Palestina (4/6)

Ramallah, onde está o meu irmão?

Este é o quarto episódio da série “Palestina, histórias de um país ocupado”. Se ainda não ouviste os primeiros dois episódios, ouve aqui, porque vais perceber melhor o que hoje vamos contar.

[Abaixo podes ler a transcrição de toda a audiorreportagem, incluindo a tradução, para português, de todas as declarações, citações e diálogos tidos em inglês.]

PARTE I

A 12 de Outubro de 2015 um vídeo foi publicado no Youtube. Nas imagens, vê-se um miúdo, de 13 anos, deitado no chão entre os carris de um elétrico, a sangrar da cabeça, sem parar.

Chora. Tem dificuldade em respirar, está assustado. E as pernas, uma para cada lado, parecem as de um boneco partido.

A cena é filmada por um colono israelita, que grava mesmo ao lado do miúdo e vai gritando em hebraico: “morre, cabrão”, “morre, filho da puta”.

O rapaz tenta levantar a cabeça, mexer as pernas, mas não consegue. Está rodeado por polícias, na altura em que chega a ambulância. Outras pessoas tentam aproximar-se, mas vão sendo afastadas pelas autoridades.

O colono israelita continua a gritar: “morre, filho da puta”, até que é afastado.

Dá-lhe um tiro na cabeça”, diz a um dos polícias.

A criança ferida no chão é Ahmed Manasra, palestiniano de 13 anos. Foi atropelado por um carro depois de, alegadamente, ele e o seu primo terem esfaqueado dois israelitas, um adulto e um rapaz com a sua idade. O seu primo, Hassan Khaled Manasra, foi morto a tiro, nesse dia, pela polícia Israelita.

Ahmed acaba por ser levado para um hospital, em Jerusalém, onde é tratado, algemado à cama e interrogado pela polícia israelita. Uns dias mais tarde, vídeos de câmaras de vigilância tornados públicos mostram dois jovens com facas na mão a correr por Pisgat Zeev, um colonato ilegal onde vivem mais de 50,000 israelitas, construído em Jerusalém Oriental, terra ocupada por Israel, desde 1967. Nos vídeos, vêem-se dois rapazes a atacar dois israelitas (os dois ficaram levemente feridos).

O ataque deu-se a 12 de Outubro de 2015, numa altura em que se vivia uma onda de violência um pouco por toda a Palestina. No dia anterior, a Al Jazeera fazia um especial sobre a agitação que se sentia.

“Doze dias de violência em Jerusalém Este, Israel e Cisjordânia. Oficiais [do exército] israelita culpam os ‘lobos solitários’ palestinianos, como lhes chamam, pelos esfaqueamentos aleatórios. Mas muitos questionam a resposta de Israel: terá uma política de tiro indiscriminado?” – Al Jazeera

Entre Outubro e Novembro desse ano, 103 palestinianos (incluindo 20 crianças) e 19 israelitas morreram. Dezenas de israelitas foram esfaqueados por palestinianos. Mickey Rosenfeld, porta-voz da polícia israelita, dizia:

“A maior ameaça no momento é o ‘lobo solitário’ palestiano, do sexo masculino ou feminino, que consegue entrar em Jerusalém ou na Cidade Velha, e tenta reproduzir o padrão. É com isso que estamos a lidar, é com isso que estamos a ser o mais duros possíveis.” – Mickey Rosenfeld

Contudo, a Amnistia Internacional alertava para o facto de, “as forças israelitas terem cometido uma série de assassinatos ilegais de palestinianos, usando uma força letal intencional sem qualquer justificação”.

Quanto a Ahmed, esteve internado durante vários dias. Os jornais israelitas publicaram várias notícias sobre o acontecimento com declarações suas, enquanto estava deitado numa cama do hospital. Embora gravemente ferido, parecia muito falador. A fonte das suas palavras? Investigadores da polícia israelita. Por exemplo, o The Times of Israel dizia a 15 de Outubro, três dias depois de Ahmed ter sido detido e hospitalizado, que o rapaz teria confessado o crime: “Eu fui lá para esfaquear judeus” dizia, segundo o jornal. “Eu vim com o meu primo Hassan”, “ele trouxe as facas e eu concordei em juntar-me a ele”, escreviam.

Quatro dias mais tarde, o The Jerusalem Post noticiava que Ahmed contava agora uma outra história às autoridades, contradizendo as suas declarações iniciais. No jornal, lia-se: “Eu estava com o meu primo, mas não esfaqueei ninguém”. “Eu até implorei para que ele não esfaqueasse ninguém. Eu não queria fazer aquilo, apesar de inicialmente ter saído de casa com a intenção de esfaquear judeus. Isto foi depois de o meu primo me ter convencido a ir com ele. Eu estava só com medo”.
Nenhuma destas declarações foi alguma vez confirmada por Ahmed.

Um mês mais tarde, a 9 de Novembro, um novo vídeo foi publicado.

Nas imagens, vê-se Ahmed a ser interrogado numa sala da polícia israelita. À sua frente, o agente grita-lhe perguntando o que aconteceu. Mas o rapaz jura por deus não se lembrar de nada. Ao que o polícia responde, novamente aos berros: “Que deus de merda é esse? Que se foda o teu deus”.

Ahmed está sozinho. Sem advogado, sem pai, sem mãe, sem qualquer encarregado de educação, numa clara violação dos Direitos da Criança.

