isso, muitas das mulheres que foram raptadas cometerem suicídio para não serem violadas ou por não conseguirem viver com esse trauma e estigma.

Em Abril de 2007, uma rapariga yazidi de 17 anos foi apedrejada até à morte por membros da sua família em Bashiqa, uma vila perto de Mossul. Foi acusada de se ter convertido ao Islão para poder casar com um rapaz muçulmano. Por se ter apaixonado por alguém que não era yazidi, a família decidiu que devia morrer. 

Como ativistas feministas curdas, Bayan e Bahar fizeram parte de um grupo de defensores dos direitos das mulheres que se reuniu com líderes religiosos yazidis e com autoridades curdas para pedir que as sobreviventes de violência sexual que tinham conseguido fugir fossem protegidas. Em setembro de 2014, o principal líder espiritual yazidi, conhecido como Baba Sheikh, aceitou alterar as rígidas doutrinas da religião e anunciou que as mulheres que tinham sobrevivido à escravatura sexual do Daesh deviam ser bem-recebidas e protegidas pela comunidade.

Cerimónia em honra dos desaparecidos, organizada pela Yazda no aniversário do genocídio, em agosto de 2017, em Sinjar, no Curdistão iraquiano.
Foto: Faris Mishko/Yazda

Mas não se mostrou a mesma tolerância às crianças que nasceram em cativeiro, fruto das violações de combatentes do Daesh. As autoridades religiosas recusaram-se a reconhecê-las como yazidis e a recebê-las na comunidade. Só deram duas opções às mulheres que regressaram com filhos de membros do Daesh: deixarem-nas em orfanatos, mas permanecerem na comunidade, ou ficar com as crianças, mas deixarem de ser yazidi.

Alguns dias antes de me encontrar com Bayan e Bahar, falei com Hussam Abdullah, um advogado yazidi que a partir de 2014 se dedicou exclusivamente a questões de Direitos Humanos e a defender a sua comunidade. Falou comigo em árabe. 

Hussam disse-me que lidar com as crianças que têm uma mãe yazidi e um pai do Daesh é um dos maiores desafios. Não só porque a sociedade yazidi não aceita estas crianças, mas também porque quando são deixadas em orfanatos são registadas como muçulmanas, como manda a lei iraquiana sempre que não se sabe quem é o pai da criança. Os filhos são abandonados em orfanatos sem conhecer o seu passado. 

A violência sexual foi sistematicamente usada como uma arma de guerra e uma forma de destruir a comunidade yazidi. O corpo das mulheres tornou-se num campo de batalha e a violação numa forma de atingir toda a comunidade. Num discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas, a 20 de setembro de 2016, a advogada de Direitos Humanos Amal Clooney, que representou a sobrevivente yazidi Nadia Murad e assumiu a missão de levar os combatentes do Daesh à Justiça, disse que os crimes sistemáticos de violência sexual cometidos pelo Daesh fizeram parte de uma – cito – “burocracia do mal a uma escala industrial”. 

Amal Clooney
A Nadia foi trocada de um militante do Daesh para outro. Foi forçada a rezar. Forçada a aperaltar-se e a usar maquilhagem em preparação para as violações. Uma noite, foi abusada brutalmente por um grupo de homens, dois de cada vez, até ficar inconsciente. Mostrou-nos cicatrizes de queimaduras de cigarro e espancamentos. E disse-nos que, durante o seu sofrimento, soldados do Daesh chamaram-lhe “infiel suja”, vangloriaram-se pela conquista das mulheres yazidis e por eliminar a religião yazidi da face da terra. A Nadia esteve entre os 6700 yazidis que foram raptados pelo Daesh para serem vendidos em mercados e no Facebook, às vezes por apenas 20 dólares. 

Mulheres e crianças, algumas com apenas nove anos, foram compradas e vendidas como mercadoria sexual em mercados de escravos espalhados pela Síria e pelo Iraque. A burocracia da escravatura de que falou Amal Clooney incluía contratos registados e carimbados por autoridades religiosas do Daesh e uma complexa rede de transporte e venda de seres humanos nos mercados de Raqqa e Mossul, mas também em mercados online. Grupos no Whatsapp foram criados com as fotografias, descrições e preços das mulheres e raparigas disponíveis, como num catálogo. Quanto mais nova e mais bonita, mais cara. 

