Opinião

“Ainda não foste derrotado”, por Ricardo Esteves Ribeiro

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Há quem cheire os livros para aprender mais sobre eles. Eu encosto-os à face. You Have Not Yet Been Defeated (Ainda Não Foste Derrotado, em inglês), lia-se na capa. Foi amor à primeira vista. Não paixão, daquelas que vêm e vão, sem que lhes tomemos o gosto. Amor, mesmo. O que fica depois da paixão.

Alaa Abd El-Fattah escreve essencialmente sobre amor. Sobre o amor como escolha. O amor como ação radical. O amor pelo filho, Khaled (que significa imortal, em árabe). O amor pela Praça Tahrir, pelo povo e pelo país (os egípcios e o Egito), pelos mártires do regime e as suas famílias, pela igualdade, a justiça, a liberdade. Mais do que tudo, Alaa escreve sobre o amor pela Revolução.

O bailarino precisa
do público.
A autoridade precisa
do povo.
Mas o revolucionário
quando se ergue
não se importa com nada que não 
amor.

excerto do texto Graffiti For Two

A partir de janeiro de 2011, a Primavera Árabe levou milhares e milhares de pessoas para a Praça Tahrir (que significa libertação, em árabe), no Egito, exigindo o fim do regime sanguinário liderado por Hosni Mubarak. Alaa Abd El-Fattah voou da África do Sul, onde vivia, para estar entre elas. Mas o sonho que a Praça carregava, que carregava a gente na Praça, lado a lado, punho cerrado e peito preenchido — de raiva, de alegria, de esperança, de solidariedade —, deu de caras com a morte que nada tem mais que isso mesmo: morte. A Revolução obrigou Hosni Mubarak a demitir-se, mas o regime não caiu nunca. De Hosni Mubarak a Mohamed Tantawi, a Mohamed Morsi, a Adly Mansour, a Abdel Fattah el-Sisi — seja quem for a cara do poder —, o regime do Egito só serve uma coisa: a morte. Desde que a Praça Tahrir foi ocupada, em 2011, centenas de famílias tiveram que enterrar os seus filhos antes de tempo, antes do mundo com que sonhavam ter estado sequer perto. Milhares foram postos atrás de grades — uma outra forma de matar. Assassinados por quem tem medo das suas ideias, do seu amor. 

Talvez no início eles tenham matado os mártires para travar a Revolução, mas porque é que continuaram a matar depois de provado uma vez e outra que a Revolução não ia acabar? A matança só aumentou à medida que eles se aproximavam da derrota. Lembro-me dos snipers que apareceram no dia da Batalha do Camelo, vieram tarde, depois de ter ficado claro que a Praça ia aguentar. Era matar por matar, sem qualquer objetivo estratégico: matar simplesmente para nos privar do imortal.

excerto do texto Half An Hour With Khaled

Alaa Abd El-Fattah foi detido em outubro de 2011 por, alegadamente, ter incitado à violência durante um protesto desarmado, semanas antes. Um protesto onde não foi preciso o seu incitamento para que a polícia militar decidisse executar um massacre onde assassinou 26 pessoas. 

Senhor, porque é que levais sobretudo os pobres? Como é que a bala, o tanque sabem a diferença? O sangue é o mesmo, o túmulo é o mesmo, mas temos enganado o martírio uma e outra vez.

excerto do texto To Be with the Martyrs, for that is Far Better

Desde outubro de 2011, tem passado a maior parte da sua vida detido ou em liberdade condicional. Durante uma parte significativa desse tempo, esteve em isolamento, longe da sua família, do seu filho, Khaled, nascido enquanto aguardava julgamento; sem acesso a informação, a livros, jornais, ou papel e caneta. E ainda assim, durante uma década, Alaa Abd El-Fattah não parou de escrever.

Corremos em direção às balas porque amamos a vida, e vamos para a prisão porque amamos a liberdade.

excerto do texto Half An Hour With Khaled

Em outubro de 2021, exatamente dez anos depois da sua detenção, um conjunto anónimo de dezenas de amigos, familiares e camaradas juntaram, editaram e traduziram escritos seus produzidos durante uma década, dentro e fora da prisão, e publicaram o livro You Have Not Yet Been Defeated. Ao fazerem-no, sabiam estar a responder à ditadura egípcia: se a contínua detenção de Alaa quer travar a sua resistência radical, a sua luta por justiça, espalhar as suas palavras pelo mundo multiplica-a ainda mais.

Apagar – para a revolução –
uma página
é dar-nos
uma oportunidade
para pensar de novo
e escrever.

excerto do texto Graffiti For Two

A Revolução de 2011 foi derrotada, escreve Alaa Abd El-Fattah. E escreve-o com a lealdade de quem sabe que só admitindo os erros e as derrotas se aproxima dos sonhos por cumprir. O sonho de um Egito livre, mas não só. De mundo livre. Radicalmente livre. 

O que acontece a um sonho adiado?
Será que seca 
como uma passa ao sol?
Ou apodrece como uma ferida –
e depois corre?
Será que fede como carne podre? Ou será que o seu sangue
te fará ficar bêbedo
fermentado 
como xarope?
Talvez apenas se vergue
como um peso pesado.
Ou será que explode?

excerto do texto Graffiti For Two

Alaa Abd El-Fatteh está em greve de fome desde 2 de abril de 2022, preso depois de condenado por ter “disseminado notícias falsas”. As suas exigências não surpreendem, são tão radicais como se espera — pede a “libertação de todas as pessoas presas nas prisões da Agência de Segurança Nacional ou na sua sede”, de todas as pessoas que “excederam o período de prisão preventiva”, de “todas as pessoas que foram sentenciadas inconstitucionalmente (de acordo com a nova Constituição)”, e a “absolvição ou liberdade condicional para todas as pessoas condenadas em casos onde não haja vítimas”. 

Nem o governo do Reino Unido (onde Alaa tem também nacionalidade) nem o do Egito parecem importados com a possibilidade da sua morte. Enquanto isto, Sisi, o atual presidente do Egito, entretém-se vangloriando-se pelo seu papel ambientalista, enquanto organizador da COP27, agendada para novembro no Cairo, a capital. Uma conferência onde representantes políticos de todo o mundo se reunirão para discutir a crise climática e o futuro da humanidade num país com mais de 60 mil presos políticos. A ironia tem destas coisas.

Ao 167.º dia, Alaa Abd El-Fattah corre real perigo de vida. Mas há uma coisa que é certa: o seu sonho, seu e de toda uma geração de egípcios, ainda não foi derrotado. Será que explode?

Nota: a bem da transparência, importa dizer que eu, Ricardo Esteves Ribeiro, e a Margarida David Cardoso, também jornalista no Fumaça, fizemos parte da organização do protesto “You Have Not Yet Been Defeated”, pela libertação de Alaa Abd El-Fattah e o fim das prisões políticas no Egito. A carta aberta criada aquando desse protesto foi também assinada por Bernardo Afonso, Joana Batista, Maria Almeida, Nuno Viegas e Pedro Miguel Santos, todos eles também parte da equipa Fumaça.

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