O interrogatório continua, e o agente pergunta agora: “Porque é que o ajudaste? Porque é que o ajudaste? ”. Ahmed vai batendo com as mãos na cabeça, como que a tentar lembrar-se de alguma alguma coisa. Enquanto chora, diz: “Não sei, não sei”. “Eu não acredito em ti, cabrão. És um mentiroso”, responde o polícia israelita.

Não me lembro, não me lembro, não me lembro. Leve-me ao médico”, diz Ahmed, enquanto dá chapadas na cabeça. Mas o agente continua. Ordena-lhe que se cale, que se sente com as costas direitas na cadeira, que ponha as mãos para baixo.

Estou maluco, não consigo lembrar-me”, suplica o rapaz a chorar. O vídeo do interrogatório tem mais de 10 minutos. Entretanto entra na sala mais um agente, volta a sair, e tudo continua.

Ahmed continua a chorar e jura por deus que não se lembra. O polícia diz que não acredita nele. Ahmed esmurra a cabeça e diz que ainda está magoado. Mas o interrogatório acaba com uma confissão:

“Eu vou dizer que fiz isto, mas não me lembro. Eu vou dizer que fiz isto. O que querem mais de mim? Eu vou dizer que fiz isto.” – Ahmed Manasra

Assim, com base na confissão, Ahmed é acusado de tentativa de homicídio e fica detido à espera do resultado do julgamento, em Israel, durante meses. Mais uma vez, numa clara violação da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança que diz “a captura, detenção ou prisão de uma criança devem ser conformes à lei, serão utilizadas unicamente como medida de último recurso e terão a duração mais breve possível”. O tribunal rejeitou o pedido da família Ahmed, com 13 anos à data, para que ficasse em prisão domiciliária.

De acordo com a lei israelita, em vigor na altura, o tribunal não poderia condenar a pena de prisão uma criança menor de 14 anos. Mas Ahmed faria 14 anos dentro de alguns meses, em janeiro. Passado um ano, sempre detido, o tribunal condenou-o a 12 anos de prisão e a pagar uma indemnização no valor de 50.000 dólares. Em Agosto de 2017, o Supremo Tribunal israelita reduziu a pena de 12 anos para nove anos e meio.

Ahmed Manasra continua preso. Tem 16 anos.

O caso não é único. Os abusos contra direitos de crianças palestinianas são algo normal. Centenas estão detidas em prisões israelitas. Outras tantas são forçadas a fazer confissões, sob coação. Milhares sofreram abusos ou tortura, nas últimas décadas.

No episódio de hoje, “Ramallah, onde está o meu irmão?”, vamos perceber como tudo isto acontece.

Bem vindas e bem vindos ao É Apenas Fumaça.
Eu sou a Maria Almeida. E eu sou o Ricardo Ribeiro.

PARTE II

“São agora 4h30 da manhã. Nós estamos num hostel, em Ramallah, e isto é o que se ouve da janela.” – Ricardo Ribeiro

A primeira adhan do dia, a chamada para a reza muçulmana, fez-nos acordar cedo. Tínhamos passado a noite num hostel, perto da mesquita, e íamos nessa manhã ao escritório da Defense for Children International, ou DCI, uma organização internacional de defesa dos direitos das crianças, com sede na Suíça.

Ricardo – Então onde é que nós estamos?
Ruba – Este é o nosso escritório em Ramallah

Esta é Ruba Awadallah, que trabalha nos escritórios da DCI, em Ramallah. Nasceu em Jerusalém, numa vila chamada Bir Nabala, mas com a construção do muro da separação, a sua terra deixou de pertencer a Jerusalém e ela deixou de poder lá entrar.

“Originalmente é uma aldeia de Jerusalém, mas agora mudou-se a história toda e disse-se: ‘Não, agora és parte de Ramallah’.” – Ruba Allawadah

Parece a distopia “1984”, de George Orwell: “Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado”.

Ruba – Fica a apenas 10 minutos de Ramallah.
Ricardo – Mas deste lado do muro.
Ruba – Deste lado do muro, sim. Eu tenho a identificação da Cisjordânia, tenho tudo. Eu vejo Jerusalém do meu quarto mas não consigo lá ir, por isso…
Ricardo – Então não consegues lá entrar?
Ruba – Não, eu preciso de um visto e é difícil tê-lo.

Ruba apresenta-nos Ayed Abu Eqtaish, diretor na Defense for Children International, cujo trabalho é verificar se os direitos das crianças palestinianas estão a ser respeitados.

Ayed – Trabalhamos nesta área há mais de 25 anos e concluímos que a maioria das crianças palestinianas que são presas e julgadas pelo sistema legal militar israelita são expostas a diferentes tipos de maus tratos e tortura. Alguns destes tipos são pressões fisícas contras as crianças.
Ricardo – O que é que isso significa?
Ayed – Como espancamentos, pontapés, expô-las ou forçá-las a sentarem-se em posições de stress, e acrescentando-lhe ainda métodos de pressão psicológica como intimidação, ameaças, pondo crianças em prisão solitária. Por exemplo, durante o ano de 2016…
Ricardo – Quer dizer no ano passado?
Ayed – Sim. Nós documentamos os casos de 25 crianças palestinianas que foram colocadas em prisão solitária numa cela que mede dois metros por um, onde há apenas um colchão. E a luz está acesa todo o dia. Elas são colocadas numa cela para serem interrogadas. O número médio de dias que essas 25 crianças palestinianas foram colocadas em prisão solitária foi de 16 dias, sem qualquer interação com nenhum humano, exceto o interrogador durante as sessões de interrogatório.

