LGBTQIA+

“A coisa mais vergonhosa que já fiz”, por Pedro Miguel Santos

Chamava-se Vanessa.
Ignoro se o lenço que sempre trazia à cabeça, sua imagem de marca, era de organdi. Mas dançava, dançava. Não dançava só p’ra mim. Na verdade, fazia-o por si, para si. Nos passeios, de passo largo e decidido. Nas passadeiras, em coreografias provocatórias. Nas avenidas e ruas mais movimentadas, pelo meio dos carros, que respondiam com fúria e nojo, em forma de insultos ou buzinadelas. E eu olhava, olhava. 

Chamavam-lhe ‘o Vanessa’.
A síntese punha toda a gente a perguntar: “É um homem ou uma mulher?” Era um ícone da cidade de Leiria. Pernas altas, corpo esguio. Esvoaçava como a cor dos panos coloridos que usava. Umas vezes na nuca, cujas pontas agarrava por debaixo do queixo, apenas com uma mão, qual beata. De outras, serviam-lhe para se armar em odalisca, dizer adeus, agitar volúpias.

Corria 2006. Estava no segundo ano da licenciatura; o primeiro, segundo as regras da praxe leiriense, em que podia descarregar todas as minhas frustrações na caloirada. Num dia quente de outubro, nos relvados da Escola Superior de Educação e Ciências Sociais, trajado de negro, qual corvo agoirento, reparo que ‘o Vanessa’ passava na rua em frente. Gritei: “Caloiros, vão imediatamente agarrar-se à rede e gritar ‘eu sou gay e não sei!’”. Foram. Ainda nem metade lá tinha chegado e já berrava outra vez, enfurecido, com raiva: “Caloiros, toda a gente fora da rede, não quero ninguém aí!”.

Talvez não tenha passado sequer um minuto entre a ordem e a contraordem, mas pareceu-me que o tempo tinha parado. O meu coração gelou. Tinha acabado de ordenar um ataque homofóbico, transfóbico. “Eu sou gay e não sei!” foi uma partida do meu inconsciente. Estava cansado de saber-me gay, desde muito miúdo que o sabia. Mas era o meu segredo. Fechado no armário do preconceito, da vergonha, do machismo tóxico, da misoginia. Abafado com todas as mantas do preconceito. Depois disto, não voltei a praxar. 

Passou-se ano e meio, era o dia em que celebrávamos a benção das pastas, sinal de curso acabado. Já com muito álcool no sangue, noite alta, uma das minhas melhores amigas encostou-me à parede exterior do bar onde nos costumávamos embebedar. Agarrou-me a camisa e repetiu sem parar: “Diz, diz, diz, diz, diz”. Tentei fazer-me de parvo, desconversar. Ela insistia: “Diz, diz, diz”. Disse: “Sou gay”. Abraçamo-nos, chorámos, rimos. 

Uma década depois, a Daniela – é este o nome da minha amiga – casou-me com outro homem, também em Leiria. Na cerimónia havia gente de todas as idades, cores, feitios, orientações, identidades e expressões de género. Entre essas, algumas das mais incríveis ativistas pela igualdade que cá moram. Com elas aprendi sobre feminismo, sobre homofobia internalizada, sobre vivermos num mundo patriarcal e racista, com aversão ao que vê como diferente e nojo a qualquer mistura entre feminino e masculino. Com elas soube mais sobre a história de quem um dia lutou, tornando Junho o mês do arco-íris. Aprendi que foram sempre as mais excluídas da sociedade – mulheres trans, negras, imigrantes, trabalhadoras do sexo – a dar o corpo à pancada, a exigir respeito, pedindo direitos para toda gente.

Ensinaram-me que não há só dois géneros. Nem só dois sexos. Nem só amores para a vida. Nem só monogamia. Com elas marchei cheia de Orgulho, pela primeira vez, em Lisboa. Vi esvoaçar papelinhos coloridos, atirados do Elevador de Santa Justa, com mensagens, quais bolinhos da sorte. Tantos anos depois, guardo um. Está colado na parede da secretária de onde vos escrevo. Nele lê-se: “Tod@s @s homofóbic@s reencarnarão como lésbicas, negras, imigrantes”. Assim percebi que as lutas por Direitos Humanos ou são interseccionais ou não são. Soube que era preciso despatologizar as vidas das pessoas trans, criando uma lei que garantisse o seu direito à autodeterminação da identidade e expressão de género. Que era urgente – é cada vez mais – ensinar saúde sexual e reprodutiva nas escolas, falar sobre afetos, cuidado, carinho, pela descoberta do corpo, da alma e do prazer. Que o SNS devia garantir o acesso à prevenção e ao tratamento de infeções sexualmente transmissíveis graves, como o VIH ou as hepatites.

Há tanto ainda para fazer.

A pessoa que sou hoje é muito diferente daquele ser enrustido por trás de uma franja enorme e uns óculos à lá Harry Potter. Mas também sou o que já fui. Não me recordo se voltei a ver Vanessa. Desconheço o seu paradeiro, se vive, se está bem, se é feliz. Este texto é uma espécie de ato de contrição por aquela agressão – a coisa mais vergonhosa que já fiz. Foi tempo de crescer, foi tempo de aprender. Desculpa, Vanessa. 

Sejam quem são.




Fotografia: daniil Motovilov/Unsplash

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