Palestina

O que é normal em Masafer Yatta?

Ouve e segue o Fumaça
Apple Podcasts | Spotify | Google Podcasts | Pocket Casts

[Este episódio foi produzido para ser ouvido e não apenas lido. O que se segue abaixo é a transcrição integral de toda a peça áudio.]

INTRODUÇÃO

Ao fundo, um horizonte que parece não acabar nunca. Uma pintura perfeita, um quadro tão real que se toca, que se cheira. Toca-se o quente do deserto, cheira-se a poeira do deserto. Ao fundo, tudo é castanho. O quadro, que é tão real quanto o sol que nos queima a pele, é feito de montanhas que se entrecruzam, que se engolem umas às outras. O castanho de uma colina tocando o castanho de outra, e de outra mais, como se se transformassem numa só. Uma só colina, uma só montanha, uma só cor. Mal sabem elas que nada disto é uno, que tudo o que vemos à nossa frente é disputa, é divisão.

Não se vê uma casa daqui de onde estamos. Nem casas, nem estradas, nem carros nem tratores, nem lagos nem lagoas. O mais parecido com vida que se consegue vislumbrar são os arbustos de ervas quase secas, que vão pontuando o castanho com pintas de verde quase amarelo, quase castanho novamente. Há areia, há rocha, há chão rasgado de fissuras que parecem fazer já parte da história. Há céu limpo, há luz — tão clara e forte que os olhos se vão fechando a contravontade. E ainda que semicerrados, o que eles contemplam é mais extenso do que alguma vez vi. Todo um universo à minha frente e nem vivalma se avista. Estamos em Masafer Yatta, na Palestina.

Ricardo Esteves Ribeiro: Como te chamas? Hamodi?
Hamodi Ganem: Hamodi. Todos os palestinianos em Masafer Yatta se chamam Hamodi ou Mohammed.

“Todos os palestinianos em Masafer Yatta se chamam Hamodi ou Mohammed”, diz Hamodi Ganem. Hamodi veste uma camisola branca com capuz e calças de ganga. Enquanto vai arrastando os ténis pretos em direção ao carro, vai também olhando uma carrinha do exército israelita a passar ao fundo.

Hamodi Ganem: Devíamos esperar um minuto para ver onde a polícia vai.  

Hamodi Ganem diz-nos que se for visto pelas forças militares israelitas, será parado com certeza. Esperamos uns minutos e deixamos os soldados passar ao fundo, até deixarmos de ver a carrinha. Quando desaparecem, seguimos caminho.

Ricardo Esteves Ribeiro: E para onde vamos agora?
Hamodi Ganem: Agora vamos para Mufaqarah.

Mufaqarah é uma pequena povoação na região de Masafer Yatta, no sul da Cisjordânia, a área mais a Este da Palestina, ocupada desde 1967 pelo Estado de Israel. Uma povoação onde, soubemos ontem, 7 de maio, um olival de camponeses palestinianos foi atacado por colonos israelitas, e várias dessas árvores foram danificadas, arrancadas ou destruídas.

Hamodi Ganem: É mesmo aqui, pessoal.
Ricardo Esteves Ribeiro: É aqui?
Hamodi Ganem: Sim.
Rafaela Cortez: Okay.

Procuramos um homem: Fadel Rabaee. É pastor, agricultor, e o dono — ele e a sua família — das árvores destruídas ontem. 

Saímos do carro eu, Hamodi Ganem e a Rafaela Cortez, que ouviste no início do episódio, em direção ao horizonte que parece não acabar nunca. Hamodi vai subindo colina atrás de colina, intercalando o arrastar de pés pelo chão quente com murmúrios sobre o calor que se sente num lugar onde quase não existe sombra. Quase. Ao lado esquerdo, um abrigo serve-nos de repouso durante uns minutos. O estado de degradação é comum — numa zona onde é quase proibido construir, não é exceção paredes ainda por pintar, a cair aos bocados. No interior, apenas três pequenas árvores ainda em vasos, com folhas verdes a espreitar a primavera. O abrigo pertence ao coletivo Youth of Sumud, de que Hamodi faz parte.

“Sumud”, que pode ser traduzido para “perseverança”, significa, na Palestina, muito mais do que apenas “perseverança”. O termo encapsula a história de uma resistência palestiniana numa terra colonizada há quase 75 anos. E esta Juventude de Sumud é mais uma geração de jovens que, apesar de nunca terem vivido em liberdade, lutam por ela como se não houvesse outra razão de viver.

Andamos mais um pouco. Uma placa antiga, enferrujada, perdida no meio do monte, confirma-nos em árabe que chegámos a Mufaqarah. Em inglês, mente-nos. Lê-se: “Estado da Palestina. Ministério do Governo Local”. Como se tal Estado existisse e tal ministério aqui mandasse alguma coisa.

Hamodi apoia-se num poste e olha o deserto castanho. A única informação que temos é que Fadel Rabaee estará no longo, infinito vale que se estende à nossa frente.

Hamodi Ganem: Ele está neste vale. A nossa missão é perceber exatamente onde.
Ricardo Esteves Ribeiro: [ri-se] Temos de o descobrir, é isso? Ele traz animais?

Os três olhamos o vale em busca de sinais de vida. Animais, pessoas, máquinas a trabalhar. Nada. Tudo é silêncio.

Ricardo Esteves Ribeiro: Isto é um deserto total.

Uns minutos depois, voltamos a entrar no carro e damos mais uma volta em Mufaqarah à procura de Fadel Rabaee.

Ricardo Esteves Ribeiro: Marhaba. [Olá.]
Rafaela Cortez: Marhaba. [Olá.]
Fadel Rabaee: Ahlan w sahlan. Kif halak? [Sejam bem-vindos. Como estás?]
Ricardo Esteves Ribeiro: Tamam. W inta? W inta kifak? [Bem. E tu? E tu, como estás?]
Fadel Rabaee: Hamdulilah. [Bem, graças a Deus.]

Fadel Rabaee recebe-nos numa pequena quinta onde uma série de homens trituram ervas secas para servir de alimento aos seus animais. Oferece-nos café e pede que nos sentemos dentro, à sombra. 

É Hamodi Ganem quem traduz.

Rafaela Cortez: Talvez ele possa apresentar-se e dizer-nos um pouco sobre onde cresceu e há quanto tempo… isso, sim…
Hamodi Ganem: [fala árabe]
Fadel Rabaee: [fala árabe]

Fadel Rabaee diz-nos que nasceu em Twani, cresceu em Twani, fez-se homem em Twani e casou em Twani, uma das 19 pequenas aldeias que compõem Masafer Yatta, exatamente ao lado de Mufaqarah. Hoje tem filhos e netos, que sustenta através do que lhes dão os animais e também as árvores, exatamente as árvores que ontem foram destruídas.

Ricardo Esteves Ribeiro: Ele pode explicar o que aconteceu com as árvores? 
Fadel Rabaee: [fala árabe]
Hamodi Ganem: Então, ele está a dizer que estava com as ovelhas de manhã, como faz diariamente, e quando chegaram à terra deles, ali, viram muitas árvores partidas. Com toda a certeza, nenhum árabe seria capaz de partir as árvores de outra pessoa. Eles chamaram a polícia mas não aconteceu nada; eles não fazem nada.
Ricardo Esteves Ribeiro: Quando ele diz que chamaram a polícia quer dizer a polícia israelita? 
Hamodi Ganem: Sim, sim.

Fadel Rabaee explica-nos que este não foi um dia anormal. Conta-nos histórias atrás de histórias de violência e assédio que diz terem sido cometidos por soldados israelitas e colonos de Havat Ma’on, um colonato que, nos últimos anos, tem engolido as comunidades de Mufaqarah, Twani e outras povoações de Masafer Yatta. Conta-nos sobre árvores destruídas, comida de animais roubada ou danificada, campos de pastoreio ocupados, tratores confiscados ou danificados e sobre a detenção do seu filho, preso há mais de um ano.