Solitary confinement”, ou solitária, é mais do que apenas uma cela isolada, é um método de como isolar pessoas, deixando-as completamente afastadas de qualquer contacto humano, à exceção dos funcionários das prisões. Prender crianças ou jovens numa solitária é uma violação do Direito Internacional. As “Regras das Nações Unidas para a Proteção dos Menores Privados de Liberdade”, aprovadas em 1990, dizem: “Serão estritamente proibidas todas as medidas disciplinares que se traduzam num tratamento cruel, desumano ou degradante, tais como castigos corporais, colocação numa cela escura, num calabouço ou em isolamento, ou qualquer outro castigo que possa comprometer a saúde física ou mental do menor em causa.

Segundo a DCI, todos os anos, Israel detém entre 500 e 700 crianças a partir dos 12 anos. Num relatório de Janeiro deste ano, a DCI relata que, das 137 crianças cujos testemunhos recolheram e documentaram em 2017, 26 foram colocadas numa solitária durante um período médio de 12 dias – o maior foi de 23. Isto quer dizer que uma em cada cinco crianças tinham sofrido esse castigo.

Os palestinianos e palestinianas – adultos ou crianças – que vivem na Cisjordânia e são detidos pelo exército israelita, são julgados pelo “israeli military legal system”, o sistema legal militar israelita. Apesar de haver tribunais civis palestinianos. Por outro lado, sempre que uma pessoa israelita é detida, é julgada por um tribunal legal civil, e não militar.

“Desde que os territórios ocupados estão sob controle militar israelita, não há, de facto, nenhum sistema legal civil [de julgamento] para palestianos.” – Gaby Lasky

Quem o explica é Gaby Lasky, israelita, advogada de Direitos Humanos que entrevistámos há dias, por telefone. No entanto, seria de esperar que fosse o local do crime a determinar o tribunal em que a pessoa é julgada. Se o crime fosse cometido nos territórios ocupados, como é a Cisjordânia, que está sob controle militar israelita, seria julgado pelo tribunal militar. Se o crime fosse cometido no território que é hoje considerado Israel, seria julgado pelo tribunal civil. Mas não é bem assim.

“Quando um palestiniano é preso, todos eles têm de [se apresentar] perante um tribunal militar, enquanto que um colono a viver nos territórios ocupados, que cometa um crime no território ocupado, será enviado para um tribunal civil de Israel.” – Gaby Lasky

Ou seja, tribunal militar para palestinianos, tribunal civil para israelitas. E no caso de serem crianças a cometer um crime, acontece o mesmo.

“Contudo, se há duas crianças, dois menores — um colono israelita e um palestiano — a atirarem pedras um ao outro, nos territórios ocupados, os dois serão levados para a mesma esquadra da polícia. Mas aí os seus direitos serão completamente diferentes. Se no caso do menor israelita ele tem de ser levado perante um juiz num período de 12 horas, no caso do menor palestiniano eles podem mantê-lo em detenção, sem ver um juiz, por um período de quatro dias. Então, isto quer dizer que há uma diferença de regras legais que te vinculam, dependendo da tua etnia. Se fores judeu, israelita, ou se fores palestiano. E isso é completamente apartheid, não há outra forma de o dizer.” – Gaby Lasky

Isto acontece desde 1967, quando Israel ocupou grande parte da Cisjordânia, na Guerra dos Seis dias. Até hoje, centenas de milhares de palestinianos foram julgados em “military courts”, ou tribunais militares. Desde 2000, foram julgados cerca de 8000 menores.

“Em primeiro lugar, temos de perceber o tribunal militar não é realmente um Tribunal de Justiça, uma vez que o seu único propósito é o de praticar a ocupação, porque estamos a falar de um tribunal de ocupação. Então, qualquer palestiniano que esteja perante um tribunal militar, é visto como inimigo e não como uma pessoa que tenha os mesmo direitos.” – Gaby Lasky

A acusação mais comum que é feita às crianças palestinianas detidas é a de “stone throwing”, arremesso de pedras, em português. Atiram pedras a soldados israelitas armados, a carrinhas e a tanques do exército, a checkpoints, a colonos. É uma prática utilizada por palestinianos há décadas, contra a ocupação, tornada popular durante a Primeira Intifada, entre o final dos anos oitenta e os primeiros anos dos 90.

Ruba – Na lei israelita, o arremesso de pedras tem uma.. pode ter uma condenação de 10 ou 20 anos, dependendo das circunstâncias.
Ricardo – Por atirar pedras?
Ruba – Por atirar pedras. Isto não acontece a crianças, elas são usualmente [condenadas] seis, sete meses por atirar pedras. Mas, de acordo com a lei, pode acontecer. Ou seja, uma criança pode ser posta na prisão durante 10 anos por atirar pedras. E isso é assustador.