Um vídeo partilhado no YouTube e mais tarde republicado pelo The New York Times, mostra vários homens com barbas e turbantes, que se presume serem combatentes do Daesh. Riem-se enquanto anunciam: “Hoje é dia de mercado de escravas.” 

Reportagem New York Times
Primeiro combatente
: Hoje é dia de distribuição. Se Deus quiser, cada um vai ter a sua parte.
Segundo combatente: Juro, meu, estou à procura de uma rapariga yazidi. Espero encontrar uma.
Terceiro combatente: Quem quer vender?
Primeiro combatente: Eu pago três notas. Compro-a por uma pistola. Se tiver olhos azuis, o preço é diferente.  

Quando mulheres que tinham sido raptadas pelo Daesh começaram a chegar ao Curdistão iraquiano, terapeutas e psiquiatras viram-se confrontados com um desafio sem precedentes: como reabilitar mulheres que foram vendidas como mercadoria, violadas, queimadas, espancadas, torturadas, tratadas como objetos?

Vian Azad Shawqi, uma terapeuta curda com uma década de experiência a trabalhar com mulheres traumatizadas e vítimas de violência sexual, explica que um dos maiores desafios é devolver-lhes a autoestima. Para mulheres a quem foi colocado um preço, que foram vendidas, às vezes por tão pouco como 20 dólares, é difícil fazer voltar a acreditar que têm valor como seres humanos. 

Combinei encontrar-me com Vian em Suleimania, a segunda maior cidade do Curdistão iraquiano, no seu escritório na sede da Fundação Jiyan, uma das primeiras organizações a abrir uma clínica para tratar as mulheres yazidis. Depois de uma viagem de três horas de Erbil, desta vez em direção a leste, cheguei finalmente a Suleimania, uma cidade rodeada de montanhas, próxima da fronteira do Irão.

Vian é responsável pelos centros de terapia para mulheres que a Fundação Jiyan abriu nas principais cidades do Curdistão iraquiano. 

Perguntei-lhe se seria possível falar com alguma das yazidis que acompanhou como terapeuta. Apesar de ser possível, Vian não recomendou falar com elas sobre o trauma. Porque, mesmo vários anos depois, contar repetidamente o que aconteceu reabre feridas e cada entrevista que dão fá-las reviver o sofrimento – têm flashbacks, pesadelos e é como se a violência que sofreram voltasse a ser infligida.

Desenho cedido pela Fundação Jiyan, que tem centros de reabilitação para vítimas de violações dos direitos humanos no Curdistão iraquiano, sobretudo mulheres e crianças. Desenhos realizados entre 2014 e 2017, fotografados em 2017.

Desde setembro de 2014 que jornalistas se têm deslocado até campos de refugiados para ouvir as histórias das mulheres yazidis que sobreviveram aos horrores do Daesh. Os relatos de violência sexual, em particular, captaram a atenção de audiências internacionais. Descrições gráficas de violações brutais e dos mercados de escravos ocuparam inúmeras páginas de jornais e noticiários, mostrando fotografias das vítimas – muitas delas menores – com os seus rostos expostos. O sofrimento yazidi tornou-se num espetáculo mediático, por vezes com pouca preocupação em proteger a identidade e a dignidade das vítimas

Desenho cedido pela Fundação Jiyan, que tem centros de reabilitação para vítimas de violações dos direitos humanos no Curdistão iraquiano, sobretudo mulheres e crianças. Desenhos realizados entre 2014 e 2017, fotografados em 2017.

Encontrar sobreviventes para entrevistar é difícil e torna-se ainda mais complicado – e eticamente duvidoso – quando estão ainda em situações instáveis e vulneráveis, a viver em tendas, em campos de refugiados e sem o apoio de familiares. Por isso, sem desvalorizar a importância de recolher testemunhos e o trabalho que já foi feito sobre o assunto, decidi não perguntar a sobreviventes pelas suas experiências traumáticas. 

Desenho cedido pela Fundação Jiyan, que tem centros de reabilitação para vítimas de violações dos direitos humanos no Curdistão iraquiano, sobretudo mulheres e crianças. Desenhos realizados entre 2014 e 2017, fotografados em 2017.

Uma das pacientes que Vian tratou tinha 31 anos quando foi raptada pelo Daesh com os seus filhos. Isto foi o que lhe contou.

