Legislativas 2019

Inocência Mata, Luzia Moniz e Solange Rocha sobre reparação histórica

Entre o século XVI e XIX, pessoas escravizadas nas ex-colónias das maiores potências imperiais, nas Américas e em África, eram legalmente reconhecidas como propriedade. O Haiti foi a primeira a declarar o fim da escravatura, em 1804, depois de um intenso movimento de resistência liderado por negros escravizados, que levou à independência em relação a França. Depois disso, a escravatura foi terminando gradualmente em todas as outras ex-colónias Americanas até ao seu último bastião: o Brasil. 

O Brasil foi o último país da América a abolir a escravatura mas, 17 anos antes disso acontecer, em 1871, a Lei Rio Branco emancipou filhos de pessoas escravizadas nascidas após essa data. Ainda assim, segundo escreve Ana Lucia Araujo, historiadora brasileira, no livro Reparations for Slavery and the Slave Trade: a Transnational and Comparative History: “A criança permanecia propriedade do proprietário da sua mãe até à idade de oito anos. Depois, o seu proprietário podia decidir entre libertá-la e receber uma compensação financeira de 600 mil-réis do Estado brasileiro ou continuar a usar o seu trabalho de forma gratuita até aos 21 anos de idade. De acordo com os registos da província de São Paulo, proprietários que libertaram 158,093 escravos como resultado da lei de 1871, obtiveram aproximadamente 414 contos e 882 mil-réis em compensações financeiras”. 

Este não foi um caso único de compensação financeira aos “donos de pessoas escravizadas”, defende Ana Lucia Araujo, aconteceu em várias outras potências coloniais da época: “O Ato de Abolição [que aboliu a escravatura nas colónias britânicas em 1833] incluía uma provisão para compensar 46 mil proprietários de escravos com 20 milhões de libras (…) A Proclamação da Emancipação [assinada pelo presidente norte-americano Abraham Lincoln, em 1862, acabando com a escravatura em vários Estados do sul] determinou que os proprietários de escravos fossem recompensados com um valor até 300 dólares por escravo [o que significou quase 1 milhão de dólares, no total]”. 

em 1888 foi totalmente abolida a escravatura no Brasil – 700 mil pessoas escravizadas foram libertadas a partir desse ano. Mas, tal como nas restantes ex-colónias portuguesas, em África, o seu fim veio com a obrigatoriedade de trabalho não remunerado dos libertos para os seus ex-proprietários, uma outra forma de compensação financeira.

Por outro lado, em quase nenhum caso, durante todo este processo, houve reparação financeira para os ex-escravizados ou para os seus descendentes. Devemos hoje restituir as pessoas das ex-colónias portuguesas? Que consequências tem o colonialismo português e o mercado transatlântico de pessoas escravizadas, de que Portugal é o maior responsável, na sociedade de hoje? Que políticas públicas anti-racistas devem ser colocadas em prática?

Foi para discutir este tema que organizamos o debate “Reparação histórica: é possível pagar as dívidas do colonialismo?”, no passado dia 22, no Festival Iminente. Connosco tivemos Inocência Mata, professora na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, doutora em Letras e pós-doutorada em Estudos Pós-coloniais; Luzia Moniz, jornalista, socióloga e presidenta da PADEMA – Plataforma para o Desenvolvimento da Mulher Africana; e Solange Rocha, historiadora, ativista feminista negra, professora no Departamento de História da Universidade Federal da Paraíba, pós-doutoranda no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e membro da BAMIDELÊ, organização de feministas negras da Paraíba [um estado no nordeste do Brasil].

Até ao dia 6 de outubro, vamos estar focados no escrutínio de alguns dos assuntos que consideramos mais importantes à medida que se aproxima a votação que definirá a composição da próxima Assembleia da República e do próximo Governo. Vê toda a nossa cobertura das Eleições Legislativas 2019 aqui.

Citação “Abolida a escravatura, quem foi compensado? Os donos dos escravos”, de Inocência Mata, substituída a 6 de outubro de 2023 pela indicação do tema da entrevista, no título.

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