“Porquê estragar uma boa história com a verdade?” por Ricardo Esteves Ribeiro

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Sou conhecido por não conseguir ver filmes até ao fim. Não que não goste do formato, da forma de contar histórias através de imagens, mas porque, a partir do momento em que se carrega play, a probabilidade de adormecer nos minutos seguintes vai aumentando a cada um que passa. Ainda assim, quando não se fecham os olhos a contra-vontade, há um defeito de profissão que sempre me acompanha. A todo o momento, há sempre duas histórias a que estou a assistir: por um lado, a própria narrativa como espelhada nas imagens, como escrita por quem a escreveu; por outro, o que vai por detrás da narrativa, o “Como é que isto foi feito?”. Nos filmes documentais, o meu cérebro viaja profundamente: “Como é que conseguiram esta gravação?”; “Que pergunta terão feito para ter esta resposta?”; “Será que este momento é natural ou pediram à fonte para olhar para a câmara e fazer tal coisa?”; “Quem é que sentou estas pessoas desta maneira?”.

Não é difícil de imaginar que em toda a feitura de documentários não jornalísticos haja uma parte de encenação da própria história, de construção de uma memória partilhada entre quem viveu a experiência relatada e quem relata a experiência vivida. Talvez seja exatamente isso o documentário. Talvez seja exatamente isso a História. Mas há momentos onde se ultrapassa uma linha imaginária, subjetiva, que separa a ficção da não-ficção, que faz questionar: isto é memória ou invenção?

Foi essa a pergunta que fiz a mim mesmo quando vi o documentário Torre Bela pela primeira vez. O filme realizado pelo alemão Thomas Harlan, que por cá passou durante o PREC (Processo Revolucionário em Curso), conta a história da ocupação da herdade Torre Bela, a maior herdade murada da Europa, iniciada em abril de 1975. Durante mais de uma hora (na versão mais facilmente disponível online), relata-se a auto-organização de trabalhadores através de assembleias de cooperantes, a negociação da legalização das suas ações com instituições militares, discussões sobre os valores e objetivos da cooperativa, e o nascimento de um líder capaz de unificar as gentes em torno de uma missão – Wilson. A figura de Wilson Filipe ficará para sempre ligada à ocupação da Torre Bela, tanto que, quando morreu, em dezembro de 2020, foi como “um dos líderes da ocupação” que a sua vida se fez lembrar. Mas é bem possível, na verdade, que a história de uma ocupação com um líder bem falante e carismático, com jeito para as câmaras e prazer em encenar seja apenas produto de isso mesmo – uma encenação.

A teoria não é apenas minha. Em 2011, o realizador José Filipe Costa tinha já tratado de a explanar no documentário Linha Vermelha, um ensaio crítico ao filme de Harlan, publicado mais de três décadas depois. Procura desconstruir a ideia da ocupação da Torre Bela mostrando uma revolução feita em frente às câmaras gravada com os melhores ângulos possíveis. Há um momento particularmente revelador: numa das cenas mais marcantes do documentário original, os cooperantes entram em casa dos Duques de Lafões, os proprietários do terreno, e procedem a remexer as suas roupas, desarrumar as suas gavetas, visivelmente surpreendidos e emocionados com tamanha riqueza. A cena original parece captar o momento em que um grupo de pessoas pobres força a entrada na casa dos senhores para roubar os seus pertences. Ora, o que José Filipe Costa demonstra é que uma grande parte desta cena é encenada e provocada pela equipa de produção do documentário. Não só não era a primeira vez que algumas das pessoas entravam naquela casa, como foram dirigidas sobre como e quando entrar, para que tudo ficasse captado da melhor maneira possível.

Foi desde que me mudei para Azambuja, uma vila no Ribatejo, há três anos, que comecei a entender que a realidade das ocupações do PREC é muito mais complexa e rica do que a dicotomia que somos ensinados a crer sobre o pós-25 de Abril. Que a história desse período tem muito mais cinzentos do que pretos e brancos: ela não é apenas a loucura totalitária de que uma parte da sociedade fala nem é apenas a revolução organizada e hierarquizada que o Torre Bela relata.

Nos últimos meses, em conjunto com os meus camaradas da Perene, um coletivo que cofundámos em 2021, tenho vindo a procurar ativamente os testemunhos de quem, ainda vivo, se lembra de quando as gentes comuns do concelho de Azambuja tomaram o destino das suas vidas com as próprias mãos sob o lema “A terra para quem a trabalha.” O PREC de que falam estas pessoas é outro: foi o tempo em que se vivia no presente o futuro que se queria construir. Trabalhava-se a terra para uso comum, inventava-se formas de decidir em conjunto, de maneira horizontal e solidária, criava-se escolas, cantinas e creches geridas comunitariamente, organizava-se cuidados de saúde, desafiava-se os privilégios de cada pessoa, e procurava-se resolver os problemas coletivos de maneira coletiva.

Excerto do manifesto criado pelas pessoas cooperantes da Cooperativa Agrícola Torre Bela

Esta utopia não era uma qualquer realidade insignificante. Segundo Phil Mailer, autor de Portugal: The Impossible Revolution?, em novembro de 1975, o mês em que a Revolução acabou, um quinto de todos os terrenos agrícolas em Portugal estavam ocupados e auto-geridos, 35 mil casas tinham sido ocupadas e cerca de 200 fábricas estavam sob controlo de quem lá trabalhava. Só no concelho de Azambuja, existiam pelo menos sete ocupações de terras: Torre Bela, Vale Mouro, Pombal, Quebradas, Ferraria, Ameixoeira e Marquesa. 

No passado 8 de abril, há pouco mais de duas semanas, organizámos no centro da vila uma conversa sobre o passado, o presente e o futuro da Torre Bela e das ocupações do PREC. Foi bonito ver uma roda cheia de pessoas de várias gerações — incluindo camaradas que, de uma ou outra forma, fizeram parte das ocupações — a conversar sobre o sonho de um mundo diferente, onde a solidariedade, o cuidado, a igualdade, a liberdade e a ação direta são a base de como nos organizamos. Um sonho em que em vez de nos guiarmos pela expetativa de alguém decidir por nós para o bem comum, decidimos nós sobre as nossas próprias vidas. 

Antes da conversa, passámos um outro documentário sobre a Torre Bela, menos famoso: Cooperativa Agrícola Torre Bela. Durante o filme, pergunta-se a um dos cooperantes porque decidiu juntar-se à cooperativa. Ele responde: “A cooperativa para mim é uma alegria que eu tenho. Para mim, vale mais do que trabalhar com os patrões. Você sabe que os patrões não dão a mais ninguém. Os patrões só prejudicam. Só querem para eles. E aqui não é assim.” 

A geração que fez o PREC e decidiu construir uma alternativa radical à vida miserável que vinha sendo obrigada a viver irá eventualmente desaparecer. Se queremos fazer das suas histórias inspiração para a nossa ação hoje, não podemos deixar que as suas memórias fiquem esquecidas. Não esperemos mais 50 anos para ouvir as suas histórias.

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