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“Os maniqueístas de Gaza”, por Ricardo Esteves Ribeiro

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Vivemos num mundo maniqueísta. É bem possível que não seja surpresa para quem anda atenta, quem se preocupa com o estado das coisas; mais para quem vai visitando o X (ex-Twitter), que disso é ótimo reflexo. Ficou mais claro ainda desde o passado fim-de-semana, quando se iniciou, a partir da Faixa de Gaza, uma ação de resistência palestiniana contra o projeto colonial sionista que ocupa a Palestina há 75 anos.

A divisão do mundo num conjunto de dualidades simplistas pode até ser abonatória da sua compreensão básica. Torna-se mais fácil escolher lados se as alternativas forem limitadas, se houver linhas que separam os bons dos maus. Terrorismo, por exemplo, é uma dessas linhas aparentemente fáceis de traçar. Se assumirmos apenas que terrorismo é mau, então tudo o que estiver contra este será bom, e por aí em diante.

Mas o maniqueísmo nunca foi proveitoso. Nem para os originais maniqueístas, com certeza, que sempre foram perseguidos, nem para uma leitura honesta dos dilemas da nossa vida coletiva. O mundo não é preto e branco, nem tem apenas bons e maus. Há nuance, entendimentos complexos de problemas complexos. Há história, contexto. Só que entender nuance, complexidade, história, contexto, dá trabalho. E os maniqueístas contemporâneos — dos originários da religião pouco conheço — não se querem dar ao trabalho.

Principiemos pelo princípio: terrorismo. Mais do que estabelecida por um quadro legal consistentemente codificado, a definição de terrorismo é política. A palavra era pouco ou nada utilizada até à segunda metade do século XX. Por essa altura, o termo passou a ser empregue por Estados coloniais para definir os guerrilheiros que de si tentavam libertar-se. A ETA, no País Basco, o Irish Republican Army, na Irlanda, a Front de libération du Québec, no Québec, o African National Congress, na África do Sul — o partido de Nelson Mandela, que mais tarde ganhou o prémio Nobel da Paz —, e tantos outros.

Em Portugal, encontrou-se o mesmo destino. Os movimentos de libertação nacional que lutaram contra si durante século XX  foram, a dada altura, considerados terroristas. Exemplos disso são a FRELIMO, em Moçambique, o PAIGC, na Guiné Bissau e Cabo Verde, o MPLA, em Angola. Curiosamente, todos estes formaram governos com o fim do império — e deixaram de ser considerados terroristas, já agora.

Uma frase reveladora: “Eu responderei que o terrorismo que somos obrigados a combater não é a explosão do sentimento de povos que, não fazendo parte de uma nação, conscientemente aspirem à independência, mas tão-só de elementos subversivos, estranhos na sua generalidade aos territórios, pagos por potências estrangeiras, para fins da sua própria política.” A citação podia ser desta semana, para caracterizar o Hamas, na Palestina, mas é, na verdade, de 1965, para caracterizar quem lutava pela independência contra o projeto colonial português — a luta de onde nasceu o 25 de Abril. São palavras de Salazar. Entender a luta anti-colonial do século XX é também entender como a guerra ao terrorismo é muitas vezes um instrumento colonial, imperial. Uma estratégia de defesa de opressores contra oprimidos. 

Para o dicionário da Priberam, a palavra terrorismo define-se de maneira simples: “Uso deliberado de violência, mortal ou não, contra instituições ou pessoas, como forma de intimidação e tentativa de manipulação com fins políticos, ideológicos ou religiosos.” Se usarmos esta definição como base, o Hamas seria considerado terrorista, claro. Mas é difícil argumentar que não o seja, também, qualquer organização militar. Não seria também o exército israelita? O exército russo? O estadunidense? Todas as polícias do mundo? Terrorismo é uma definição despida de significado, uma arma de arremesso.

O maniqueísmo de que falo, que procura defender que, sendo o Hamas terrorista, cometendo atos de terror, então a única alternativa é a solidariedade com Israel, esquece uma outra coisa: por muito que a cobertura mediática à volta dos acontecimentos desta semana se esforce para demonstrar esta guerra como “Hamas vs Israel”, não é isso que acontece no terreno. Desde o primeiro dia que esta ação de resistência não é monolítica. Ao Hamas juntaram-se grupos como a Islamic Jihad, em Gaza, os Lion’s Den, em Nablus, a Jenin Brigade, em Jenin, a Fatah, em toda a Cisjordânia, a PFLP, no Líbano, e também muitas outras pessoas palestinianas sem afiliação. São todos estes grupos terroristas? São todas as pessoas palestinianas nas ruas terroristas? Confio que percebas onde quero chegar.

Defender este dualismo leva-nos a um ciclo: o da negação do direito de pessoas palestinianas a defenderem-se de uma opressão colonial, inclusivamente usando resistência armada (como, aliás, expressa o direito internacional). A base do argumento sempre foi usada. Não pelos que se opunham determinantemente à libertação dos povos, mas pelos que, discordando da forma com esses povos a buscam. diziam “até podem resistir, mas não dessa maneira”. Pelos que acreditam na descolonização apenas como uma metáfora, como um enquadramento teórico, mas que, quando ela existe na prática, no terreno, arrogam-se o direito de definir os métodos de luta dos outros povos. 

Martin Luther King Jr. descreveu-a bem numa carta que escreveu enquanto estava preso em Birmingham, em 1963: “Devo confessar que nos últimos anos me tenho desapontado seriamente com o moderado branco. Quase cheguei à conclusão lamentável de que o grande obstáculo do Negro no caminho para a liberdade não é o membro do White Citizens Council, nem do Ku Klux Klan, mas o branco moderado que é mais dedicado à ordem do que à justiça; que prefere uma paz negativa, que é a ausência de tensão, a uma paz positiva, que é a presença da justiça; que diz constantemente: ‘concordo contigo no objetivo a que ambicionas, mas não posso concordar com os teus métodos de ação direta’; que sente paternalisticamente que pode definir o calendário para a liberdade de outro homem; que vive seguindo o mito do tempo; e que aconselha constantemente o Negro a esperar por uma ’época mais conveniente’. A compreensão superficial das pessoas com boa vontade é mais frustrante do que a incompreensão absoluta das pessoas com má vontade. A aceitação morna é muito mais desconcertante do que a rejeição total.”

Obviamente, ninguém que acredite na decência humana, na liberdade e igualdade, que se defina feminista e anti-autoritária pode apoiar o projeto político do Hamas ou de alguns dos outros movimentos que a esta ação se juntam. Não o apoio eu nem o apoia quase nenhuma das pessoas palestinianas que conheço. Pessoalmente, acho-os autoritários, ditatoriais, conservadores, patriarcais e até capitalistas. Qualquer pessoa decente achará também trágica a morte e tortura de pessoas — que acontece diariamente, banalmente, na Palestina. Só em 2023, ainda antes deste fim-de-semana, mais de 200 pessoas, israelitas e palestinianas, tinham já sido assassinadas). Desde aí, foram mais de mil.

Mas não é isso que está em causa. Não está sequer em causa o apoio às ações de cada momento — a solidariedade com a resistência palestiniana não corresponde ao apoio a qualquer ação de crueldade indiscriminada tomada em seu nome. Mas é irrelevante a minha posição moral sobre as formas que toma a resistência do povo palestiniano a uma ocupação de décadas. Como é irrelevante a condenação cerimonial da violência com intensidade proporcional à brancura das vítimas. O que está em causa é a legitimidade do povo palestiniano em escolher como fazer uma luta que é sua. Sobre isso, contam com a minha solidariedade.

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