“Somos uma multidão”, por Saleem Haddad


Em baixo encontras o texto em inglês, como originalmente escrito.

Enquanto palestiniano a escrever para um público não-palestiniano, é um desafio não sucumbir à tentação de demonstrar humanidade. Essa performance é algo que aprendemos a fazer, na esperança de induzir uma epifania que reconheça a nossa carne e os nossos ossos, que reconheça que amamos, rimos e também sentimos dor. As pessoas palestinianas sabem demasiado bem que a humanidade não é algo que nos é concedido automaticamente. É algo que temos de recordar aos outros, em que temos que insistir, que nunca podemos tomar como garantido. Quando vives no mundo ocidental como palestiniano, é difícil aos outros ver simultaneamente a tua natureza palestiniana e a tua humanidade. É como se uma não pudesse existir em harmonia com a outra, e o teu trabalho passa a ser induzir um momento de epifania, como um truque de magia, em que as duas identidades – humana e palestiniana – se fundem.

A romancista Isabella Hammad observou, numa palestra recente, que muitos palestinianos dedicaram as suas vidas e carreiras a “tentar ativamente induzir epifanias noutras pessoas”. É precisa uma convicção poderosa e inabalável na vida para insistir na nossa humanidade face a uma violência indescritível que destrói qualquer fé na humanidade. Ser uma criança e acordar depois de uma noite de bombardeamentos implacáveis, no meio do fedor de corpos em decomposição e da falta de água e de eletricidade e de alimentos e de medicamentos, e reunir os amigos para organizar uma conferência de imprensa infantil para o mundo, seguramente a primeira do género, para pedir para viver como as outras crianças em todo o mundo. As pessoas palestinianas não estão apenas a recordar-nos da sua humanidade. Estão a ensinar-nos como estar vivas. 

Apesar de ter havido inúmeras epifanias pessoais ao longo dos últimos trinta dias, já não estou interessado em auxiliar ao parto de epifanias. Se, depois de toda esta violência – dezenas de milhares de mortos e mutilados, quase metade dos quais são crianças, imagens e vídeos tão brutais e grotescos que desafiam qualquer descrição, pogroms e raptos contínuos de palestinianos na Cisjordânia, leis etnonacionalistas em Israel que fazem lembrar a legislação nazi de Nuremberga, que servem para consolidar a supremacia judaica, a par das leis draconianas de polícia do pensamento recentemente aprovadas, criadas com o único objetivo de intimidar, assediar e incriminar os cidadãos palestinianos do país – se tudo isto ainda não induziu uma epifania sobre a humanidade dos palestinianos, então as minhas palavras não são para ti. Porque não há algo que eu possa dizer, nenhuma expressão que possa conjurar ou metáforas a que possa recorrer, que te faça deixar a apatia moral.

A insistência em não ver a humanidade dos palestinianos serve um objetivo específico. A romancista Toni Morrison afirmou uma vez que uma das principais funções do racismo é a distração, observando que o racismo nos “impede de fazer o nosso trabalho. Faz com que tenhas que explicar, uma e outra vez, a tua razão de ser”.

O mesmo acontece com a busca pela humanidade palestiniana. Dedicar mais tempo a provar a nossa humanidade é distrairmo-nos do trabalho muito difícil que temos de fazer, como cidadãos globais empenhados na causa da libertação da Palestina, como cidadãos globais que compreendem demasiado bem que não seremos livres enquanto não formos todos livres e que a libertação da Palestina está intrinsecamente ligada à libertação dos povos de todo o mundo.

A década que precede  outubro de 2023 foi de normalização crescente com Israel, mesmo quando o país expandiu o seu projeto etnonacionalista sionista, violando acordos e leis internacionais. O significado histórico da causa palestiniana nos movimentos progressistas e de libertação globais diminuiu, apesar da sua contínua relevância face aos desafios globais do nosso tempo. Os acontecimentos desde outubro de 2023 alteraram esta dinâmica, mobilizando um movimento global de solidariedade com a Palestina que cresceu de uma forma que aqueles de nós que têm estado firmemente empenhados na causa não poderiam ter imaginado. De ocupações e marchas de centenas de milhares de pessoas ao bloqueio de locais de fabrico de armas, o movimento é diversificado, forte e empenhado. Inclui grupos frequentemente chamados a legitimidar Israel, organizações como a Jewish Voice for Peace, que mobilizaram a diáspora judaica antissionista para apelar ao fim da ocupação, incluindo concentrações na Grand Central Station e na Estátua da Liberdade, em Nova Iorque, e grupos queer que recusam as tentativas de pinkwashing do governo israelita e seus apoiantes.

Em muitos países da Europa e da América do Norte, tem havido tentativas de silenciar e reprimir qualquer forma de solidariedade com a libertação palestiniana. Na Alemanha, o governo reprimiu violentamente – e procurou proibir – os protestos de solidariedade. Nos Estados Unidos da América, jornalistas e escritores foram repreendidos e silenciados por manifestarem oposição ao genocídio, grupos de solidariedade com a Palestina em campus universitários – incluindo o já referido Jewish Voice for Palestine – foram suspensos. E no Reino Unido, altos funcionários do governo referiram-se aos protestos contra a guerra como “marchas de ódio“.

Vivemos um momento histórico perigoso. A questão da Palestina pôs a nu a fachada por trás dos nossos mecanismos e instituições globais de governo e espoletou forças antidemocráticas em todo o mundo. O precedente que isto irá criar tem implicações muito para além da pequena região costeira de Gaza. Mas estamos também num momento de grande esperança e oportunidade. Porque somos uma multidão. As nossas lutas pela libertação são diversas e, ainda assim, intrinsecamente ligadas. E é com confiança que devemos prosseguir esta causa moral e justa.