O ato de atirar pedras tem mais de simbólico do que de bélico. Não será, com certeza, o arremesso de pedras que terminará a ocupação israelita. Mas a intenção dessa prática é mostrar que há resistência à ocupação e que ela continua viva. Ben Ehrenreich, jornalista americano, autor do livro “The Way to the Spring, life and death in Palestine”, explicou-nos há dias, por telefone, a partir de Barcelona, porque atirar pedras não constitui, para si, luta armada:

“Se já estiveste numa destas manifestações, vês uma unidade de soldados, jovens israelitas, de capacetes, com proteções, a deslocarem-se em veículos fortemente armados, que estão preparados para formas de combate bem mais mortíferas, que carregam, no mínimo, espingardas, sejam M16 americanas, ou Galil. A questão do arremesso de pedras ser violência torna-se absolutamente absurda. Quando vês um grupo de jovens e crianças a atirar pedras a estes veículos armados, ou vês a atirá-las a soldados, usualmente eles não conseguem aproximar-se mais do que 100 metros, mais ou menos, a questão torna-se absolutamente absurda. É extremamente difícil chegar perto o suficiente [dos soldados] para atingir um deles com uma pedra e raramente acontece.” – Ben Ehrenreich

A desproporção, ao jeito David contra Golias, também se mede em números.

“Eu liguei para um porta-voz da governo israelita quando estava a fazer pesquisa para o livro: [Perguntei-lhe:] ‘Alguma vez morreu algum soldado por uma pedra atirada?’. Ele demorou um bocado até me reponder, e primeiro disse “algumas pessoas ficaram feridas”. E eu disse: “Não. Já alguma vez morreu um soldado?”. Por fim, disseram que não, que não tinham registos de algum soldado alguma vez ter sido ter sido morto [por apredejamento]. E, claro, milhares de palestinianos foram mortos por soldados israelitas. Portanto, nem sequer é uma questão de confrontação assimétrica . Sugerir que há algum tipo de equidade de termos é completamente absurdo.” – Ben Ehrenreich

Em quase nenhum outro sítio se vê uma resistência palestiniana tão comprometida como em Nabi Saleh, uma pequena vila, a 25 minutos de Ramallah, que em 1976 viu nascer o colonato de Halamish, no topo de uma colina, a poucos quilómetros de distância. Com o passar dos anos e com a ajuda do governo israelita, os colonos começaram a desbastar terrenos e a ocupar cada vez mais hectares. Em 1978, o Estado hebraico requisitou cerca de 150 hectares de terra para “uso militar”, roubando-os aos habitantes de Nabi Saleh e oferecendo-os aos colonos. A comunidade de Halamish foi, por isso, crescendo. Hoje, tem cerca de 1200 pessoas, o dobro dos habitantes de Nabi Saleh.

Os palestinianos que lá viviam continuaram a lutar contra a perda de território e, em Dezembro de 2009, decidiram iniciar protestos todas as semanas. A partir desse dia, todas as sextas-feiras, os habitantes marchavam do centro da vila até uma nascente de água, “spring“, em inglês, em Nabi Saleh, que antes servia os camponeses e agricultores, mas tinha sido confiscada pelos colonos.

Ben Ehrenreich passou vários meses em Nabi Saleh e descreveu-nos os protestos:

“Toda a gente se junta no centro da aldeia. Há uma árvore sob a qual toda a gente se reúne, não muito longe da mesquita. Quando a reza do meio dia acaba, as pessoas que estavam a rezar vêm para o protesto. Há um parte de discursos, quase sempre relacionados com algo que está a acontecer, porque cada marcha tem um tema em particular. Toda a gente começa a andar pela aldeia e junta-se à autoestrada que passa pela vila. Há uma curva apertada que vai por baixo dessa auto estrada e têm de virar para a esquerda nessa curva, para seguirem numa outra estrada, que leva até à nascente. Usualmente, depois de uns 200 metros, às vezes menos do que isso, os soldados começam a disparar gás lacrimogéneo em quantidades consideráveis. Acho que nunca estive num protesto – e estive em muitos – em que isso não acontecesse. Talvez um. E as pessoas continuam a marchar, mas não conseguem ir muito longe. Normalmente, as pessoas ficam durante mais um pouco, os soldados disparam mais e mais gás lacrimogéneo, balas de aço revestidas a borracha que podem ser – e já foram – mortais. Lançam granadas de atordoamento e, nos últimos meses, também têm disparado balas de aço. Depois disso, as pessoas eventualmente dispersam e, quando o fazem, os homens mais jovens da aldeia começam a atirar pedras aos soldados, para os empurrar para fora da aldeia. Atiram com as suas mãos ou com elásticos.” – Ben Ehrenreich

Contudo, há um dado curioso que une os habitantes de Nabi Saleh. É que os cerca de 600 habitantes da vila são quase todos da mesma família: a família Tamimi.

Ahed Tamimi vive em Nabi Saleh. Tinha 11 anos. Desde pequena que participava nas marchas de sexta-feira. Em 2012, aparece neste vídeo publicado no Youtube, e que se tornou viral, onde se vê a pequena Ahed, de cabelo louro, apanhado atrás, bochechas vermelhas, e uma camisola de alças preta, a levantar o braço a um soldado, de punho cerrado, como se o fosse agredir. Gritava: “Onde está o meu irmão?”.

O soldado ri-se, com desdém, e vira-lhe as costas. Ela continua atrás dele, ameaçando dar-lhe um murro. Esse militar, uns dias antes, tinha detido o seu irmão.

“Na terça-feira, soldados israelitas e a polícia que controla as fronteiras fizeram uma rusga à casa proeminente ativista palestiniana de 16 anos, Ahed Tamimi, um dia depois de um vídeo que mostra a confrontar soldados israelitas se ter tornado viral” – Amy Goodman, Democracy Now!

Cinco anos mais tarde, a 19 de Dezembro de 2017, Ahed Tamimi, a poucas semanas de fazer 17 anos, é presa. A adolescente tinha voltado a ser estrela num outro vídeo viral, por dar uma bofetada a um soldado. Ben Ehrenreich explica.

