Palestina

“Ninguém dorme em Twani”, por Ricardo Esteves Ribeiro

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8 de maio, Twani

Passa das duas da manhã em Twani e, tivéssemos nós contado, não chegariam todos os dedos que a natureza nos deu para calcular as vezes que Sami H. Huraini viu os vídeos gravados esta tarde. Na casa que faz de centro de resistência do coletivo Youth of Sumud, em Masafer Yatta, nas montanhas a sul de Hebron, o ativista de 24 anos não larga os olhos do telemóvel faz horas. Repete uma e outra e outra vez as imagens que mostram soldados israelitas, equipados e armados da cabeça até aos pés, a hostilizar não mais do que duas mãos cheias de pessoas, entre palestinianos e ativistas estrangeiros. Tudo começou, conta Sami, no momento em que o exército israelita tentava destruir um pequeno abrigo de um pastor da aldeia. Quando ativistas armados apenas com telemóveis e câmaras de filmar os tentaram impedir, soldados responderam levando Basil al-Adraa, jornalista, natural de Twani, ao chão, espancando-o até ser libertado pelos seus camaradas.

Sami H. Huraini segura o tubo de shisha numa mão e o telemóvel noutra, tão mais perto dos olhos quanto o sono lhe exige. Os gritos captados pelos vídeos (“Ele é jornalista! Isto é ilegal! Vocês sabem que isto é ilegal!”) vão ecoando pela sala quase despida, que é só cadeiras de plástico, garrafas de sumo e de água meio vazias, e colchões empilhados a um canto. Do outro lado, na mesma luta contra o sono, estamos eu e a jornalista Rafaela Cortez, chegados hoje mesmo, talvez 15 minutos antes do ataque. A luta contra o sono tem razão de ser: até às quatro da manhã, jovens de Twani revezam-se neste mesmo centro à espera que soldados venham buscar quem não conseguiram deter há umas horas. “Eu não quero que me encontrem a dormir”, diz Sami, que não sabe já contar as vezes que foi detido e preso pelo aparato militar israelita. Quando lhe perguntamos se tudo isto é normal, a resposta sai-lhe como se de um insulto se tratasse: “What the fuck is ‘normal’?” (“Que caralho quer dizer ‘normal’?”).

9 de maio, Twani

A manhã é normal e começa cedo. Antes das 7h30, juntam-se jovens da aldeia e uma série de ativistas italianos à espera dos militares israelitas que acompanharão crianças da aldeia de Tuba até à escola de Twani. O caminho faz-se a pé e dura menos de dois quilómetros. Talvez perguntem porque esperam crianças por soldados da força ocupante para os acompanhar todas as manhãs e todas as tardes no caminho de casa para a escola e da escola para casa. O mesmo perguntamos nós. Ali Awad, ativista e escritor, natural de Tuba (ele próprio acompanhado por militares até à escola quando era criança) explica: “É uma aventura andar sozinho nesta estrada.” A estrada faz-se por entre colonatos (internacionalmente reconhecidos como ilegais) construídos nas últimas décadas e em expansão permanente, de onde colonos israelitas atacam frequentemente palestinianos que por lá passam, incluindo crianças. Então, o próprio exército israelita decidiu alocar soldados da sua equipa para que, diariamente, escoltem um grupo de menos de 10 crianças que avançam a pé à frente de um jipe que anda de bandeira israelita ao vento. Mais ninguém é autorizado a acompanhá-los.

Os colonos de que crianças se protegem são os mesmos que atacaram ontem a pequena comunidade de pastores em Twani. Fadel Rabaee, “nascido em Twani, crescido em Twani e feito homem em Twani”, passou a noite quase em branco também em vigília, depois de ter acordado com a notícia de que várias das suas árvores foram destruídas. Ninguém dorme em Twani. 

Desde que, há uma semana, uma decisão judicial do Supremo Tribunal israelita confirmou o estatuto de “zona de treino militar” numa área de cerca de 3000 hectares onde vivem mais de mil pessoas, os problemas que já existiam há décadas intensificaram-se. Desde os anos 1980 que o exército israelita utiliza as montanhas de Hebron para treino militar e, por isso, a decisão do juiz David Mintz (que também ele vive num colonato) tem por base o argumento de que as populações que aqui vivem correm risco de vida e não conseguem provar legalmente que lá viviam antes do exército ter tomado a terra. Mas, para quem cá resiste, é apenas mais um capítulo da limpeza étnica que o apartheid israelita perpetua desde 1948. Se, antes, aqui, a usurpação de terras se fazia avulsa, a partir da semana passada há base legal para que, a qualquer momento, milhares de pessoas sejam expulsas e as suas casas demolidas. 

Mas, quando Fadel Rabaee nos diz, respondendo à primeira pergunta da nossa entrevista, que nasceu em Twani, cresceu em Twani, e se fez homem em Twani, não termina aí. Abre os olhos claros, levanta a cabeça coberta com um lenço palestiniano, branco e preto, e diz também: “E de Twani nunca sairei.”

Nota: Depois deste texto ter sido escrito, começaram as demolições por parte das autoridades israelitas em Masafer Yatta. Se quiseres acompanhar o que se passa por lá, segue a página de Instagram da Youth of Sumud.

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