A polícia palestiniana não tem jurisdição em Masafer Yatta. Quando, em último recurso, residentes chamam os militares israelitas para os defender contra colonos, a experiência tem-lhes mostrado que são os colonos que acabam protegidos. Em setembro de 2021, vários colonos de Havat Ma’on atacaram o abrigo onde estamos sentados neste momento. Usando paus, correntes, pedras, espingardas e uma faca, atacaram palestinianos destruindo janelas, matando quatro ovelhas à facada, ferindo dois adultos e três crianças de três anos — uma delas ficou inconsciente e de cabeça aberta. Quando residentes de Twani tentavam defender as suas casas, foram eles próprios atacados por soldados, que enviaram granadas de gás lacrimogéneo.

Arquivo B’tselem: [colonos de Havat Ma’on atacam a aldeia de Mufaqarah]

Fadel Rabaee passou a noite de ontem quase em branco, de vigília. Depois da destruição das suas árvores, ele e alguns camaradas de trabalho decidiram revezar-se para garantir que os colonos de Havat Ma’on não queimavam a comida dos animais, como já havia acontecido antes.

Fadel Rabaee: [fala árabe] 
Hamodi Ganem: Ele está a dizer que acordou ontem às duas da manhã porque estava a dormir por turnos. Dormia uma hora, outra hora ficava acordado porque estava com medo que, depois de lhe partirem talvez mais de 50 árvores, acontecesse algo à comida das ovelhas.

Fadel Rabaee explica-nos como tudo isto é muito maior do que apenas umas árvores destruídas, ou apenas — se é que assim pode dizer-se — alguns ataques de colonos. A escalada de violência é parte de algo maior. De uma estratégia de décadas que tem um objetivo: obrigar os residentes de Masafer Yatta a sair desta terra, ou a bem, ou a mal. 

Mas quando Fadel Rabaee nos diz, respondendo à primeira pergunta da nossa entrevista, que nasceu em Twani, cresceu em Twani, e se fez homem em Twani, não termina aí. Abre os olhos claros, levanta a cabeça coberta com um keffieh – um lenço palestiniano –, branco e preto e diz também: “E de Twani nunca sairei.”

Seja toda a gente bem vinda ao Fumaça, eu sou o Ricardo Esteves Ribeiro.

PARTE I

8 de maio de 2022.

A Rafaela Cortez e eu aterramos no apartheid a semana passada, em dia histórico. Por um lado, 4 de maio era data de celebração, para os israelitas, da constituição do Estado de Israel, 74 anos antes. Por outro, a ironia deixou que, neste dia, fosse também publicada uma perturbadora decisão do sistema judicial israelita. Uma decisão que deu luz verde ao que, efetivando-se, será uma das maiores expulsões de pessoas palestinianas de suas casas nas últimas décadas. A partir deste dia, os cerca de 1150 habitantes da região de Masafer Yatta, que mede mais ou menos 3600 hectares, uma área quase tão grande como a do município do Porto, passaram a estar em risco de ver as suas casas demolidas a qualquer momento. Já lá vamos.

A palavra “Masafer” significa, em árabe, “viajante”. O viajante de Yatta ou, há quem defenda, o viajante para Yatta, uma vila na Cisjordânia cujo nome tem origem na palavra zero, ou nada. O que viaja para o nada. Não era nosso plano sequer passar por Masafer Yatta durante a viagem de duas semanas que aqui fizemos, mas, tendo nós chegado no dia da decisão, tudo nos parecia empurrar para lá. Uns dias depois, estávamos a caminho do sul. A caminho do nada.

Pessoa 1: Vão com este rapaz. Gostei de te conhecer, Ricardo. 
Ricardo Esteves Ribeiro: Prazer em conhecer-te.
Rafaela Cortez: Prazer, muito obrigada.
Pessoa 2: Prazer em conhecer-vos. De nada.
Pessoa 1: Tcharafna [prazer em conhecer-te].
Rafaela Cortez: Tcharafna [prazer em conhecer-te].
Pessoa 1: Como é que se diz “tcharafna” em português?
Rafaela Cortez: Prazer.
Pessoa 1: Prazer!
Rafaela Cortez: [ri-se] Perfeito. Masalama [adeus].
Ricardo Esteves Ribeiro: Obrigado. Shukran [obrigado].
Rafaela Cortez: Masalama [adeus].

Chegar a Masafer Yatta não é tarefa fácil para quem viaja de mochila e equipamento de som às costas e sem carro próprio — o caminho faz-se de cidade em cidade, de vila em vila, de transporte público em transporte público, o que pode chegar a demorar um dia inteiro. Ou, como fizemos nós, de táxi desde Hebron, uma das maiores cidades da Cisjordânia, a pouco mais de 20 quilómetros de distância.

Ricardo Esteves Ribeiro: Kifak? Tamam? [Como estás? Bem?]
Bader: Ptehki arabie? [Falas árabe.]
Ricardo Esteves Ribeiro: Shuei. Ptekhki englese? [Um pouco. Falas inglês?]
Bader: English… [Inglês…]
Ricardo Esteves Ribeiro: [ri-se] Shuei? La. [Um pouco? Não.] Ok. Twani? Vamos para Twani? Ok.

Mapa de Masafer Yatta e das populações, por aldeia, em risco de expulsão devido à decisão do Supremo Tribunal israelita de 4 de maio de 2022. Elaborado pelo Escritório da ONU para Coordenação de Assuntos Humanitários.

É Bader quem nos guia por entre as colinas do sul de Hebron, durante mais de meia hora. Nós arranhamos umas palavras de árabe. Ele não arranha nem um pouco de inglês. E para passar o tempo, não precisa nem de rádio a tocar.

Bader: [canta no carro enquanto conduz]

A viagem até Twani faz-se por passagens mais remotas do que as que alguma vez tínhamos nós atravessado. Durante grande parte caminho, vemos zero carros, zero pessoas, zero animais, zero edifícios. 

As exceções ao deserto são impressionantes, mas não surpreendentes: de tempos a tempos, erguem-se colonatos israelitas cercados por arame farpado, muros de betão, postos de vigilância ocupados por militares armados, alguns de espingarda permanentemente apontada para quem vem lá na estrada, seja lá quem for, e dezenas, centenas de bandeiras israelitas. Quanto mais nos aproximamos do destino, mais os colonatos crescem em número. E mesmo antes de chegarmos a Twani, não há placas nem sinais a assinalar o bom porto. Antes, uma estrela de David, símbolo religioso judaico presente na bandeira israelita, jaz gigante, brilhante, no topo de uma colina, como que constatando o óbvio: que mesmo em plena Cisjordânia, e mesmo sendo os colonatos internacionalmente reconhecidos como ilegais, eles não só existem como são os seus colonos quem aqui vive acima de todas as outras pessoas.

Bader: Wen Sami? [Onde está o Sami?] [manda mensagem de voz a Sami Huraini]

Sami Huraini é estudante de Direito e um dos ativistas de Twani que lidera a resistência à ocupação israelita desde Masafer Yatta. Em 2021, venceu o prémio internacional Defensores dos Direitos Humanos em Risco, atribuído pela organização Front Line Defenders, em conjunto com a sua irmã, Sameeha Huraini, e outros ativistas internacionais. Com uma série de outros jovens das várias aldeias em volta, criou o coletivo Youth of Sumud, do qual é coordenador, e do qual faz parte também Hamodi Ganem.

Conhecemos Sami Huraini através do Instagram, onde tem documentado as agressões constantes e o escalar de violência de que esta comunidade tem sido alvo, especialmente desde a decisão de 4 de maio, há quatro dias. Menos de três horas depois do nosso contacto, tinha-se já oferecido para nos receber em casa e guiar-nos por Masafer Yatta. E antes de sairmos de Hebron, antes mesmo de entrarmos no carro, tinha-nos garantido que estaria à nossa espera à entrada de Twani. E agora… bem, agora estamos perdidos no deserto sem sinal da única pessoa que conhecemos numa área de mais de 3000 campos de futebol.

Bader continua freneticamente a tentar ligar a Sami Huraini, sem sucesso. 