“Ahed foi presa porque desafiou um soldado israelita. No mesmo dia que o melhor amigo do seu irmão levou um tiro na cabeça com uma bala de aço revestida a borracha e toda a gente pensou que ele estava morto, ela deu uma bofetada a um soldado que estava no seu pátio, para fazer com que ele saísse. As pessoas da aldeia filmaram isso e colocaram online. Os média israelitas pegaram nisso e em Israel – essa nação com um dos mais fortes exércitos do mundo – houve uma indignação geral pela forma como esta criança os tinha humilhado. O espetáculo que se seguiu foi grotesco.” – Ben Ehrenreich

ahed-tamimi
Fotografia: Haim Schwarczenberg

O primo de Ahed (e melhor amigo do seu irmão), Mohammed Tamimi, ficou em estado crítico, foi sujeito a uma operação cirúrgica em que lhe foi removida parte do crânio e depois colocado em coma induzido, por 72 horas. As fotografias são indescritíveis. Ainda hoje, as forças militares israelitas negam ter disparado esse tiro.

Gaby Lasky, advogada de Direitos Humanos que ouvimos há pouco, é também advogada de Ahed Tamimi, e explica o que aconteceu no dia em que o vídeo que a levou à prisão foi gravado.

“No momento que os soldados estão no seu pátio, ela pede-lhes que saiam e começa a tentar empurrá-los da sua casa, com as mãos. Elea só com as mãoes, enquanto os soldados estavam fortemente armados. Esta cena ficou online porque sua mãe estava a fazer um direto para o Facebook. Era dia 15 de Dezembro. Nesse dia, os soldados não fizeram nada em relação ao incidente, nem sequer escreveram um relatório e ela não foi detida. Só depois do vídeo se ter tornado viral e membros do Parlamento de Israel o terem visto, é que começaram a dizer que ela tinha de ser detida e ficar na prisão para resto da vida.” – Gaby Lasky

Uma dessas pessoas foi o ministro da Educação israelita, Naftali Bennet, que disse, na altura, o seguinte: “As mulheres vistas no vídeo a atacar soldados israelitas deviam acabar as suas vidas na prisão.

“Como se não estivéssemos num Estado democrático em que primeiro se convoca alguém para ser investigada, decide-se o que se faz, depois tem-se um julgamento (e tem de ser um julgamento justo). Mas não, o ministro da Educação já está a mandar uma jovem mulher de 16 anos para a prisão para o resto da vida. É muito educacional.” – Gaby Lasky

“E o que se seguiu foi… podemos dizer ‘puta de confusão’, neste programa? Foi uma ‘puta de confusão’ tão grande que tiveram de a prender. Prenderam-na e, no dia seguinte, prenderam a mãe dela, com uma acusação ridícula.” – Ben Ehrenreich

Ahed Tamimi foi presa durante a noite. A casa foi invadida por soldados que acordaram toda a família. Mas para Ayed Abu Eqtaish, diretor na Defense for Children International, DCI, isso é banal.

“Normalmente, a maioria das crianças, ou pelo menos metade delas, são presas durante a noite, quando os soldados israelitas invadem a área onde a criança está a dormir. Em muitos casos, forçam a entrada na casa da criança, pedem aos membros da família para se juntarem todos num sítio, pedindo os seus documentos de identificação e identificando a criança que querem prender. Não informam a família ou a criança da razão da detenção, nem para onde a criança vai ser levada. Depois a criança é transportada para um centro de interrogação e detenção e é exposta ao interrogatório.” – Ayed Abu Eqtaish

Foi exatamente isso que aconteceu a Ahed.

“Ela foi levada pela polícia e pelo exército sem ter sido intimada antes” – Gaby Lasky

O processo de interrogatório do “israeli military legal system”, o sistema legal militar israelita tem sido várias vezes contestado pela DCI e por outras organizações de Direitos Humanos. Os abusos e as intimidações são frequentes.

Ayed – No final deste processo, a maior parte das crianças palestinianas confessam as acusações que lhes são feitas.
Ricardo – Porquê?
Ayed – Por causa da pressão usada contra elas. Assim, estas confissões que foram extraídas à força, constituem a prova primária que é usada contra elas no sistema militar legal israelita.

Na maioria dos casos, como o de Ahmed Manasra, o rapaz palestiniano de 13 anos que foi preso e de quem falamos no início deste episódio, apenas o menor está na sala de interrogatório. Sem advogado, sem pai, sem mãe, numa clara violação do direito internacional. A Convenção sobre os Direitos da Criança diz no seu artigo 9º, 1. “Os Estados Partes garantem que a criança não é separada de seus pais contra a vontade destes, salvo se as autoridades competentes decidirem, sem prejuízo de revisão judicial e de harmonia com a legislação e o processo aplicáveis, que essa separação é necessária no interesse superior da criança”, e no seu artigo 37.º, d) “A criança privada de liberdade tem o direito de aceder rapidamente à assistência jurídica ou a outra assistência adequada”.

Mas no caso de Ahed, não foi por falta de tentativa que ficou sozinha. Nariman Tamimi, mãe da adolescente detida, foi até à esquadra da polícia para onde Ahed foi levada. Em vez de ter informações sobre a detenção da filha, foi também ela presa. Até hoje.