A tática deste movimento tem de mudar, de uma procura reativa por epifanias a apelos proativos à libertação: sanções, boicotes, responsabilização por crimes de guerra e uma Palestina libertada. Um cessar-fogo não é suficiente. O caminho de regresso ao status quo foi bombardeado para além de qualquer reabilitação. Demasiado foi destruído, demasiado sofrimento foi gerado à bomba, e demasiado está em jogo. A libertação da Palestina é um prenúncio de libertação para todos nós. Porque a corda do fascismo não está apenas no pescoço das pessoas de Gaza, está também à volta dos nossos. A única diferença é que a nossa ainda não foi apertada.

Texto em inglês, como originalmente escrito

“We are a multitude”, by Saleem Haddad

As a Palestinian writing for a non-Palestinian audience, it is a challenge not to succumb to the temptation of performing humanity. This performance is something we have learned to do, hoping to induce an epiphany that recognises our flesh and bones, that we love, and we laugh, and we feel pain, too. Palestinians understand too well that humanity is not something automatically bestowed on us. It is something we need to remind others of, to insist upon, never to take for granted. To live in the Western world as a Palestinian, it is difficult for others to see your Palestinian-ness and humanness concurrently. It is as if one cannot exist in harmony with the other, and your job becomes to induce a moment of epiphany, like a magic trick, where the two identities — human and Palestinian — coalesce in the mind.

The novelist Isabella Hammad noted in a recent lecture that many Palestinians have devoted their lives and careers to “actively trying to induce epiphanies in other people.” It takes a powerful and unwavering conviction in life to insist on one’s humanity in the face of unspeakable violence that destroys any faith in humanity. To be a child and wake up after a night of relentless bombing, amidst the stench of decaying bodies and the lack of water and electricity and food and medicine and gather your friends together to stage a children’s news conference for the world, surely the first of its kind in history, in order to ask to live like other children around the world do. Palestinians are not just reminding us of their humanity. They are teaching us how to be alive.

Though there have been countless personal epiphanies over the course of the last thirty days, I am no longer interested in midwifing epiphanies. If, after all this violence — tens of thousands of dead and maimed, nearly half of whom are children, images and videos so brutal and grotesque they defy description, ongoing pogroms and abductions of Palestinians in the West Bank, ethnonationalist laws in Israel reminiscent of the Nazi Nuremberg Laws, which serve to entrench Jewish supremacy, alongside recently passed draconian thought police laws created for the sole purpose of intimidating, harassing and implicating the country’s Palestinian citizens — if all of this has yet to induce an epiphany in the humanity of Palestinians, then my words are not for you. Because there is nothing that I can say, no turn of phrase I can conjure or metaphors to draw upon, that will snap you out of moral apathy.

The insistence on not seeing Palestinian humanity serves a purposeful function. The novelist Toni Morrison once remarked that a key function of racism is distraction, noting that racism “keeps you from doing your work. It keeps you explaining, over and over again, your reason for being.”

So too is the quest for Palestinian humanity. To devote more time proving humanity is to distract ourselves from the very difficult work that we must do, as global citizens committed to the cause of Palestinian liberation, as global citizens who understand all too well that we are not free until we are all free, and that Palestinian liberation is intricately tied to the liberation of people all over the world.

The decade prior to October 2023 witnessed an increasing normalisation with Israel, even as the country expanded its ethnonationalist Zionist project in violation of international agreements and laws. The historical significance of the Palestinian cause within global progressive and liberation movements waned, despite its continued relevance to the global challenges of our time. Events since October 2023 have changed this dynamic, mobilising a global movement of solidarity with Palestine that has grown in ways those of us who have been steadfastly committed to the cause could not have previously imagined. From sit-ins and marches that number in the hundreds of thousands to blocking of weapons manufacturing sites, the movement is diverse, strong, and committed. It includes groups often called upon to provide legitimacy to Israel, organisations such as Jewish Voice for Peace that have mobilised the anti-Zionist Jewish diaspora in calling for an end to the occupation, including sit-ins at Grand Central Station and the Statue of Liberty in NYC, and queer groups who refuse the pinkwashing attempts by the Israeli government and its supporters.

Across many countries in Europe and North America, there have been attempts to silence and repress any form of solidarity with Palestinian liberation. In Germany, the government has violently repressed — and sought to ban — solidarity protests. In the U.S., journalists and writers have been reprimanded and silenced for displaying opposition to the genocide, Palestine solidarity groups on college campuses — including the aforementioned Jewish Voice for Palestine — have been suspended. And in the UK, high-level government officials have referred to anti-war protests as “hate marches”.

We are at a dangerous moment in history. The Palestine question has laid bare the façade behind our global mechanisms and institutions of governance, and unleashed anti-democratic forces across the world. The precedent this will set has implications far beyond the small coastal region of Gaza. But we are also at a moment of great hope and opportunity. Because we are a multitude. Our struggles for liberation are diverse and yet intricately connected. And it is with confidence that we must pursue this moral and just cause.The tactics of this movement needs to change, from one of reactive searching for epiphanies to proactive calls for liberation: for sanctions, boycotts, accountability for war crimes, and a liberated Palestine. A ceasefire is not enough. The road to return to the status quo has been bombed beyond any rehabilitation. Too much has been destroyed, too much pain has been bombed into existence, and too much is at stake. The liberation of Palestine is a harbinger of liberation for us all. Because the noose of fascism is not just on the neck of Gazans, it is also around ours too. The only difference is that ours has yet to be tightened.

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