Bader: Liga ao Sami, liga ao Sami.
Ricardo Esteves Ribeiro: Ok. Mais uma vez.

Quando Sami não atende, Bader envia mensagens de voz atrás de mensagens de voz. E nós entendemos porquê. Ele próprio não faz ideia onde está, numa zona onde, para o Estado de Israel, palestinianos não têm liberdade de movimento e, para além disso, cada minuto que demora a mais é tempo de trabalho perdido.

Em Twani, perguntamos na rua se alguém viu Sami Huraini.

Bader: [Bader pergunta em árabe por Sami Huraini]

Nada. Mais uma vez, ligamos a Sami Huraini. 

Sami Huraini: [finalmente atende, fala em árabe]
Bader: Wen inta, ya zalame? [Onde estás, homem?]

Bader pergunta “Onde estás, homem? Onde estás?”.

Bader: Wen inta? Alô? Sami? Alô? Alô? [Onde estás? Sami? Alô? Alô?]

Nada.

E, já a cair a noite, Sami Huraini chega finalmente perto de nós.

Rafaela Cortez: Marhaba. [Olá.]
Sami Huraini: Desculpem, houve um problema. O exército estava a bater-nos e a tentar prender-nos. 
Ricardo Esteves Ribeiro: O que aconteceu?
Sami Huraini: Foi só um homem. Agora estamos à espera que a ambulância chegue. 
Ricardo Esteves Ribeiro: Desculpa, ele estava muito nervoso com as horas.
Sami Huraini: Não. Desculpa eu, estas coisas acontecem.

Pouco antes da nossa chegada, vários soldados israelitas tinham atacado ativistas locais a uns minutos de distância de onde agora estamos. A Rafaela Cortez e eu entramos rapidamente no carro de Sami Huraini e vamos em direção ao local onde duas mãos cheias de pessoas esperam uma ambulância para socorrer um dos feridos. Basel Adra, jornalista local e também membro dos Youth of Sumud, está deitado com um pano molhado na testa e as pernas esticadas numa cadeira de plástico. De olhos fechados, vai gemendo quase sem forças para gemer. 

Basel Adra, depois de atacado por militares israelitas, enquanto espera pela ambulância.

Tudo começou, conta Sami Huraini, no momento em que militares israelitas tentavam destruir um pequeno abrigo de um pastor da aldeia. Quando ativistas com telemóveis e câmaras de filmar tentavam documentar o que se passava, soldados responderam atirando o jornalista Basel Adra ao chão, espancando-o até ser libertado pelos seus camaradas.

Sami Huraini: Eles continuaram a bater-lhe e queriam prendê-lo e só depois de 20 minutos a bater-lhe é que nos deixaram ir. Agora estamos à espera da ambulância porque ele está a sangrar da cabeça.
Ricardo Esteves Ribeiro: Isso aconteceu aqui?
Sami Huraini: Perto daqui.

Do ataque, vários vídeos ficaram para testemunhar o que aconteceu. Sami gravou um deles. O que vamos ouvir é bastante violento. Se preferires passar à frente, avança o áudio um minuto.

Arquivo vídeo do ataque, Sami Huraini fala: Vocês são violentos. Ele é um jornalista! Ele é um jornalista! Ele é um jornalista! Olhem para ele. Olhem para ele! Olhem para ele! Não! Não! Não! Isto é ilegal! Isto é ilegal! Isto é ilegal! Isto é ilegal! Isto é ilegal! Isto é ilegal! Isto é ilegal! Isto é ilegal! O que é que estão a fazer? Ele é um jornalista! Ele é um jornalista! Vocês sabem que sim. Vocês sabem que ele é um jornalista. Não podem tocar-lhe. Ele tem a carteira de jornalista, vocês sabem isso. Podem confirmar que ele é jornalista pelo cartão que traz. Não lhe batam. Não lhe batam.

Em volta de Basel Adra há crianças, jovens e adultos à espera que chegue ajuda médica. Vão tentando acalmá-lo enquanto conversam sobre o que se passou, explicam como tudo começou, riem, vêm vídeos gravados do momento. Tudo isto parece banal. E é, explica Sami Huraini.

Ricardo Esteves Ribeiro: Isto tem acontecido todos os dias? 
Sami Huraini: Mais ou menos todos os dias, sim.

Rafaela Cortez: Isto era daqueles sítios que, se ficássemos aqui um mês, acho que íamos ver muita merda a acontecer. Isto, a partir de agora, é mesmo um escalar.
Ricardo Esteves Ribeiro: Bem-vindos a Masafer Yatta.

Menos de meia hora depois de chegarmos a Masafer Yatta, estamos já a caminho do hospital mais próximo. O jipe de Sami Huraini, sobrelotado, vai cambaleando por estradas esburacadas de terra batida, atrás da ambulância que leva Basel Adra ao Hospital de Yatta. 

Ricardo Esteves Ribeiro: Então esta é que é a estrada para o hospital?
Sami Huraini: Sim.
Ricardo Esteves Ribeiro: Uau. Agora já percebo porque é que demoram tanto tempo.

Basel Adra é visto por médicos. Horas depois, recebe alta e volta a casa para descansar.

Mas para o resto de nós, a noite não termina aqui.

Sami Huraini: Pessoal, se acontecer alguma coisa hoje à noite, desculpem mas vou ter de vos acordar. [risos]
Ricardo Esteves Ribeiro: Não peças desculpa. Tens de nos acordar, ok? Vamos combinar que nos acordas. 
Rafaela Cortez: Podemos dormir daqui a um mês, em Lisboa.
Sami Huraini: O que se passa é o seguinte. Eu não falo hebraico fluentemente, mas consigo perceber. Às vezes, o exército ameaça que nos vai prender. Às vezes prendem-nos, às vezes não. Já fui ameaçado, já fui para a prisão, e, por vezes, não aconteceu nada. Mas de qualquer forma, estou a contar que eles apareçam aqui hoje à noite à minha procura. Se vierem, vou acordar-vos. Pelo menos podem documentar isso.
Rafaela Cortez: Claro que sim.
Ricardo Esteves Ribeiro: Sem dúvida.

Sami Huraini tem 24 anos. Diz-nos que perdeu a conta à quantidade de vezes que teve de fugir do exército israelita. Desde que se lembra de ser gente que se lembra também de resistir à ocupação. “É impossível crescer em Twani e não ser ativista”, diz.

Rafaela Cortez: Quantas vezes é que foste levado para a prisão?
Sami Huraini: Estive na prisão três vezes, mas fui detido várias e já fugi deles centenas de vezes. [ri-se]
Rafaela Cortez: Então eles tentam apanhar-te e tu foges. 
Sami Huraini: Super, super engraçado. [risos]
Ricardo Esteves Ribeiro: Oxalá um dia tenha piada.
Sami Huraini: Quer dizer… Às vezes nós, os Palestinianos, somos loucos: depois de tudo o que acontece, todos os problemas, vamos para casa e começamos a rir-nos de tudo, mesmo que seja extremamente doloroso.

Sala que faz de centro de operações dos Youth of Sumud, em Twani. 

Passa das duas da manhã em Twani e, tivéssemos nós contado, não chegariam todos os dedos que a natureza nos deu para calcular as vezes que Sami Huraini viu os vídeos gravados esta tarde. Na casa que faz de centro de operações dos Youth of Sumud, o ativista não tira os olhos do telemóvel faz horas. 

Com uma mão, segura o tubo de shisha que vai fumando; com outra, o telemóvel, tão mais perto dos olhos quanto o sono lhe exige. Os gritos captados pelos vídeos — “Ele é jornalista! Isto é ilegal! Vocês sabem que isto é ilegal!” — vão ecoando pela sala quase despida, que é só cadeiras de plástico, garrafas de sumo e de água meio vazias e colchões empilhados a um canto.