Vian Shawqi
Quando o Daesh veio, a família estava a dormir, era tarde. O marido dela pertencia aos peshmerga e estava em Dohuk. Ouviu pessoas a gritar, tentou fugir, mas viu os militantes do Daesh. Tinham todos barbas e estavam a juntar as mulheres. Queria fugir para a casa dos pais, mas os militantes do Daesh apanharam-na. Levaram-na para perto de carros que já estavam cheios de mulheres. Disse-lhes que era casada e que tinha filhos. Pediu que a deixassem ir embora, mas era demasiado bonita, por isso levaram-na. Levaram-na para uma aldeia que nunca tinha visto antes e fecharam-na num quarto com outras quatro mulheres e com os filhos.
Uma das mulheres que estava no quarto estava grávida de oito meses. Estava no quarto e disseram-lhe que era o dia em que ia ser violada. Já tinha ouvido outras mulheres a serem violadas. Em duas horas, foi violada por seis homens. A mulher que estava grávida estava a sangrar, porque tinha sido violada. Ela bateu à porta a pedir ajuda, a dizer:
“Esta mulher precisa de ajuda, está a sangrar. ”  Mas ninguém respondeu. Continuou a sangrar até de manhã. As outras mulheres no quarto não fizeram nada, tinham medo de ser violadas também, ainda não tinham sido violadas. Sangrou até de manhã. O cheiro do sangue era muito forte. A mulher morreu de manhã e ela [a paciente de Vian] disse: “Eu não sabia que a morte tinha cheiro.” 

Apesar de ser impossível confirmar esta história, o que nos foi contado é semelhante ao que muitas outras sobreviventes yazidis relataram em entrevistas, escreveram em livros e gravaram em testemunhos. 

Investigações de organizações de direitos humanos como a Amnistia Internacional e a Human Rights Watch concluíram que a escravatura sexual das mulheres yazidis foi cuidadosamente planeada.

Muitas das mulheres e raparigas raptadas foram distribuídas pelos combatentes como recompensa pela participação em batalhas importantes.

Desenho cedido pela Fundação Jiyan, que tem centros de reabilitação para vítimas de violações dos direitos humanos no Curdistão iraquiano, sobretudo mulheres e crianças. Desenhos realizados entre 2014 e 2017, fotografados em 2017.

Num artigo publicado no The New York Times, a jornalista Rukmini Callimachi, especialista em grupos terroristas, considera que a promessa de escravas sexuais foi uma forma de recrutar homens vindos de sociedades conservadoras, onde o sexo fora do casamento é proibido. O artigo mostra como a violação sistemática de mulheres e raparigas yazidis estava profundamente enraizado na organização e na sua teologia radical, ao ponto de ser – cito – “consagrada nos princípios fundamentais do grupo”. 

Desenho cedido pela Fundação Jiyan, que tem centros de reabilitação para vítimas de violações dos direitos humanos no Curdistão iraquiano, sobretudo mulheres e crianças. Desenhos realizados entre 2014 e 2017, fotografados em 2017.

A escravatura sexual foi um aspeto tão importante na ideologia do Daesh que o grupo publicou vários artigos e panfletos a justificar a prática com explicações religiosas, baseadas em interpretações fundamentalistas e uma leitura seletiva do Alcorão. Também publicou manuais práticos e instruções de como tratar as escravas. Numa das publicações online, o grupo extremista explica as regras da escravatura sexual no formato pergunta e resposta:

Pergunta 6: É permitido vender uma escrava?
Resposta: É permitido comprar, vender, ou oferecer como prenda escravas e escravos, pois tratam-se apenas de propriedade. 

Pergunta 19: É permitido bater numa escrava?
Resposta: Sim, é permitido bater numa escrava de forma disciplinar

Pergunta 13: É permitido ter relações sexuais com uma escrava que ainda não tenha atingido a puberdade?
Resposta: É permitido ter relações sexuais com uma escrava que ainda não tenha atingido a puberdade se esta estiver apta para relações sexuais. Se não, é suficiente desfrutar dela sem relações sexuais. 

Pergunta 5: É permitido ter relações sexuais com uma escrava imediatamente após a ter adquirido?
Resposta: Se a escrava for virgem [o seu proprietário] pode ter relações sexuais com ela imediatamente após a ter adquirido. Contudo, se não for [virgem], o seu útero deve ser purificado antes. 

