Violência policial na Cova da Moura

Celso Lopes sobre como foi vítima de violência policial na Cova da Moura

“Considera-se tortura, tratamento cruel, degradante ou desumano, o acto que consista em infligir sofrimento físico ou psicológico agudo, cansaço físico ou psicológico grave ou no emprego de produtos químicos, drogas ou outros meios, naturais ou artificiais, com intenção de perturbar a capacidade de determinação ou a livre manifestação de vontade da vítima”, lê-se no 3.º ponto do artigo 243.º do Código Penal. Este é um dos crimes dos quais estão acusados 17 agentes da Polícia de Segurança Pública (PSP), por, em fevereiro de 2015, terem aprisionado e seviciado seis residentes do bairro da Cova da Moura, durante 48 horas, na esquadra de Alfragide.

A acusação do Ministério Público, que não tem precedentes em Portugal, resultou de uma investigação da Polícia Judiciária que conclui –  “de forma inequívoca e sem sombra de dúvida” – que a história que os autos de detenção (que descrevem o que se passou dentro da esquadra) contam, não corresponde à verdade. Em maio de 2018, quando se iniciou o julgamento, os 17 agentes tomaram a palavra e, todos eles, sem exceção, mantiveram a versão de que apenas usaram os meios coercivos necessários para acalmar a situação. Segundo contam, cinco moradores do bairro tentaram invadir a esquadra para libertar um amigo, Bruno Lopes, também conhecido por “Timor, detido momentos antes.

Mas Celso Lopes, uma dessas cinco pessoas, conta uma história diferente: “Como é que eu vou invadir um sítio com a minha mala, o meu caderno de campo, com uma caneta e com o meu telemóvel?”. Celso, também conhecido como rapper “Kromo Di Ghetto”, é presidente da Mesa da Assembleia Geral na Associação Moinho da Juventude que venceu, em 2007, o prémio de Direitos Humanos da Assembleia da República. Conta-nos que era normal os membros da associação deslocarem-se à esquadra para pedir informações sempre que algum jovem do bairro era detido. Quando os cinco chegaram perto da esquadra, nada exibiam que pudesse colocar em perigo a integridade física dos agentes. A não ser, diz, a sua cor de pele, como se a negritude fosse uma ameaça.

Não foi preciso esperar muito para que fossem recebidos com agressões e tiros de balas de borracha. Celso foi atingido duas vezes, algemado e levado para dentro, tal como os restantes colegas. A partir daí, a situação descontrolou-se rapidamente. Descreve ter sido torturado, pontapeado, obrigado a deitar-se numa poça com o seu próprio sangue e, para não sofrer mais agressões, fingiu estar inconsciente. Disseram-lhe ainda “tu vais morrer, preto do caralho”, “temos que extinguir a vossa raça”. Ficou detido 48 horas.

A 12 de fevereiro passado, durante a primeira sessão de alegações finais no tribunal, ia já o julgamento com nove meses, o procurador do Ministério Público deixou cair as acusações de racismo e de tortura contra os 17 PSP’s julgados. Apenas se mantiveram acusações a 10 agentes. João Nunes, o polícia que disparou sobre Celso duas vezes, ficou acusado de três crimes de ofensa à integridade física, um de falsificação agravada e outro de falsificação, um crime de sequestro e um crime de injúria. Ele e mais seis continuam acusados de sequestro. Todos os sete, em conjunto com o chefe de equipa, estão acusados de ofensa à integridade física. O chefe de equipa, Luís Anunciação, é ainda imputado de falsificação de auto e injúrias. O agente Arlindo Silva está acusado por injúrias. O procurador do Ministério Público disse ainda que era legítimo que os agentes tivessem entendido a ida à esquadra como uma invasão: foi “a percepção da realidade” dos agentes.
A leitura da sentença está marcada para 30 de abril, um dia que, seja a conclusão qual for, ficará na história da luta anti-racista em Portugal. Nesta entrevista, ouvimos o relato desse 5 de fevereiro de 2015, pela voz de quem esteve por dentro desse “inferno”.

A 6 de outubro de 2023, a citação “Os PSP disseram: ‘temos que extinguir a vossa raça'” foi substituída, no título deste artigo, pela identificação do tema da entrevista.

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