E Sami Huraini ri. Ora sozinho; ora com a mãe, que por ali passou a garantir que tínhamos jantado; ora com os irmãos mais novos, que tentam aproveitar para ficar acordados até mais tarde; ora com os camaradas, que vão dormindo intermitentemente, entrando e saindo da sala; ora connosco, na mesma luta contra o sono. E, soubemos no dia seguinte, Fadel Rabaee, o pastor que viu as suas árvores destruídas há umas horas, também ele está acordado, de vigília com os seus camaradas.
O exército israelita não aparece em Twani durante toda a noite mas, até às quatro da manhã, acompanhamos Sami Huraini na vigília, antes de lhe sugerirmos que deixe o telemóvel de lado e vá também descansar. Antes disso, e antes de soltarmos uma daquelas perguntas que, assim que sai da nossa boca, soa imediatamente errada. Perguntamos se tudo isto que vimos hoje, em Masafer Yatta, é normal. Do outro lado da mesa branca de plástico, ainda a segurar a shisha numa mão e o telemóvel na outra, a resposta de Sami Huraini sai-lhe automaticamente: “What the fuck is ‘normal’?” (“Mas que merda quer dizer ‘normal’?”).

PARTE II

9 de maio de 2022.

Em Twani, acorda-se com o cantar de galos, o chilrear de pássaros e o riso de crianças de mochila às costas. A maioria das famílias que aqui habitam vive do pastoreio e de agricultura própria — do pouco que se consegue produzir num quase-deserto do Médio Oriente. Raramente passam carros, não há lojas, nem um único restaurante aberto em toda a aldeia. Se a isso se puder chamar silêncio, então o silêncio é apenas interrompido pela constante lembrança de que, apesar da tranquilidade aparente, Masafer Yatta tem pouco de tranquilo.

Ricardo Esteves Ribeiro: [ouve-se um barulho] E o que é isto? O que é este som?
Ali Awad: Os aviões.

“Este som são os aviões”, diz Ali Awad, escritor e ativista dos Youth of Sumud. É ele quem nos recebe hoje. 

Ricardo Esteves Ribeiro: Os aviões militares?
Ali Awad: Sim, sim.
Ricardo Esteves Ribeiro: Mas não se vêm, certo?
Ali Awad: Sim. 
Ricardo Esteves Ribeiro: Nunca os vemos.
Ali Awad: Conheces os F-16?
Ricardo Esteves Ribeiro: Não.
Ali Awad: São um avião, uma espécie de foguete, que consegue ultrapassar a velocidade do som. Quando estão mais baixos, consegues vê-los assim pequenos, do tamanho de um telefone. Ouves o som aqui e eles já vão…
Ricardo Esteves Ribeiro: Ali. 
Rafaela Cortez: Ah ok. Então quando se ouve o som já desapareceram.
Ali Awad: Isso. Se ouvires o som é porque ainda estás vivo.
Rafaela Cortez: Porque nós estamos sempre a olhar para cima — “onde está?”, “onde está?” — e nunca conseguimos ver nada.
Ricardo Esteves Ribeiro: O Sami, por exemplo, já nem sequer repara no barulho. Perguntámos-lhe “que som é este?” e ele ficou do género, “o quê?”
Ali Awad: Eu não estava a ouvir. [risos] 

Ali Awad tem 24 anos, a mesma idade que Sami Huraini — desde miúdos que se conhecem e desde miúdos que aprenderam a entender que a zona onde vivem é uma zona militar. Não há outra maneira. Cada avião a passar, cada helicóptero, cada tanque de guerra, cada explosão é apenas mais uma operação do exército israelita. A banalidade normalizou-as de tal forma que o que a nós nos faz tremer, a eles passa despercebido.

Viver em Masafer Yatta é um ato de resistência. E isso não se nota apenas nas coisas mais graves: na violência constante ou na dificuldade em sustentar uma família sob ocupação. Nota-se também nas coisas mais mundanas, como ir à escola. Ali Awad sabe-o bem. É por isso que ele e outros palestinianos de várias aldeias de Masafer Yatta, em conjunto com ativistas internacionais que por cá vão passando, acordam todos os dias por volta das 7h00 da manhã para esperar os militares israelitas que acompanham crianças de aldeias vizinhas até à escola de Twani, e que, à tarde, voltam a fazê-lo no regresso a casa.

Ricardo Esteves Ribeiro: E podes explicar-me o que está a acontecer agora? Estamos aqui com as crianças. Porque é que estamos aqui?
Ali Awad: Estes miúdos são da minha aldeia, Tuba, e estão à espera que o exército apareça para serem escoltados através do colonato ilegal de Havat Ma’on até chegarem a casa, do outro lado, à aldeia deles, Tuba.

Foi exatamente em Tuba que Ali Awad cresceu. Quando era criança, ele próprio foi acompanhado por militares até à escola em Twani, a mais próxima da sua aldeia. Talvez perguntem porque esperam crianças por soldados da força ocupante para os acompanhar todas as manhãs e todas as tardes no caminho de casa para a escola e da escola para casa. O mesmo perguntamos nós. “É uma aventura andar sozinho nesta estrada”, diz Ali Awad.

O caminho mais curto de Tuba a Twani faz-se a pé durante cerca de 20 minutos. São pouco mais de dois quilómetros por uma estrada de terra batida que passa por entre o colonato de Havat Ma’on — um assentamento construído de um dos lados dessa estrada, em 1981, por colonos israelitas, e mais tarde relocalizado para o lado contrário da estrada, no final dos anos 1990. Havat Ma’on é apenas um de cerca de 150 colonatos em toda a Cisjordânia, segundo a Organização das Nações Unidas, onde vivem à volta de 630 mil colonos israelitas. Um número em constante expansão, resultado do apoio e promoção do governo israelita.

Todos os colonatos da Cisjordânia são, sem exceção, considerados ilegais de acordo com a lei internacional. No artigo 49.º da Convenção de Genebra, lê-se: “A Potência ocupante não poderá proceder à deportação ou à transferência de uma parte da sua própria população civil para o território por ela ocupado.” Mas, além de ser ilegal à luz do direito internacional, Havat Ma’on é dos poucos que o Estado israelita também põe em causa. Em 2006, depois de um acordo diplomático com os Estados Unidos da América, o governo do então primeiro-ministro Ariel Sharon ordenou a demolição de 24 colonatos na Palestina. Havat Ma’on seria o primeiro a ver os seus 340 colonos transferidos. Dezasseis anos depois, não só continua de pé como a sua população cresceu para quase 600 pessoas.

E se, há 30 anos, os familiares de Ali Awad conseguiam andar pela estrada que liga Tuba a Twani, isso mudou com a expansão de Havat Ma’on, que deixou os palestinianos encurralados.

Ali Awad: De 2002 até 2004, as crianças eram obrigadas a fazer um desvio à volta do colonato para chegarem ao outro lado. 10km a mais a subir montes para escaparem à violência dos colonos.

Ricardo Esteves Ribeiro: Andavam 10km só para ir à escola?
Ali Awad: Sim.
Rafaela Cortez: Eles atacam crianças?
Ali Awad: Com certeza.

No início dos anos 2000, a violência de colonos contra palestinianos de Tuba e Twani cresceu ao ponto de passar a ser impossível utilizar a única estrada viável que liga as duas aldeias. Como alternativa, crianças passaram a deslocar-se por um outro caminho. Um caminho quatro vezes mais longo, por entre montanhas e colinas.

Ali Awad: Duas horas a andar de manhã, mais duas horas à tarde para voltar à aldeia. Algumas crianças até iam montadas em burros para chegar à escola. Mas mesmo fazendo esse desvio, os colonos atacavam assim que viam pessoas palestinianas. Então havia sempre risco de violência. Nem essa alternativa era segura. 

Foi isso que aconteceu em setembro de 2004: um grupo de 12 colonos israelitas desceu desde Havat Ma’on até à estrada para atacar cinco crianças e dois voluntários norte-americanos da organização não governamental Christian Peacemaker Teams. Os colonos usavam máscaras para esconder o rosto e armavam-se de paus e correntes. Kim Lamberty, uma das voluntárias, acabou com um braço e um joelho partidos e ficou com feridas no rosto. Chris Brown, outro dos voluntários, ficou com múltiplas feridas e ainda um pulmão perfurado. Myriam, uma das crianças palestinianas, foi também agredida na cabeça com um pau. 