A resposta à pergunta 5 é explicada melhor numa outra publicação: “útero purificado” significa esperar um mês pela menstruação da escrava para se certificar de que não está grávida. Uma das regras do Daesh dizia que um homem não podia ter relações sexuais com a sua escrava se ela estivesse grávida.

No relato da paciente de Vian, há apenas um detalhe que difere de outros testemunhos: a violação de uma mulher grávida. 

Mas os relatos de muitos outros sobreviventes mostram como muitos combatentes ignoraram constantemente as suas próprias regras. No livro “The Terrorist Factory”, uma sobrevivente yazidi, entrevistada pelo autor Patrick Desbois, descreve como o combatente do Daesh que a comprou num mercado a fechou num quarto de hotel em Mossul e a forçou a prostituir-se. Isto apesar da prostituição ser expressamente proibida pelo Islão. Mas as claras contradições entre a ideologia fundamentalista e o pragmatismo brutal do Daesh mostram como muitos dos militantes que se juntaram ao grupo fundamentalista foram atraídos, não pela ideia de um estado governado pela mais rígida lei islâmica, mas por promessas de sexo, dinheiro e, acima de tudo, poder. Estas promessas atraíram milhares de pessoas de todo o mundo. 

Um estudo publicado em 2018 pelo Centro Internacional para o Estudo da Radicalização, da Universidade de Londres, calculou que, ao todo, cerca de  40.000 pessoas, de 80 países, se juntaram ao Daesh. Entre eles, cerca de 5900 vieram da Europa ocidental e 7200 da Europa do Leste.

O Daesh não foi um grupo composto apenas por iraquianos e sírios e a ideologia do Islão mais fundamentalista que se conhece. Foi uma organização terrorista internacional com membros de todo o mundo e que enriqueceu à custa de atividades criminosas como o rapto, a extorsão, o roubo e venda de petróleo, o contrabando de drogas e o tráfico de antiguidades nos territórios invadidos entre a Síria e o Iraque. 

Parte III

Sentado à frente do computador no seu escritório, em Dohuk, o ativista yazidi Khidher Domle, investigador na Universidade de Dohuk, mostrou-me os arquivos que tem vindo a reunir sobre o genocídio yazidi nos últimos cinco anos. Estão todos organizados em pastas, no ambiente de trabalho do seu computador.

Khidher Domle, ativista e investigador na Universidade de Dohuk, fotografado no seu escritório, em 2019.
Foto: Marta Vidal

Khidher abre a primeira pasta. Avisa-me que tem imagens chocantes. Mostra-me fotografias de valas comuns e cadáveres. Pára numa fotografia de um bebé morto, o pequeno corpo enrolado numa manta branca. Explica o que é inexplicável: o bebé foi envenenado para castigar a mãe, uma mulher yazidi que foi raptada pelo Daesh com os filhos e que tentou fugir. A imagem é tão chocante que me esqueço de perguntar quem tirou a fotografia, como, onde, quando. Faltam-me as palavras e as minhas mãos estão paralisadas, não consigo tirar notas. 

Nessa noite não consegui dormir, como aconteceu em várias outras noites passadas em branco em Erbil. Fechava os olhos e voltava a ver aquelas imagens, a ouvir histórias de uma crueldade que eu não consigo compreender.

Mais tarde, liguei ao Khidher para confirmar os detalhes da história. Ele disse-me que a fotografia tinha sido tirada pela enfermeira de um hospital perto de Raqqa, para onde o bebé foi levado depois de ter sido envenenado. Este relato foi confirmado por outras fontes que contavam a mesma história. Lembrei-me depois de outros casos de crianças yazidis brutalmente assassinadas. Como o da menina de cinco anos acorrentada fora de casa, ao sol, e deixada morrer, à sede, e que está agora a ser julgado num tribunal alemão, de que falámos no primeiro episódio.  

Quando recupero a fala, Khidher já me está a mostrar uma outra pasta, cheia de documentos relacionados com os mercados de escravos. Diz-me que são cópias de contratos de venda de escravos, carimbados pelo Daesh. Print screens de negociações que funcionam através do Whatsapp, com fotografias de mulheres muito jovens, algumas menores de idade, com maquilhagem carregada e roupas reduzidas, acompanhadas por descrições, a idade e o preço. Explica que as imagens foram gravadas por pessoas que conseguiram infiltrar-se nas redes de tráfico humano do Daesh e fazer-se passar por compradores para tentarem resgatar as mulheres raptadas. 