“A mãe de Ahed, Nariman Tamimi, foi até à esquadra da polícia onde ela estava detida, porque existe o direito dos pais estarem presentes no interrogatório de um menor. E, em vez de deixarem Nariman estar presente no interrogatório de Ahed Tamimi, a polícia prendeu-a de imediato e acusou-a de incitamento.” – Gaby Lasky

Nariman foi condenada a 8 meses de prisão por, supostamente, atacar e coagir um soldado e por incitamento, já que tornou público o vídeo da filha a esbofetear o soldado.

Para Gaby Lasky, o julgamento de Ahed não foi justo.

“Em primeiro lugar, retirar uma menor da sua cama, a meio da noite, para ir a interrogatório em vez de intimá-la a comparecer na esquadra é, em si, um abuso de poder. Mas durante o interrogatório temos vídeos que mostram que um agente a intimidou dizendo coisas sobre o seu aspeto físico, enquanto estava sentado demasiado perto dela. Era dois homens numa sala, sem presença de algum dos pais ou de uma figura feminina. E não só. Enquanto foi detida, estava algemada, e a detenção foi filmada pela polícia e pelo exército. Algo que é não é nada usual e é totalmente ilegal no caso de uma menor.” – Gaby Lasky

Tal como no caso de Ahmed Manasra, que explicámos no início deste episódio, partes do interrogatório de Ahed foram reveladas no Youtube.

Dois agentes gritam e interrogam Ahed. Falam sobre a cor da pele dela e de como ela é fisicamente. Um deles pergunta-lhe: “Como és tu ao sol? Como a minha irmã? Vermelha, vermelha, vermelha? ”. Mais tarde, mostram-lhe o vídeo que levou à sua detenção. Um dos agentes diz: “ Se não nos deres o que queremos, vamos prender toda a gente neste vídeo. Tu conheces Nour, Mawan, Osama, Marah. Tu conhece-los a todos. Vamos levá-los a todos se não cooperares. Está nas tuas mãos.

Durante o interrogatório as únicas palavras que Ahed disse foram: “Eu escolho permanecer em silêncio”. E assim ficou, duas horas.

“O agente disse especificamente nomes de membros da família dela e disse-lhe que se ela não falasse, iria prendê-los, incluindo os menores. Mas devo dizer que a Ahed foi muito, muito, muito, muito corajosa e não falou durante o interrogatório.” – Gaby Lasky

Para Ayed Abu Eqtaish, da DCI, os abusos e ameaças durante os interrogatórios são constantes e têm um propósito.

Ayed – Se a criança cometeu, ou não, o crime não é a questão. A questão é se existem, ou não, provas contra a criança que possibilitem ao Exército a emitir uma sentença contra a criança. No tribunal militar, eles tratam as provas que foram extraídas à força como provas primárias contra crianças palestinianas, de modo a poderem emitir uma sentença contra elas. Quase todas as crianças que são julgadas num tribunal militar são condenadas.
Ricardo – Quase todas? O que é que isso quer dizer?
Ayed – Significa que, por exemplo, em 2011, um tribunal militar israelita publicou um relatório sobre eficiência. Nesse relatório, mencionaram que a taxa de condenações era de 99,74%.
Ricardo – Para crianças?
Ayed – Para todos. Crianças e adultos, por crimes relacionados com questões de segurança ou não. Isto significa que toda a gente que é julgada num tribunal militar é condenada.
Ricardo – Eles chamam a isso eficiência?
Ayed – Sim.

Ahed foi também condenada. Esteve presa a aguardar julgamento durante três meses – mais uma vez, numa clara violação dos Direitos das Crianças. E, em Março deste ano, aceitou um “plea bargain” – em português, um acordo judicial, aceitando assumir a culpa, na contrapartida de ter uma redução da pena. Gaby Lasky explica porquê.

“Principalmente, porque o julgamento demora muito tempo e a maior parte das pessoas que são julgadas num tribunal militar são detidas até ao final do julgamento. Por isso, as pessoas preferem acabar o processo com um acordo em vez de estar detidas por um período muito longo, talvez mais longo do que o período da condenação. No final, aceitámos um acordo em que ela ficará presa 8 meses, quando a acusação queria Ahed presa durante um período superior a quatro anos. Tendo em conta que a acusação da Ahed tinha mais de 40 testemunhas, o julgamento teria demorado muito muito tempo.” – Gaby Lasky

Ahed teria ficado presa durante todo o processo, à espera de saber o tempo da sua pena, sendo que quase de certeza seria condenada.

PARTE III

O caso de Ahed Tamimi serve para explicar o que acontece a uma jovem julgada por um tribunal militar, em inglês “military court”. Mas para Ruba Awadallah, que nos recebeu à chegada ao escritório da Defense for Children International, este não é, de todo, um caso isolado.

