“A ponta do iceberg”, por Margarida David Cardoso

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Joana Guimarães não estava bem muito tempo antes da magreza fazer a denúncia. “O número na balança era só a ponta do iceberg de baixa autoestima, crítica do corpo, trauma e problemas em casa.” Estudante universitária, no início dos seus 20, encontrou na restrição alimentar uma resposta a uma absoluta necessidade de controlo. “Nas profundezas da anorexia, eu não conseguia pensar em ser bonita.” Queria emagrecer até desaparecer. “Não vejo vaidade nisso. Eu sabia que tinha um aspeto terrível. Até respirar doía. Mas é como um vício. Eu queria mais. E quando já não queria, era porque já não conseguia mais.”

A anorexia impôs problemas cardíacos, renais, choque e medo. Não bastavam as consultas de psiquiatria de 15 minutos num hospital público, ou mais longas quando era grave a desnutrição. A psicologia no privado era insuficiente. “A única oferta era uma cama de hospital e isso eu não queria.” Teve consultas de nutrição, mas, para quem não conseguia comer diariamente, não funcionava a periodicidade de seis em seis meses. “Não sei se para alguém funciona. Eu precisava de terapia, de tempo, que me ouvissem.”

As perturbações do comportamento alimentar têm causas variadas – há predisposição genética para adoecer, fatores socioculturais, psicológicos e traços de personalidade que podem tornar alguém mais vulnerável. Os fatores precipitantes são igualmente vastos. Mas, de forma generalizada, é possível olhar para os comportamentos de privação, purga e compulsão alimentar, que estão na base destas doenças, como formas mal adaptativas de lidar com sentimentos negativos e sofrimento.

Dentro e fora das redes sociais, comportamentos de risco são potenciados pela proliferação, sem respaldo científico, de dietas restritivas não equilibradas, de narrativas que fazem equivaler um ranking social e um ideal de sucesso à capacidade de controlo alimentar, e de padrões de beleza emagrecidos. Mensagens pró-anorexia (conhecidas como pró-Ana) e pró-bulimia (pró-Mia) reforçam relações de obsessão com a comida.

Para Susana Ferreira, a busca não era pela forma do corpo ou pelo encaixe num padrão, mas não era alheia à convicção de “toda uma sociedade em que o que é fixe é conseguires controlar o que comes”. Na consulta de perturbações do comportamento alimentar do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, não é raro Tiago Duarte “ter uma doente que segue no Instagram uma outra doente que também está em consulta e que diz que gostava de ser como ela”. A escassez de psicólogos no Serviço Nacional de Saúde relega a demorada tentativa de construção de uma relação saudável com a comida para curtas consultas de psiquiatria e sessões de psicoterapia em grupo.

Hoje e nas próximas duas semanas, dedicamos três episódios às perturbações do comportamento alimentar. Se fazes parte da Comunidade Fumaça, podes já ouvi-los de seguida. No primeiro, Susana Ferreira conta como uma relação complicada com a comida se tornou uma obsessão; e como o espaço que a alimentação e o corpo ocupavam na sua cabeça foi crescendo ao ponto de lhe ocupar todo o pensamento. Entrevistamos depois a psiquiatra Isabel Brandão sobre a anorexia, o seu lado genético, a relação com a família, e algumas das ferramentas de tratamento que usou nas últimas três décadas. Por último, falamos com Tiago Duarte sobre o espectro de perturbações psiquiátricas associadas à alimentação, os fatores evolutivos que as mantiveram ao longo da história, os mecanismos fisiológicos que as perpetuam, a prevenção e a inclinação medicocêntrica do tratamento.

O primeiro episódio, em particular, não é confortável. Se já ouviste Desassossego, a série Fumaça sobre saúde e doença mental, talvez te tenhas habituado a ouvir desde esse lugar. Quando te apetecer, conta-nos o que achaste.

Até já,

Margarida 

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