“A nossa obsessão com a neutralidade”, por Rafaela Cortez

A cada ano que passa, dou por mim a pensar mais em palavras. No seu significado, nas formas como são usadas, nas razões por detrás da sua escolha, no impacto que têm. Um defeito de profissão, em parte, largamente encorajado por uma politização cada vez maior do mundo que me rodeia. E poucos trabalhos me fizeram pensar tanto em palavras como o que comecei, como jornalista freelancer, a fazer com o Fumaça em janeiro de 2022, sobre a Palestina. Palavras como state-building, terrorismo, apartheid, direitos humanos. Nos últimos dois anos, devo ter tido dezenas de conversas com dezenas de pessoas sobre elas – de ativistas a consultores, de economistas a filósofos, de trabalhadores humanitários a camaradas de jornalismo. Ao longo deste tempo, talvez nenhum conceito tenha sido mais questionado e desconstruído do que o da neutralidade.

Não é difícil perceber porquê – há quase uma obsessão nos países ocidentais pelo conceito, uma espécie de superioridade moral, especialmente no que diz respeito à ajuda humanitária e ajuda ao desenvolvimento. Uma obsessão, percebi hoje, quase tão antiga como a formalização do campo de ajuda humanitária em si. 

Recuemos uns anos – 163, mais precisamente – para te apresentar Jean-Henri Dunan. Dunant tinha tudo para ser um empresário de sucesso. Um jovem com a família certa, uma posição social desejável, e um estágio que lhe deu a conhecer a Companhia de Genebra das Colónias Suíças de Sétif, a colónia francesa e suíça, na Algéria, e que o inspirou a criar o seu próprio negócio colonial no país. Faltava-lhe apenas uma coisa: uma autorização para utilizar os recursos hídricos do terreno, que o impedia de avançar na exploração. Este pequeno incómodo burocrático teimava em não se resolver, pelo que Dunant foi diretamente à procura do homem que detia controlo das terras ocupadas – Napoleão III –, que estava de outra forma ocupado no norte de Itália a comandar os exércitos franceses contra o império austríaco. 

É aí que, em junho de 1859, vai parar Dunant, na sequência de uma das batalhas mais sangrentas do século XIX. Cadáveres de homens e cavalos, poças de sangue, e quarenta mil soldados feridos sem qualquer estrutura pensada para os tratar. Horrorizado – e com a cabeça bem longe dos papéis que precisava – o jovem de 31 anos passou os dias seguintes a coorganizar esforços com a população local para dar algum tipo de assistência a quem precisava, independentemente do lado por que haviam lutado e, mais tarde, escreveu sobre a sua experiência no livro A Memory of Solferino. No fim, em jeito de reflexão, propõe as fundações do que se tornaria, mais tarde, a Cruz Vermelha: “Como teria sido valioso nessas cidades da Lombardia ter cem voluntários experientes e qualificados como auxiliares e enfermeiros! […] Não seria possível, em tempos de paz e tranquilidade, formar sociedades de socorro com o propósito de oferecer cuidados aos feridos em tempos de guerra por voluntários zelosos, dedicados e totalmente qualificados?”

Consumido pela ideia, Jean-Henri Dunant imprimiu cerca de 1600 cópias do livro com dinheiro do próprio bolso e passou os anos seguintes a promover a ideia entre amigos, familiares, filantropos, médicos, generais, governantes, reis. Em 1863, fruto da sua campanha, foi criado um comité onde Dunant e quatro outros colegas, igualmente privilegiados, discutiram formas de pôr o plano em prática. Organizaram duas conferências internacionais em Genebra. Na primeira, adotaram resoluções para o tratamento médico de soldados feridos e para a criação das forças voluntárias, protegidas com o símbolo da cruz vermelha. Na segunda, um ano depois, adotaram a primeira Convenção de Genebra, um dos mais importantes documentos do direito internacional. 

Foi nestas conferências, entre delegados de estados e reinos europeus e organizações de caridade, que se definiu a imparcialidade dos cuidados médicos e o princípio da neutralidade da ação médica. Os conceitos foram evoluindo: em 1865, tornaram-se dois dos princípios fundamentais humanitários do Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho. Em 1991, foram também adotados pela Organização das Nações Unidas. Hoje, generalizaram-se para definir as linhas orientadoras de uma grande parte dos financiadores e das grandes organizações não-governamentais.

Neutralidade passou a ser entendida, mais do que um conceito a ser aplicado à ação de médicos em tempos de guerra, como uma ação institucional de não escolher lados em hostilidades ou tomar partido em controvérsias de natureza política, racial, religiosa ou ideológica. E é aqui que surgem os problemas. Quando estamos a falar de dois lados equivalentes, dois exércitos de dois estados em guerra, o princípio da neutralidade permite ao trabalhador humanitário estar presente no terreno para administrar cuidados aos dois lados. Quando estamos a falar de conflitos assimétricos, explica o escritor e trabalhador humanitário Saleem Haddad, de genocídio, de apartheid… Fica tudo um bocado mais complexo. 

Haddad é palestiniano, de descendência libanesa, iraquiana e alemã, e tem mais de 16 anos de experiência em organizações humanitárias um pouco por todo o Médio Oriente (e arredores), entre as quais a gigante Médicos Sem Fronteiras. Tem também, diz-me Margarida David Cardoso, jornalista do Fumaça, que fez a entrevista e que me tem acompanhado neste trabalho, das vozes mais bonitas que já passaram pelo estúdio.

Esta entrevista faz parte da investigação que temos vindo a fazer sobre ajuda internacional à Palestina, mas o que Saleem Haddad nos mostrou, juntamente com muitos outros trabalhadores humanitários, é que o modelo de ajuda internacional está partido e o problema é bem maior do que a Palestina. Fala sobre neutralidade no contexto da chamada guerra global contra o terror, mas também neocolonialismo, as consequências de um modelo de financiamento que cria tanta dependência e modelos alternativos.

Os últimos meses não têm sido fáceis – quase que parece supérfluo escrever sobre mecanismos de ajuda internacional, sobre camadas de opressão cheias de nuance, quando o povo palestiniano está a ser chacinado para todo o mundo ver. Mas a cumplicidade dos países ocidentais e a falta de problematização de um modelo que não só não desafia o statu quo, mas que o torna ainda mais pervasivo, mostra que é mais urgente do que nunca trazer o assunto para cima da mesa, refletir sobre significados das palavras e sobre outras palavras, outros princípios, outras formas de pensar. 

Em 1986, explicou o arcebispo e ativista contra o apartheid Desmond Tutu que “numa situação de injustiça, não pode existir neutralidade. É preciso escolher um lado. Tens de dizer: ‘Estarei do lado da justiça ou do lado da injustiça?’ Quando um elefante se senta na cauda de um rato e dizes ‘Eu sou neutro’, o rato não vai estar particularmente satisfeito com a tua neutralidade. Já tomaste a tua decisão. Decidiste ficar do lado dos poderosos.”

Então, aproveito para vos deixar com um pequeno update: estamos neste momento a editar coletivamente o primeiro episódio desta que será uma minissérie de três episódios. Enquanto isso eu avanço na escrita do segundo e o Bernardo Afonso compõe, como já nos habituou, a banda sonora original. No espaço de dois anos, depois de mais de 40 entrevistas, mais de 40 horas de gravação, duas viagens à Palestina e uma aos campos de refugiados palestinianos no Líbano, agora, finalmente, começa tudo a encaixar-se. Em breve, damos mais novidades – se entretanto quiseres acompanhar o progresso da série, podes fazê-lo aqui.

Até já,

Rafaela Cortez

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