Como todos os ativistas yazidis que conheci, Khidher divide a sua vida num antes e num depois de 2014. 

Khidher Domle
Lembro-me que a primeira vez que conheci pessoas do teu país e de Espanha foi em 2013. Veio uma delegação [de Portugal e Espanha] e, nessa altura, eu desenvolvi um programa de educação e resiliência para refugiados em KRI [Kurdistan Region of Iraq – Região Curda do Iraque]. Nessa altura trabalhava com ONGs com programas de coesão social entre deslocados internos, comunidades locais e refugiados. O meu mestrado é em peacebuilding [em português, construção da paz]. A minha tese foi sobre o papel da televisão em peacebuilding, um estudo de caso em Kirkuk, sobre como os média trabalham [com conflito] lá. Interessava-me muito a coesão social, paz, e educação e resiliência, comunicação social e programas do no harm [em português, a obrigação de não causar dano] em zonas de conflito. 

Mas depois veio o Daesh. E tudo mudou.

Khidher Domle
Quando a tragédia começou, em agosto de 2014, eu estabeleci uma pequena equipa de voluntários para apoiar deslocados em Sharia [campo de refugiados onde a maioria da população é yazidi]… Estabelecemos um grupo de voluntários. Um mês depois, comecei a focar-me na situação das mulheres em cativeiro, a seguir casos de sobreviventes e de mulheres em cativeiro.

Apercebendo-se da importância de reunir documentos e provas dos crimes que estavam a ser cometidos contra os yazidis, começou a criar uma base de dados com as fotografias e todas as informações que considerou importantes sobre o genocídio em curso. Mostrou-me vários documentos sobre combatentes do Daesh que ocuparam posições importantes na organização terrorista. 

Publicou até um livro sobre o assunto, com o título Black Death, em português “A morte negra”, que foi recentemente traduzido para inglês.   

Khidher Domle
Temos vários ativistas no campo que começaram a reunir e a contar as histórias dos yazidis em inglês, em árabe e em curdo. Isto ajuda-nos a criar um ambiente de apoio internacional. O último ponto [sobre a importância de contar histórias] é que até agora temos pessoas que não acreditam que isto aconteceu aos yazidis. Estava com o Hari [outro ativista de direitos humanos] em Mossul e estávamos a moderar uma conversa [parte de um workshop] para uma ONG. Não fui eu que mencionei o assunto dos yazidis na conversa, foram os membros do grupo. Mas nem sabiam que eu era yazidi, eu estava a facilitar a sessão.
Alguns disseram que o que os yazidis dizem não é verdade, que é uma farsa. Mas quando acabei  [o workshop] disse que este problema era muito importante, que o mundo inteiro estava a falar sobre o que aconteceu aos yazidis, as mulheres que foram raptadas e usadas como escravas, vendidas, forçadas a tornar-se muçulmanas, separadas das famílias, assassinatos em massa… Isto aconteceu. “Devias ler sobre isto, é a tua história, é a história do teu vizinho, é uma história humana, está documentada.

Como é que pessoas na Europa percebem o que aconteceu aos yazidis e acreditam no que aconteceu, mas tu que estás a 25 quilómetros de distância não acreditas?”

Contar o que aconteceu é também uma forma de lutar contra o apagamento e a marginalização de que foram vítimas durante tantos séculos. É uma luta pela memória, uma luta contra o esquecimento. 

Khidher Domle
Documentar a tragédia faz parte da tentativa de proteger a dignidade das vítimas. Durante a história, mais de 73 vezes os yazidis enfrentaram genocídios. Nunca foram documentados por mãos yazidis. Esta é a primeira vez que [o genocídio] está a ser documentado por yazidis. Antes, era apenas transmitido de forma oral no dialeto de Sinjar. Desta vez, é diferente. Quando comecei, fui a primeira pessoa a publicar um livro, o Black Death, mas outros começaram [a publicar] também. Temos várias pessoas a colecionar e contar histórias. Há várias ONGs a contar as histórias das vítimas de diferentes comunidades e a partilhá-las. 