Pouco mais de uma semana depois, colonos encapuzados voltaram a atacar voluntários que escoltavam as crianças de volta a casa. Desta vez, os voluntários representavam a Amnistia Internacional, a Operation Dove e a Christian Peacemaker Teams. Cinco voluntários foram atacados com pedras e três foram ainda espancados com paus de madeira. 

As queixas de organizações internacionais pressionaram o governo israelita a agir. Mas em vez de os colonos terem sido punidos, a decisão do Knesset, o parlamento israelita, foi destacar diariamente, duas vezes por dia, um grupo de militares a acompanhar as crianças para a escola e de volta para casa. Desde 2004 que, praticamente, só colonos israelitas, militares israelitas e crianças palestinianas acompanhadas por militares israelitas passam por esta estrada. Mais ninguém.

Ricardo Esteves Ribeiro: Há quanto tempo estão aqui?
Ali Awad: Uh, já estamos há uma hora à espera dos soldados.
Ricardo Esteves Ribeiro: Ah uau. 
Ali Awad: Pois.
Ricardo Esteves Ribeiro: E costuma ser assim? Ficarem à espera?
Ali Awad: Sim, quer dizer, depende do humor dos soldados. Eu não tenho autoridade para os trazer. Então, aparecerem ou não só depende deles. Se o soldado decidir aparecer, as crianças podem voltar para casa. Senão, ficamos à espera.
Rafaela Cortez: Isso quer dizer que as crianças perdem aulas, certo? 
Ali Awad: Sim, claro. Se o exército decidir não aparecer, as crianças têm de esperar na aldeia, do outro lado do colonato. Para os soldados é  do género: “Esperem uma hora, duas horas”. Mas isto significa que perdem duas ou três aulas de manhã. Mas se o exército não aparecer de todo, perdem um dia inteiro de aulas e têm de voltar para casa.

A escolta de crianças palestinianas entre Tuba e Twani não acontece isolada de tudo o que se passa em Masafer Yatta. E para entender como chegámos aqui, é preciso recuar, pelo menos, até ao final dos anos 1960. Em 1967, o Estado israelita, que já ocupava uma grande parte da Palestina, roubou a Península de Sinai ao Egito, os Montes Golã à Síria e ainda a Faixa de Gaza, Jerusalém Oriental e uma grande parte da Cisjordânia, territórios palestinianos, no que ficou conhecido como A Guerra dos Seis Dias.

Desde essa altura, a expansão do território israelita na Cisjordânia não parou de crescer, e a presença militar também não. A partir dos anos 1970, o governo israelita começou a implementar o que chama de firing zones — zonas de treino militar utilizadas pelo exército, onde é proibida a presença de civis. Hoje, cerca de 18% de todo o território da Cisjordânia é considerado firing zone — quase dois em cada dez quilómetros quadrados.

Em Masafer Yatta há uma delas. Em 1980, o governo israelita criou a Firing Zone 918 numa área de 3000 hectares onde estão localizadas cerca de 12 aldeias de Masafer Yatta e onde vivem mais de mil pessoas. Desde essa altura, passou a ser quase impossível construir casas, escolas, abrigos para animais ou estruturas de apoio para agricultura, passagens de eletricidade ou de água. Tudo isto enquanto, mesmo ao lado das populações, se faziam treinos com aviões militares, tanques, armas de fogo e explosões. 
Viver em Masafer Yatta já era difícil, mas em 1999 piorou. Depois de iniciarem um processo judicial nos tribunais israelitas que tentava anular esta firing zone, 17 famílias residentes em Masafer Yatta chegaram a acordo com o Estado de Israel. Abandonariam as suas aldeias em troca de permissão para poderem voltar e trabalhar as suas terras apenas às sextas-feiras, sábados, feriados israelitas e dois outros momentos durante o ano, na altura das colheitas, um mês de cada vez. As 17 famílias concordaram desistir do processo e, em novembro de 1999, menos de um dia depois de terem entregado cartas de despejo a alguns dos residentes, militares israelitas entraram por Masafer Yatta dentro e despejaram cerca de 700 pessoas, destruindo cisternas de água, abandonando animais, confiscando tendas, colchões, lençóis e comida, e selando a entrada de cavernas onde algumas das famílias viviam. 700 pessoas ficaram em situação de sem-abrigo e sem meios de subsistência de um dia para o outro. Tudo, claro, a bem da sua segurança.

Ali Awad: Eu não me lembro, claro, mas quando tinha um ano e meio, a minha família foi expulsa de Tuba. Durante seis meses, as pessoas ficaram sem-abrigo, longe das suas casas e de toda a área de Masafer Yatta. Cada vez que tentavam voltar para as suas casas dentro da chamada “firing zone”, eram empurradas novamente para fora.

Quatro meses depois, em março de 2000, o Supremo Tribunal israelita suspendeu temporariamente os despejos e permitiu que voltassem às suas casas enquanto deliberava sobre um novo processo judicial. Um processo iniciado por quase 90 famílias. Imediatamente depois dessa decisão, uma grande parte das pessoas despejadas voltou à sua aldeia. Outras não tinham já para onde ir: as suas cavernas estavam emparedadas ou tinham sido destruídas, os seus depósitos de água selados e os seus animais roubados por colonos.

Enquanto isso acontecia, corria a batalha legal.

Ali Awad: A batalha legal, desde os anos 2000 até agora, foi entre o exército israelita e quem mora naquelas terras.
Ricardo Esteves Ribeiro: Isso foi há 20 anos.
Ali Awad: 22 anos, para ser preciso.

Durante 22 anos, mais de mil pessoas estiveram neste limbo, sabendo que, a qualquer altura, poderiam ser expulsas novamente.

Ali Awad: Oiçam, mesmo que pudéssemos voltar com essa providência cautelar em 2000, vivemos sob constante ameaça de expulsão desde então. Aqui, em Masafer Yatta, quase todas as semanas se entregam ordens de demolição para as construções das pessoas ou se executam essas demolições. Além disso, as pessoas não vivem uma vida normal como noutras aldeias ou em qualquer outro sítio do mundo. Aqui, em Masafer Yatta, as aldeias estão privadas de serviços básicos porque qualquer tentativa de os construir enfrenta ameaças de demolição.

Tudo isto tem raízes num dos acordos de paz mais famosos do século passado. Os Acordos de Oslo, assinados em 1993, dividiram a Cisjordânia em três áreas:

  • Área A, onde a Autoridade Palestiniana (o governo interino da Palestina) detém a administração política e de segurança, e que corresponde a 18% do território e onde vive cerca de 20% da população palestiniana;
  • Área B, que a Autoridade Palestiniana governa mas partilha com o exército israelita a responsabilidade da segurança. Inclui 22% do território e 70% da população palestiniana;
  • E Área C, que cobre 60% do território. Aí, o exército israelita está responsável por toda a zona e é onde vivem os restantes 10% da população.

Masafer Yatta faz parte da Área C, o que significa que qualquer construção que residentes queiram fazer nas suas terras tem de ser previamente aprovada pelo Estado de Israel. Caso contrário, corre o risco de ser considerada ilegal e destruída imediatamente. Segundo a ONG israelita Peace Now, entre 2009 e 2018, apenas 98 licenciamentos foram aprovados na Área C, de um total de 4422 pedidos — pouco mais de 2%. No mesmo período, foram publicadas mais de 10 mil ordens de demolição, um número que só tem crescido.

O longo processo judicial a que este caso esteve sujeito pedia que as famílias queixosas provassem que já viviam nestas aldeias antes da Firing Zone 918 ter sido declarada, em 1980. O que, na verdade, não parecia difícil: não só há imagens de satélite que comprovam a presença humana antes dos anos 1980, como há registos antropológicos que vão até ao século XIX, bem antes da nakba — ou catástrofe, em árabe —, o nome dado por palestinianos ao processo que levou à criação do Estado de Israel em 1948 e que expulsou mais de 800 mil pessoas palestinianas de suas casas e destruiu mais de 500 vilas. A família de Ali Awad, conta ele, é uma das que tem raízes nesta zona há muitas gerações.

