Crónica

“Quantas mortes no Mediterrâneo andamos a pagar?”, por Miguel Duarte

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O sol não tinha ainda nascido quando fui acordado por uma colega que me apressou a sair para o convés. Sabíamos de um barco de borracha em perigo iminente e era quase certo que a guarda costeira líbia o alcançaria antes de nós. Vesti-me e atravessei escadas e os corredores do navio a passo rápido. Pus uma máscara e saí. Um vento frio enregelou-me o corpo, ainda meio a dormir. Dezenas de pessoas que tínhamos resgatado no dia anterior estavam a pé.  Perguntei-me se por ser impossível dormir ao relento, com o frio que se sentia; se por ter acontecido alguma coisa. Meti conversa com um pequeno grupo, mas fui interrompido por uma voz, através do rádio que carregava ao peito. Disse-me que dentro de pouco tempo passaríamos muito perto do bote que procurávamos. Pediu-me que estivesse atento aos ânimos, no convés. Testemunhar o que acabaríamos por ver podia desencadear reações emocionais nas pessoas que já tínhamos resgatado, que tinham escapado de quem viam no mar.  

Não precisei de ouvir o final da mensagem. Levantei a cabeça e vi o que se passava a estibordo. Um bote pequeno, com cerca de 80 refugiados, encaixados uns nos outros, sem possibilidade de se mexerem, flutuava à deriva, tão perto de nós que me parece impossível ter passado despercebido a alguém à minha volta. 

Atrás, um barco-patrulha cinzento erguia-se ameaçador e aproximava-se com a rapidez que as ondas permitiam. Viu-se tudo com clareza: agentes da guarda costeira líbia, fardados e armados, chegaram a menos de um metro do bote e um deles brandiu um pau ou um chicote atingindo as pessoas, para que se afastassem. Baixei o olhar. Encolhi-me perante a minha impotência, incapaz de imaginar o horror sentido por cada uma daquelas pessoas, agora que sabiam exatamente o que lhes ia acontecer. Depois, lembrei-me de que a prioridade era cuidar de quem estava a bordo do meu navio. Olhei em volta. Choravam. Não era preciso explicar o que tínhamos acabado de ver. Na verdade, quase toda a gente ali tinha escapado, dias antes, ao inferno para onde aquelas dezenas de almas que vimos a apenas uns metros iam ser enviadas. 

Decidi voltar para o mar no dia 5 de abril deste ano, quatro anos depois das últimas missões, que me valeram a constituição como arguido, em Itália, por alegado auxílio à imigração ilegal e a consequente impossibilidade de fazer resgate marítimo. A investigação contra mim e outros nove colegas terminou um mês antes. Embora quatro deles tenham sido formalmente acusados e forçados a aguentar aquilo que, provavelmente, serão anos de um julgamento absurdo, eu e outros já fomos ilibados. Desta vez, juntamo-nos à tripulação do navio Sea-Watch 4, já que o Iuventa, onde começámos a fazer resgate, se encontra ainda arrestado pelas autoridades italianas. A  razão para regressarmos foi exactamente a mesma que nos levou lá, em 2016: milhares de pessoas continuam a morrer no mar Mediterrâneo.

Interseções — ou pushbacks — como a que testemunhamos na manhã deste 30 de abril, não são esporádicas. Segundo a Amnistia Internacional, mais de 60 mil pessoas foram devolvidas à Líbia em condições semelhantes, desde 2016 (o número só pode estar muito subestimado, já que ninguém sabe, ao certo, quantas pessoas iniciam, de facto, a travessia do Mediterâneo). Independentemente disso, as interseções são ilegais. Segundo as regras do Direito Internacional, é proibida a devolução de pessoas a um país onde possam estar sujeitas a perseguição ou tortura. Chama-se princípio de não-repulsão (non-refoulement, em linguagem jurídica internacional) e está previsto em vários tratados, como na Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura. Mesmo assim, vários Estados que ratificaram este documento continuam a fazê-lo.

Neste vídeo da Sea-Watch vê-se o navio de bandeira líbia a intercetar o barco de borracha que tentávamos salvar. Estávamos em alto mar, onde vigoram regras do Direito Internacional. Esse navio, chamado Fezzan, é um dos barcos-patrulha oferecidos pelo governo italiano à Líbia, em troca de esforços para apanhar e devolver migrantes que partem da sua costa, rumo à Europa. O compromisso entre os dois países – desenhado à imagem do infame acordo entre a Turquia e os Estados-membros da União Europeia –, foi elaborado pelo ex-ministro italiano do Interior, Marco Minniti, em 2017. Mais tarde, foi reforçado pelo Vice-Primeiro-ministro Matteo Salvini (que passou a gerir a pasta do Interior) e vigora até hoje. Sejamos claros: Itália está a patrocinar violações da Lei Internacional. Mas não está sozinha. Desde 2017, a União Europeia já empregou 91 milhões de euros em apoios à Líbia, com o objetivo de reduzir os fluxos migratórios provenientes de um país arrasado por uma guerra civil sem fim, onde pessoas migrantes são regularmente sujeitas a detenção arbitrária, tortura e escravatura.

Mas se os pushbacks ilegais não fossem razão suficiente para condenar a promiscuidade entre a UE e a guarda costeira líbia, bastaria a infindável lista de crimes perpetrados por esta força militarizada. A organização é acusada de violações de Direitos Humanos, incluindo tortura; de dificultar operações de resgate; de ameaçar organizações não-governamentais. É, em parte, constituída por ex-membros de milícias, alguns dos quais ligados ao tráfico de pessoas. Em abril passado, a guarda costeira recusou-se a prestar auxílio a um barco de migrantes, bem como a fornecer informações acerca da sua posição ao navio de resgate Ocean Viking — também dedicado ao resgate no Mediterrâneo —, num dia em que as ondas atingiram seis metros de altura. Pelo menos 130 pessoas morreram afogadas, por falta de socorro.

Numa altura em que a UE se recusa a salvar pessoas em risco no mar e navios de resgate civil são permanentemente bloqueados em portos europeus, uma coisa torna-se clara: a morte de milhares de pessoas e a expulsão ilegal dos sobreviventes para países em guerra não acontece por inação europeia. É o resultado, tão previsível, quanto intencional, de uma política de fronteiras assassina. 

Em seis dias de operações, nestes dois meses de regresso ao mar, resgatámos 456 pessoas. Infelizmente, para as dezenas naquele bote de borracha, chegámos demasiado tarde. Quem sabe quantos pushbacks estarão a acontecer todas as semanas? Quem sabe quantas mortes por afogamento andam os nossos impostos a financiar?

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