Antes de 2014, sabia-se pouco sobre esta comunidade, que durante séculos viveu isolada, procurando refúgio nas montanhas e nos lugares mais inacessíveis, e, portanto, mais protegidos da perseguição. Há muito poucos documentos escritos antes do século XX sobre os yazidis e os que se encontram disponíveis em arquivos otomanos ou nos relatos de viajantes estrangeiros foram sempre escritos por pessoas que não faziam parte da comunidade e, por isso, com pouco acesso e limitada compreensão de um grupo tão fechado. Talvez seja por essa razão que durante tanto tempo dominaram ideias falsas sobre os yazidis como pagãos, adoradores do diabo e veneradores do sol. 

Por ser uma comunidade com uma história oral, mas também por se tratar de uma pequena minoria historicamente marginalizada, não há registos dos 73 genocídios que os yazidis dizem ter sofrido no passado. Mas agora, pela primeira vez, o genocídio cometido pelo Daesh está a ser sistematicamente documentado por sobreviventes e ativistas. Khidher explica. 

Khidher Domle
Acho que reunir estas provas é novo, é uma nova proposta de educação para as novas gerações. Porque quando os nossos pais ou avós nos dizem o que nos aconteceu, às vezes, questionamos: “Como é que aconteceu?” Quando o grande genocídio aconteceu nos últimos anos do Império Otomano, por volta de 1918, ao mesmo tempo que o genocídio arménio, ninguém se focou nos yazidis. Milhares, dezenas de milhares yazidis foram vítimas deste genocídio, mas ninguém documentou. As pessoas agora compreendem a importância [de documentar] como parte da [nossa] história, cultura e como forma de proteger a identidade. Isto leva-nos a trabalhar ainda mais, porque estes genocídios aconteceram porque somos yazidis. 

Em 1915, o Império Otomano começou uma campanha de extermínio sistemático da minoria arménia, que foi deportada, assassinada e perseguida até 1923. A eliminação da população arménia no Império Otomano foi reconhecida como genocídio por vários países, incluindo Portugal, e é um dos genocídios mais estudados da História. Mas pouco se sabe sobre os yazidis que também foram perseguidos nessa altura ou sobre as aldeias que foram destruídas. 

Os assassinatos e a violência física são os principais atos do genocídio, mas há outras formas de eliminar uma comunidade. Destruir aldeias e lugares sagrados é também uma maneira de apagar provas da sua existência e de lhe negar um lugar não só no mapa, mas também na história. 

Quando o Daesh atacou Sinjar, tentou destruir tudo. Os templos e monumentos religiosos yazidis foram os primeiros a ser eliminados. Um projeto da agência de investigação Forensic Architecture (em português, Arquitetura Forense), um grupo de pesquisa com sede na Universidade de Londres que usa as técnicas e tecnologias da arquitetura para investigar violações de direitos humanos, treinou membros da organização Yazda, de que falámos no episódio anterior, para documentarem e recolherem provas da destruição da herança cultural yazidi. 

Apesar das tentativas de apagar a memória cultural dos yazidis, Khidher diz-me que quem voltou para Bashiqa, uma vila maioritariamente yazidi próxima de Mossul, está a lutar contra este apagamento. 

Khidher Domle
Em Bashiqa, quando o Daesh tomou controlo das regiões, destruiu todos os santuários e templos yazidis. Quando os yazidis voltaram, a primeira coisa que fizeram foi reconstruir os santuários e templos. Foi tudo feito por voluntários, tudo pessoas da comunidade, alguma delas fui eu que as treinei como voluntárias.

Uma das histórias [em Bashiqa] que me tocou foi a história de uma mulher muçulmana que vivia lá, que também tinha sido vítima do Daesh. É muçulmana sunita, trabalhou todos os dias com os yazidis para os ajudar a reconstruir os templos. 

Há várias outras histórias de muçulmanos que ajudaram yazidis e desafiaram as autoridades do Daesh para os proteger. Alguns arriscaram a vida para permitir que mulheres e crianças que tinham sido raptadas pudessem fugir dos territórios controlados pelo Daesh e a procurar abrigo no Curdistão iraquiano.