Ali Awad: O meu avô nasceu nos anos 1940, em Tuba. Nós não somos refugiados — não viemos de outro lugar. Ao longo de 13 gerações, nenhum dos meus antepassados veio para aqui de outro lugar. Mesmo na nakba e com a ocupação em 1967. Desde a criação do estado de Israel, em 1948, que vivemos em Masafer Yatta. Até o bisavô do meu avô nasceu em Tuba, no século XIX, durante o Império Otomano.

É aqui que chegamos ao dia 4 de maio, o dia em que a Rafaela Cortez e eu aterrámos na Palestina, e o dia da decisão do Supremo Tribunal de Justiça. O que o juiz David Mintz, ele próprio um colono israelita na Cisjordânia, concluiu foi que não é possível provar a existência de habitação permanente naquelas aldeias aquando da criação da Firing Zone 918, mesmo perante os relatórios dos antropólogos israelitas Shuli Hartman e Gideon Kressel, que foram desconsiderados como “impressões”, em vez de “factos”, ou “não convincentes”. Por outro lado, o juiz utilizou como base o registo antropológico de um outro investigador, Yaakov Havakook, que, alegadamente, comprovaria a não existência de habitação permanente nesta área. 

Semanas depois, foi o próprio Yaakov Havakook que, em entrevista ao projeto de jornalismo palestiniano +972, disse discordar da interpretação que o juiz fez do seu livro. O antropólogo israelita, que visitou as povoações várias vezes nas décadas de 1970 e 1980, sublinhou que as famílias viviam, de facto, lá (cito): “Era a sua casa. Sentei-me com eles, experienciei o seu quotidiano e tudo o que vem com isso.” Em 2000, o próprio Yaakov Havakook tentou depor em tribunal a favor das famílias de Masafer Yatta, mas foi proibido pelo Ministério da Defesa israelita, para o qual trabalhava.

Assim, 22 anos depois do início deste processo, os tribunais israelitas deram luz verde ao que, efetivando-se, será uma das maiores expulsões das últimas décadas na Palestina.

Ali Awad: O objetivo é expulsar as pessoas. Foi Ariel Sharon, o ex-primeiro-ministro, que o disse em 1981, no Comité para os Assuntos dos Colonatos, no Knesset, o parlamento israelita. Disse que era do interesse deles que o exército declarasse esta área uma “firing zone” de forma a impedir o movimento dos aldeãos das montanhas para o deserto. O próprio Ariel Sharon reconheceu que já estávamos lá.

O que Ali Awad diz é verdade. Documentos confidenciais do governo israelita recentemente tornados públicos demonstram que a criação de firing zones na Cisjordânia fazia parte de um plano maior. Numa reunião secreta em 1979, o então ministro da agricultura Ariel Sharon — mais tarde primeiro-ministro israelita — disse (e cito): “Como pessoa que iniciou as firing zones em 1967, elas […] foram criadas com um propósito: disponibilizar reservas de terra para colonatos, […], de modo a criar uma oportunidade para colonos judeus na área […]..” Dois anos depois, numa outra reunião, Sharon foi ainda mais longe, dizendo que a Firing Zone 918, em Masafer Yatta, foi criada com o objetivo de parar (cito) “a propagação de aldeões árabes nas montanhas em direção ao deserto.”

Para Ali Awad, esta decisão é só mais um passo na estratégia de limpeza étnica da Palestina. Para entender isso, basta olhar para como a área declarada firing zone foi desenhada. Enquanto as aldeias palestinianas precisam de ser evacuadas, por razões de segurança, os colonatos (ou outposts, como Ali diz), podem ficar.

Vídeo produzido pela organização não-governamental palestiniana Al-Haq mostrando o desenho geográfico das firing zones na Cisjordânia, particularmente a Firing Zone 918, em Masafer Yatta

Ali Awad: Eles disseram: “Não precisamos da zona onde os colonatos estão — a área que precisamos para treinar é precisamente a das aldeias. Portanto, os residentes dessas aldeias vão ter de ir embora para dar espaço para o exército.”
Ricardo Esteves Ribeiro: Ou seja, os colonos podem ficar?
Ali Awad: Sim.

Os colonos não só podem ficar como têm expandido o seu colonato a olhos vistos. Quando falamos com quem vive em Twani, residentes apontam para as colinas explicando como, há uns anos, tudo aquilo era espaço de pastoreio. Hoje, multiplicam-se as casas e os abrigos de animais pertencentes a colonos.

Ricardo Esteves Ribeiro: O que achas que vai acontecer agora, nas próximas semanas?
Ali Awad: O que vai acontecer exatamente não é claro. Mas se o exército israelita está há 22 anos a tentar destruir a tua casa e recebe uma decisão do Supremo Tribunal israelita a dizer que pode fazer o que quiser, que tem luz verde para usar esta terra, estás à espera do quê?  Eles vão destruir a aldeia. É disto que estamos à espera. Ou então vão aumentar a quantidade de treinos entre e nas casas palestinianas. O que estamos a enfrentar nos territórios ocupados é que o Estado israelita inventa leis para justificar os crimes cometidos contra nós. Se o exército vem e destrói a minha casa e eu for ao tribunal para apresentar queixa contra eles, eles vão dizer: “Não, isto não é a tua terra. O Supremo Tribunal israelita decidiu a favor do exército. O exército pode fazer aquilo que bem entender”.
Rafaela Cortez: E as pessoas estão a pensar sair daqui?
Ali Awad: De forma nenhuma. Para viver onde? Eu já vos disse, a terra moldou estas pessoas para serem pastoras e agricultoras e viver junto da sua terra. É impossível para elas viverem longe da terra. As pessoas em Masafer Yatta são pastoras. Não são engenheiras, professoras, ou outras profissões que possam sobreviver na cidade. Nem sequer têm casa lá, para onde possam ir. Elas não têm alternativa. Talvez saíssem se tivessem alternativa. Não ficam apenas sem casa — ficam também sem sustento.

A nossa conversa com Ali Awad já durava há mais de uma hora quando, finalmente, na estrada…

Ali Awad: O exército chegou.
Ricardo Esteves Ribeiro: Ah sim? Onde? Ah, ali estão eles. Finalmente chegaram os soldados. Estão numa carrinha, jipe, na verdade Toyota, gigante, e vão levar agora as crianças para a aldeia. 
Rafaela Cortez: É 1h20, eles estão aqui há mais de uma hora.
Ricardo Esteves Ribeiro: Na verdade eles estão… eles têm tipo… Ah, eles vão a andar? Ah, eles nem sequer vão dentro do carro. Ah uau. E quanto tempo é a andar, agora?
Ali Awad: É por detrás desta colina. Depois, do outro lado, as crianças andam mais ou menos a mesma distância.
Rafaela Cortez: 10 minutos, 20 minutos?
Ali Awad: Sim, 20 minutos. 20 minutos e, se os colonos não os atacarem, chegam a casa.
Ricardo Esteves Ribeiro: Então agora têm alguém do outro lado à espera deles.
Ali Awad: Sim.
Rafaela Cortez: As crianças aprendem desde pequenos o que é a ocupação.
Ali Awad: Sim. Para já, ainda não percebem bem o que se passa, acham que é normal porque nasceram nesta situação. Mas, quando crescerem, vão perceber que não é normal.

Ricardo Esteves Ribeiro: Que idade têm?
Ali Awad: Entre seis e 13.

Crianças atravessam a estrada que liga Twani a Tuba escoltadas por militares do exército israelita.

Já vi muitas coisas difíceis de acreditar na Palestina — militares aos tiros num campo de refugiados; filas com dezenas, centenas de pessoas revistadas apenas para atravessar um checkpoint; ruas bloqueadas a palestinianos onde eu (português, branco, ateu) podia entrar; casas de palestinianos tomadas à força por colonos; sistemas de proteção de palestinianos contra pedras, lixo e até ácido enviado por esses mesmos colonos; bairros inteiros fechados para que celebrações israelitas sionistas possam acontecer em terras ocupadas — mas nada foi tão inacreditável como isto. Uma estrada de terra batida apenas com sete crianças sozinhas, de mochila às costas, a andar a pé, debaixo de um sol abrasador, escoltadas por uma carrinha militar branca ocupada por soldados, sentados, atrás do grupo. 