Ruba – Não estamos a falar de casos isolados. Há um padrão, e isto é o que acontece na justiça israelita. É um sistema de tortura sistemática. De Janeiro a Junho de 2017, acompanhámos 81 casos.
Ricardo – Casos de?
Ruba – Casos de detenções de crianças na Cisjordânia e em Jerusalém. Vou só dizer as percentagens das formas de abuso, e por aí podem perceber o que acontece mais. Pernas e mãos algemadas, 92,6%. Olhos vendados, 76,5%. Violência física, 72,8%. Agressão verbal e intimidação, 69,1%. Isto pode ser, por exemplo, dizerem-lhes num interrogatório: ‘Vou demolir a tua casa se não falares. Vou deter o teu irmão’. E, são crianças, não fazem ideia do que se está ali a passar, e pensam ‘eu quero salvar a minha família’ e confessam algo que, na maior parte das vezes, não fizeram. Por isso é que é assustador quando usam isto. Revista corporal, 84%. Negação de comida e água adequadas, 45,7%. Proibição de usar a casa de banho, 22,5%. Abuso de posição, 13,6%. Transferência [de local] deitada no chão de um veículo, 38,3%. Mostra de um papel em hebraico para assinar. Depois do interrogatório eles dão um papel para assinar e, na maior parte dos casos, está em hebraico, uma língua que a maior parte dos palestinianos não fala. Eles [as crianças] não sabem o que lá está escrito, mas obrigam-nos a assinar. Em alguns casos, as crianças sabem que devem isso, mas estão tão assustadas que só querem sair da sala de interrogatório. Então assinam qualquer coisa. E isso pode ser usado contra eles no tribunal, é assustador. É 72,8%.
Ricardo – 72% de 81 casos, só em 2017.
Ruba – Sim, de Janeiro a Julho.
Ricardo – Seis meses.
Ruba – Seis meses. Prisão no mesmo espaço que um adulto, 2,5%. Este não é muito usual. Ameaças de agressões sexuais, 0%. Choques elétricos, 0%.

Não acaba aqui. Segundo dados da DCI, entre Outubro de 2015 e Janeiro de 2018, 25 crianças palestinianas foram detidas em prisão administrativa – presas sem julgamento.

Ayed – Normalmente, eles usam a detenção administrativa quando não conseguem apresentar uma acusação contra a criança. Se os agentes não conseguirem extrair uma confissão contra a criança, nem apresentar acusação, podem usar a detenção administrativa.
Ricardo – Mas, para as crianças que são presas por detenção administrativa, qual é normalmente a razão?
Ayed – Pode ser qualquer coisa. Como publicações no Facebook.
Ricardo – Portanto, pessoas podem ser detidas por publicar no Facebook? Que tipo de coisas.
Ayed – A glorificar um mártir, ou algo do género.

Segundo a lei militar israelita, crianças com menos de 12 anos não podem ser detidas.

“De acordo com a lei, [crianças com menos de 12 anos], não são detidas. Mas isso não quer dizer que não sofram abusos. As forças israelitas podem levar uma criança de 9 anos, e colocá-la num veículo militar e deixá-la lá horas e interrogá-la, ou seja o que for, e depois soltá-la em liberdade. Isto não é considerado uma detenção, mas elas estiveram horas num veículo militar, ou ao lado de um checkpoint e, para uma criança de 9 anos ou 7 anos, é uma detenção e é uma experiência muito má.” – Ruba Allawahah

“Existem diferentes limites de penas, para diferentes grupos de idades. De acordo com a convenção da ONU, qualquer pessoa com menos de 18 anos é uma criança. Mas, de acordo com Israel, diferentes grupos de idades são tratados de maneira diferente. Com menos de 12 anos, não são detidos. Com 12 ou 13 anos, têm uma pena máxima de seis meses de prisão. 14 e 15 têm uma pena máxima de 12 meses, ou seja um ano, a não ser que o crime tenha uma pena máxima de 5 anos de prisão, ou mais – e aqui podemos ligar isto ao arremeso de pedras, que tem 10 ou 20 anos de pena máxima. É complicado, porque podes pensar ‘ah, que queridos, 14 ou 15 anos, pena máxima de 12 meses’. Se as pessoas não souberem que atirar pedras pode levar a 10 ou 20 anos de prisão, podem achar ‘se uma criança fez uma coisa tão grave que pode ter uma pena de 5 anos de prisão, então pode ser perigososa e deve ficar na prisão’. Então, se não souberes tudo, podes ser enganado.” – Ruba Allawadah

PARTE IV

Ainda antes de viajarmos para a Palestina, enquanto agendávamos entrevistas e encontros com ativistas e organizações na Cisjordânia, dissemos a Ruba, da DCI, que gostávamos de entrevistar uma ou duas crianças. Queríamos perceber o que significa crescer sob ocupação, e quão diferente é ser criança em Portugal e na Palestina.

Ruba falou com duas adolescentes que participam regularmente em atividades da DCI, pediu autorização para a entrevista aos seus encarregados de educação, disponibilizou-se para fazer a tradução e agendou a conversa que se segue agora.

Ricardo – Como te chamas?
Baghdad – Baghdad. A capital do Iraque.

Baghdad tinha 13 anos. Miran, 16. Mais ou menos a idade das minhas sobrinhas, que vivem no Porto.

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Ricardo – Onde vivem?
Baghdad – Perto de Ramallah.

Maria – Vão as duas à escola?
Baghdad e Miran – Sim
Ricardo – A mesma escola? São colegas?
Miran – Não, não.
Ricardo – Mas são amigas?
Miran – Sim.
Ricardo – Como se conheceram?
Miran – [fala em árabe]
Ruba – Através da DCI. São membros da conselho das crianças da DCI. Foram eleitas e representam o município de Ramallah.
Ricardo – Ah, são representantes. Políticas.
Maria – Parabéns.
Ricardo – E o que têm de fazer nesse programa?
Baghdad – [fala em árabe]
Ruba – No conselho das crianças têm de aprender sobre os direitos das crianças e chamar à atenção de outras crianças sobre os direitos que elas não sabem ou não querem saber. E ela usou um termo bonito: ‘alimentamos o nosso cérebro com esta informação’. Acho que é um conceito bonito de de ser utilizado por uma criança.

Um dos trabalhos que Miran e Baghdad fazem com a DCI é também documentar violações que acontecem a outras pessoas da mesma idade.