Foi assim que Nadia Murad, Nobel da Paz em 2018, e algumas outras sobreviventes yazidis conseguiram fugir. Depois de escapar da casa onde estava presa, numa noite em que o último homem que a comprou se esqueceu de trancar a porta, Nadia caminhou durante várias horas pelas ruas de Mossul. Na sua autobiografia, descreve como decidiu bater à porta de uma das casas onde viu a luz acesa para pedir ajuda. O filho mais velho do homem que abriu a porta, Omar Abdel Jabar, comprometeu a segurança da sua família para tirar Nadia de Mossul e levá-la até um campo de refugiados, no distrito de Dohuk. Ajudar escravas yazidis que tinham escapado era perigoso e nas ruas de Mossul cartazes colocados pelo Daesh anunciavam uma recompensa de 4500 euros a quem devolvesse um yazidi em fuga. 

O Daesh tentou eliminar os yazidis através de assassinatos, violações, escravatura, tortura e conversões forçadas. Tentou apagar a identidade yazidi através da destruição de aldeias e lugares sagrados, através do rapto e da transferência de crianças yazidis, que foram dadas a famílias de combatentes ou levadas para campos de treino e doutrinadas. 

O esforço de ativistas e sobreviventes yazidis para registar todos estes crimes é uma forma de resistir à tentativa de apagamento e uma maneira de preservar a memória. Vai desde os sobreviventes como Nadia Murad que se recusaram a permanecer calados e que desafiaram tradições e normas culturais para denunciar os crimes, aos ativistas como Khidher que têm passado os últimos cinco anos a documentar meticulosamente o que aconteceu aos yazidis, para que o mundo não se esqueça e para que nunca mais volte a acontecer. 

A última pasta de documentos que Khidher me mostra está cheia de fotografias de tatuagens. A primeira associação que faço é com os sobreviventes do Holocausto, com números tatuados nos braços para serem identificados pelos nazis. Nos campos de concentração, os judeus deixaram de ser identificados pelos seus nomes ou lugares de origem. Foram reduzidos a números. 

Cerimónia em honra dos desaparecidos, organizada pela Yazda, no aniversário do genocídio, em agosto de 2017, em Sinjar, no Curdis.
Foto: Faris Mishko/Yazda

As tatuagens que Khidher me mostra fazem precisamente o contrário. Foram feitas pelos próprios sobreviventes, com agulhas e tinta improvisada. Uma sobrevivente yazidi usou o leite materno de uma outra prisioneira para tatuar o nome do seu pai e do seu marido. Outra tentou tatuar o nome verdadeiro dos filhos nos braços, para que eles não se esquecessem de como se chamavam mesmo depois do Daesh os ter forçado a converter e de lhes ter mudado os nomes. 

Se a batalha para eliminar a comunidade yazidi foi lançada sobre os corpos que o Daesh assassinou, violou e torturou, a luta pela memória também foi travada na própria pele. Com agulhas e tinta improvisada, os yazidis tatuaram datas de nascimento, nomes de famílias, de aldeias e de pessoas amadas, para recordar quem são, mas também para que os corpos que um dia fossem encontrados em valas comuns pudessem ser identificados. 

Na última fotografia que Khidher me mostra, um rapaz adolescente sorri e estende o braço com uma mensagem em curdo:

“Mãe e pai, gosto muito de vocês.”

Escreveu-a para que, se não fosse encontrado vivo, a família pudesse receber o seu corpo com a mensagem.  

Felizmente, sobreviveu para contar a história. 

FIM

Esta reportagem foi escrita pela Marta Vidal, a partir do Curdistão Iraquiano e da Jordânia.

Na equipa de Lisboa, o Pedro Miguel Santos e Bernardo Afonso fizeram a edição. A Margarida David Cardoso fez a revisão.

A banda sonora que ouviste foi reorganizada e remisturada pelo Bernardo Afonso, usando as seguintes músicas:

– ‘Medley’, ‘Bayke Mi’, ‘Ay Shengal’ de Adir Jan;

– ‘Zarokeke Şengalê’, ‘Ev Çi Hal E’, ‘Ciyaye Sengale’ de Nîzamettîn Arîç

– ‘Daf o Oud’, ‘6 Beats’, ‘Distance’, ‘On the Surface’, ‘Solo at Opera Graz’, ‘Pontic Dance’, ‘When Cultures Talk in Same Language’ de Hossein Zahawy;

Também ouvimos excertos de trabalhos jornalísticos da Euronews, France 24, RTP, TRT, New York Times e CBS.

Fazem ainda parte da equipa Fumaça: Ana Freitas, Frederico Raposo, Joana Batista, Maria Almeida, Ricardo Esteves Ribeiro, Mo Tafech, Sofia Rocha e Tomás Pinho.

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