Do outro lado, já em Tuba, esperam-nas um outro grupo de ativistas. Nós ficamos onde sempre estivemos: debaixo de umas árvores, a olhar ao fundo as crianças a desaparecer, esperando que cheguem seguras ao outro lado. E enquanto as crianças vão desaparecendo no horizonte, uma a uma, o que sobra é o que voa mais alto: uma bandeira israelita no topo da carrinha.

Ativista: Olá, Ali! Sim, estamos com as crianças.
Ali Awad: Está tudo bem?
Ativista: Sim sim, já estamos com as crianças.
Ali Awad: Ok.
Ricardo Esteves Ribeiro: Resolvido, certo?
Ali Awad: Sim, sim.
Rafaela Cortez: As crianças chegaram.

PARTE III

15 de maio de 2022.

Em Ramallah juntam-se hoje milhares de pessoas de todos os cantos para relembrar a nakba — 74 anos de catástrofe. Chegamos à capital administrativa da Cisjordânia hoje de manhã para cobrir a manifestação.

Os seis dias que passaram desde que saímos de Masafer Yatta foram seis dias de ansiedade. De um formigueiro na barriga e um pensamento nervoso, mais ou menos constante, de que não estávamos no sítio certo. Pouco depois de termos chegado a Twani, há uma semana, a Rafaela Cortez disse-me: “Isto era daqueles sítios que, se ficássemos aqui um mês, íamos ver muita merda a acontecer. Isto, a partir de agora, é mesmo um escalar.” E foi. Basta abrir o WhatsApp, o Instagram, o Twitter ou os jornais palestinianos para perceber que nada do que lá deixámos ficou mais calmo. Multiplicaram-se as casas demolidas, os abrigos destruídos e os ataques a palestinianos e ativistas internacionais. Era para lá que queríamos ir. Mas se não conseguíamos voltar nós a Masafer Yatta, o apartheid israelita faria Masafer Yatta voltar até nós. 

Enquanto os protestos decorrem em Ramallah, num misto de raiva, tristeza, cansaço, energia e alegria, apanhamos um táxi em direção a um sítio que não parece albergar mais que um sentimento: desespero.

Sami Huraini: Olá Ricardo. Olha, ainda estamos no tribunal. Devemos acabar por volta das 3.30, 4.00. Por isso não sei, pessoal, ainda querem vir….?

Sami Huraini, o ativista que nos recebeu em Twani, fez hoje uma viagem de quase 70 quilómetros desde Masafer Yatta até à prisão de Ofer, entre as cidades de Ramallah e Beitunia.

Ofer é ao mesmo tempo uma prisão e um tribunal militar. Foi construída como tal em 2002, em terra palestiniana expropriada depois da Guerra dos Seis Dias, em 1967. Desde aí, milhares de palestinianos passaram a ser aqui julgados, detidos e presos. Ofer é o epicentro de uma estratégia que o apartheid israelita utiliza há décadas na perseguição judicial e militar a palestinianos de toda a Cisjordânia — a detenção administrativa. Basicamente, a detenção de pessoas sem acusação, sem julgamento e sem condenação, baseada em “provas secretas” a que os detidos não podem ter acesso. Segundo este sistema, qualquer pessoa palestiniana contra a qual existam (cito) “fundadas suspeitas” de que esta é um risco para “a segurança da área” ou a “segurança pública”, pode ser detida até seis meses, renovável indefinidamente.

Em março de 2022, quase 500 pessoas estavam em detenção administrativa em toda a Palestina, incluindo menores. Entre 2017 e 2021, 5728 ordens de detenção administrativa foram publicadas. Só em 2021 foram 1595.

Sami Huraini vai ser ouvido numa audiência referente a um caso do início de 2021. Quando nos avisou que lá estaria, disse-nos também que talvez fosse tarde demais para conseguirmos autorização para, enquanto jornalistas, assistir à audiência. Fomos à mesma.

Ricardo Esteves Ribeiro: Estamos agora a entrar na prisão de Ofer em Beitunia, perto de Ramallah. Vamos ver se nos deixam ir à audiência do Sami. [ouve-se passos] Será aqui?

A entrada no campo de Ofer faz-se por um corredor com pouco mais de um metro de largura e sem teto. De um lado, um muro de betão; do outro, grades de metal, ambos cobertos de arame farpado. 

É aqui que nos apercebemos da extensão de tudo isto. Ou, pelo menos, é aqui que nos apercebemos de quão maior é Ofer do que imaginávamos. Os edifícios estendem-se em tons de cinzento até onde já não os vermos. Andamos alguns minutos, atravessamos mais um corredor de betão e metal, abrimos uma porta e damos connosco no que se pode chamar uma sala de espera: cadeiras de metal lado a lado, cacifos, caixotes do lixo, um pequeno telheiro, e, claro, muita gente à espera. Tudo rodeado de mais metal, mais betão e mais arame farpado.

Ricardo Esteves Ribeiro: Olá? Olá?
Segurança: Hey. 
Ricardo Esteves Ribeiro: Olá.
Segurança: O quê?
Ricardo Esteves Ribeiro: Nós somos… Podemos…
Segurança: Não, não, isto não é um [impercetível] [desliga o intercomunicador]

Na receção, do outro lado de uma porta blindada, militares israelitas deixam claro que não podemos entrar sem autorização. É isso que tentamos, ligando ao departamento de relações com a imprensa do exército israelita.

Ricardo Esteves Ribeiro: O meu nome é Ricardo. A Riham, a advogada do Sami Huraini, deu-me o seu contacto. Sou jornalista, estou a cobrir o julgamento do Sami Huraini e gostaríamos de estar presentes na audiência. É uma possibilidade? Ok, ok, perfeito. Na verdade, já estamos em Ofer, na sala de espera, cá fora.
Rafaela Cortez: Então?
Ricardo Esteves Ribeiro: Ela disse: “Acho que não vai ser um problema.” Se calhar vai dar.

Enquanto esperamos, várias outras pessoas fazem o mesmo ao nosso lado. A espera para entrar em Ofer é apenas mais um exemplo da humilhação a que pessoas palestinianas são sujeitas. Sem que ninguém lhes responda ou os deixe entrar, a única opção que têm é esperar aqui, na rua, faça chuva ou faça sol, o tempo que for preciso.

Ricardo Esteves Ribeiro: Quando é que chegaram aqui? A que horas?
Rafaela Cortez: 10?
Abdallah: 10, 10 da manhã.
Ricardo Esteves Ribeiro: Já passaram três horas. E qual é o teu nome?
Abdallah: Abdallah.

Abdallah conta que chegou a Ofer três horas antes de nós. Não vai ser ouvido num julgamento nem detido por qualquer razão. Veio com a mulher e o filho mais novo desde Hebron, a várias horas de distância, à procura do seu filho mais velho, de quem não sabe desde ontem. E durante as três horas que aqui esteve, ainda não conseguiu falar com qualquer funcionário.

Ricardo Esteves Ribeiro: Se calhar nem sequer sabem se ele está preso. Só não sabem dele.
Rafaela Cortez: Ya. Mas a primeira opção se calhar é tipo: “Não sabemos dele, há-de estar na prisão.”

Algum tempo depois, Abdallah e a família recebem notícia de que o filho não está ali. Dizem-nos que o destino é uma outra prisão em Jerusalém. Já nós, ainda agora começámos a espera. Lá dentro, a audiência de Sami Huraini vai decorrendo.

Ricardo Esteves Ribeiro: Já enviámos os documentos, já enviámos os passaportes, já enviámos a nossa carteira de jornalista, e agora estamos à espera, mas parece que a audiência já começou.

E esperamos.

Ricardo Esteves Ribeiro: Ai o caralho. [suspira]

E esperamos.

Ricardo Esteves Ribeiro: [suspiro]

E esperamos.

Ricardo Esteves Ribeiro: Ahhhhh.

E esperamos.

Ricardo Esteves Ribeiro: Hey, duas horas… 
Rafaela Cortez: Estamos aqui há duas horas.
Ricardo Esteves Ribeiro: Ai, não acredito.

E esperamos.

Ricardo Esteves Ribeiro: Ai, ai, ai, ai, meu deus. Ya latif [ai, meu deus].
Rafaela Cortez: Ya latif [ai, meu deus].

E esperamos.

Ricardo Esteves Ribeiro: “Acabei de ser informada que vos ia ser dada a autorização em breve.” [risos]

E… finalmente… o IDF — o exército israelita — dá-nos autorização para entrar.

Ricardo Esteves Ribeiro: Olá? Eu falei com a porta-voz do exército israelita e eles deram-me autorização para entrar. Sou um jornalista… Desculpe?
Segurança: Qual é o seu nome?
Ricardo Esteves Ribeiro: Ricardo. E Rafaela. 
Segurança: O que é isso?
Ricardo Esteves Ribeiro: Um gravador.
Segurança: Não.
Ricardo Esteves Ribeiro: Desculpe?
Segurança: O passaporte, só o passaporte.
Ricardo Esteves Ribeiro: O telemóvel?
Segurança: Telemóvel? Não.
Ricardo Esteves Ribeiro: Caderno de notas?
Segurança: Nada.
Ricardo Esteves Ribeiro: Só o passaporte, ok. [ouve-se porta a fechar e um sinal sonoro]
Rafaela Cortez: Não se pode levar nada?
Ricardo Esteves Ribeiro: Nada.
Rafaela Cortez: Nem bloco de notas?
Ricardo Esteves Ribeiro: Nada.

Conseguimos assistir a não mais do que os últimos cinco minutos da sessão e não percebemos uma única palavra do que a juíza e os assistentes disseram. Toda a sessão é em hebraico, com pequenas partes traduzidas para árabe por um funcionário ou pela advogada de Sami Huraini. Mas se não percebemos o que foi dito, há pelo menos uma coisa que é clara no momento em que se entra no barracão branco feito sala de julgamento: é que esta é uma sessão onde todas as pessoas, exceto nós, a advogada de Sami e as suas testemunhas, são militares. Um tribunal onde quem acusa, quem detém e quem julga é a mesma organização — o exército israelita.

Ricardo Esteves Ribeiro: O que é que aconteceu há um ano?
Sami Huraini: Quando o exército israelita invadiu a vila junto a Twani, eles dispararam contra Harun Abu Haram, um homem palestiniano lá da vila. Dispararam-lhe contra o pescoço porque ele estava a defender a sua propriedade do exército. Como resposta a este crime, começamos a organizar manifestações e a convidar pessoas, a exigir justiça para Harun e exigir o fim da ocupação. Quando a manifestação acabou no dia 9 de Janeiro, voltei para casa e o exército israelita veio e prendeu-me. Fui para a prisão… Na prática, fui raptado até me acusarem. Todos estes casos são sequestros, se pensares bem.

Sami Huraini na prisão de Ofer.

O evento que Sami Huraini menciona aconteceu na aldeia de Rakiz, em Masafer Yatta. Tudo começou depois de várias casas terem sido demolidas pelo exército israelita, incluindo a de Harun Abu Aram, de 24 anos. Em resposta à sua situação de sem-abrigo, Abu Aram iniciou obras de recuperação da casa e, poucas semanas depois, os militares voltaram. Ao verem Abu Aram a reconstruir a sua casa sem licença, os soldados tentaram confiscar o gerador que estava a utilizar. Abu Aram resistiu e levou um tiro que o deixou até hoje paralizado.

Sami Huraini passou uma semana detido por ter organizado e participado na manifestação de 8 de janeiro de 2021 — um dos militares acusa-o de o ter agredido durante os protestos, de ter obstruído a ação do exército e de ter entrado numa zona militar interdita. Quando foi finalmente libertado, foi proibido de voltar a protestar publicamente nas ruas e ainda a pagar 10 mil shekels, o equivalente a quase 3000€ à data da edição desta história.

Em agosto de 2022, quatro peritos da Organização das Nações Unidas publicaram uma declaração sobre este caso. Nela, apontam que a acusação contra Sami Huraini baseia-se no facto de que ele era considerado pelo exército israelita “o principal instigador” da manifestação pacífica de 2021. Citando: “O julgamento em curso de Sami Huraini mostra claramente uma tendência agravante de criminalização e assédio de ativistas pelos direitos humanos com o objetivo de os silenciar e erradicar o trabalho de direitos humanos feito na região.” Lê-se ainda: “Lamentamos o facto de o julgamento de Sami Huraini ser levado a cabo pelo sistema de justiça militar, que está aquém dos critérios para um julgamento justo estipulados pelo direito internacional. A aplicação sistemática de jurisdição militar aos palestinianos é descaradamente discriminatória, uma vez que os colonos judeus na Cisjordânia estão sujeitos à jurisdição civil.”

Protestar em pleno apartheid é perigoso — o exército israelita não admite que ativistas palestinianos resistam à ocupação da sua terra. Mas não só. Também não admite que se fotografe a prisão onde são julgados.

Ricardo Esteves Ribeiro: O que é que estão a dizer?
Sami Huraini: Não estamos autorizados a documentar nada, ou vão-nos tramar. [ri-se]
Ricardo Esteves Ribeiro: O que é que se passa?
Sami Huraini: Tiraram fotografias?
Rafaela Cortez: Sim.
Ricardo Esteves Ribeiro: O que é que ele está a dizer?
Sami Huraini: Ele disse: “É proibido tirar fotografias, ou vou-te tramar.” [ri-se]
Ricardo Esteves Ribeiro: Ah, ok, desculpa.

FINAL

Passaram-se cinco meses desde que eu e a Rafaela Cortez chegámos à Palestina, a 4 de maio de 2022. Cinco meses desde a decisão do Supremo Tribunal israelita que deu luz verde à destruição de Masafer Yatta. Cinco meses onde tudo aconteceu: famílias forçadas a abandonar as suas habitações, balas disparadas contra casas, veículos confiscados, explosões detonadas por entre aldeias, tanques de guerra a passear entre populações, granadas de atordoamento e de gás lacrimogéneo enviadas contra ativistas, rusgas noturnas por parte de militares, ataques por parte de colonos. No final de junho, Sami Huraini foi detido durante oito horas. O seu carro ficou confiscado. Em setembro, o seu pai, Hafez Huraini, foi atacado por colonos, que lhe partiram os dois braços e, logo a seguir, detido pelo exército israelita.

Mas em cinco meses há algo que ficou na mesma: o apartheid israelita continua com o apoio internacional que sempre teve, exposto ainda mais cruamente pela visita de Joe Biden, presidente dos Estados Unidos da América, em julho, e de Ursula Von Der Leyen, em junho. A presidente da Comissão Europeia começou o seu discurso dizendo: “A União Europeia e Israel partilham laços e vínculos únicos porque temos uma história comum e partilhamos valores.”

Não posso garantir que assim seja, mas tenho para mim que o deserto de Masafer Yatta, esse também ficou na mesma. Com mais calor ainda, suspeito, e ainda mais castanho, mas na mesma. E se continuarmos a subir a colina desde Mufaqarah até ao ponto mais alto, onde se contempla um horizonte que parece não acabar nunca, também lá encontraremos o abrigo quase abandonado dos Youth of Sumud. Ainda com paredes por pintar, a cair aos bocados, e ainda com as mesmas três pequenas árvores, talvez com algumas mais folhas verdes. É bem possível que um dia seja mandado abaixo, quando não houver mais famílias para expulsar. E é bem possível que se erga novamente. Não nos esqueçamos do significado de sumud: perseverança. Muito mais do que apenas “perseverança”.

Subscreve a newsletter

Escrutinamos sistemas de opressão e desigualdades e temos muito que partilhar contigo.