Ricardo – Que tipo de violações?
Miran – [fala em árabe]
Ruba – Violações sociais e políticas.

Miran dá-nos um exemplo que lhe é próximo. A vila onde vive está cercada por um colonato, uma zona militar e pelo muro do apartheid, como lhe chamou. Por isso, são frequentes as rusgas de soldados à sua escola. Disse que uma vez tentaram deter um colega seu, outra vez bateram num estudante e noutra bateram no professor. Quando estão sentados, durante a aula, nunca sabem o que pode acontecer, conta.

Ricardo – Gostas da escola?
Miran – Claro.
Ricardo – Porquê?
Miran – [fala em árabe]
Ruba – Ela disse que gosta do ambiente, dos professores. Mesmo que seja ao lado do muro. Mas eles têm jardins à volta, então, isso fá-la gostar da escola.
Ricardo – E tu? Tu não gostas…
Baghdad – Às vezes.

Saem juntos, vão a casa uns dos outros, aprendem dabke, uma dança palestiniana tradicional e vão a eventos de política, para saberem como defender os seus direitos. Baghdad tem 13 anos, e envolve-se nestas questões desde os 11.

Baghdad – [fala em árabe]
Ruba – Ela disse que começou a ir quando se apercebeu da situação em que vivia. Antes, era normal, estava habituada. Quando tinha de parar em checkpoints, parava, não pensava nisso. Mas quando começou a ir, quis começar a saber mais sobre a situação e não acha normal ser assim.

Miran, que tem agora 16 anos, começou também a participar em palestras políticas, aos 11 anos.

Ricardo – Disseste que estavas em palestras políticas desde os 11 anos. Porque é que começaste a ir?
Miran – [fala em árabe]
Ruba – Porque ela está chateada com a situação e com as coisas por que passa diariamente. Está chateada porque as pessoas não querem mais saber. Esta é a nossa terra e eles ocuparam-na. Ela disse que os britânicos prometeram – com o acordo de Balfour – esta terra e disseram que era uma terra sem povo. Ela diz ‘nós somos o povo, e esta é a nossa terra, é o nosso dever defendê-la’.

Baghdad usou a palavra “ocupação”, e quisemos saber porquê.

Baghdad – [fala em árabe]
Ruba – Ela diz que o mínimo que se pode dizer sobre isto é “ocupação”. Eles vieram à força, ninguém queria que viessem. Vieram à força e não só nos roubaram as nossas terras, como ocuparam os nossos cérebros, ocuparam os nossos sentimentos em relação às nossas vilas. O mínimo que se pode dizer é “ocupação”, porque foi à força.

Maria – Têm algum amigo israelita?
Baghdad – [fala em árabe]
Ruba – Não. Então as únicas pessoas israelitas que conhecem são os soldados?
Baghdad – Hum, hum.
Ricardo – E também os colonos, na tua cidade [onde vive a Miran], porque o colonato é perto.
Miran – [fala árabe]
Ruba – Ela disse que sabe que talvez existam israelitas que são contra a ocupação da nossa terra, e que ouviu na televisão israelitas a dizer que era errado e que tem de resolver-se, mas eles não são a maioria e essas pessoas estão caladas.

Maria – Podem descrever o vosso dia? Resumidamente, desde que acordam, vão para a escola, o que acontece?
Baghdad – [fala em árabe]

Num dia preenchido, Baghdad acorda às 6 da manhã. Lava os dentes, toma o pequeno almoço, veste-se. Anda sempre atrasada. Sai de casa, que é ainda longe da escola, e caminha a pé, de mochila às costas. Se tiver um teste, nesse dia, revê matéria pelo caminho. Entretanto, vão-se juntando amigas e amigos e seguem juntos. As aulas começam e, para Baghdad, o tempo demora demasiado a passar até poder regressar a casa – era ela que dizia há pouco, só gostar da escola às vezes.

Se tiver trabalhos de casa fá-los. Depois vai para uma colina com os amigos, por entre os escombros de uma casa demolida pelo exército israelita, onde ficam a conversar.
Os soldados não gostam que ela e os amigos lá estejam. Mandam-nos embora.
E é por isso mesmo que voltam para lá. Para desafiar.

Mais tarde, vai para o centro de jovens da aldeia, onde há quase sempre conversas, ou workshops, ou palestras políticas. Regressa a casa, toma banho e dorme.

E o que quererá Baghdad ser quando for grande?

Baghdad – [fala em árabe]
Ruba – Ah, uma repórter de guerra.
Ricardo – Ah, também queres ser jornalista. Talvez possas trabalhar connosco no futuro. E porque é que queres ser uma repórter de guerra?
Baghdad – [fala em árabe]
Ruba – Ela disse que não há uma razão em específico, é só um hobby. E há um jornalista que ela gosta muito de ver. Sempre que ele está na televisão, ela diz ‘quero ser como ele’. E a mãe dela tem um amigo que aparentemente também é repórter. Sempre que ela os vê aos dois na televisão, pensa ‘quero ser como eles’.
Ricardo – Não tens medo?
Baghdad – [fala em árabe]
Ruba – No.

Mas Baghdad e Miran tem um outro grande sonho.

Maria – Qual o vosso maior sonho?
Miran – [fala em árabe]
Ruba – Que a Palestina seja livre. Libertar a Palestina.
Baghdad – [fala em árabe]
Ruba – Bem, ela disse que, sem pensar, libertar a Palestina. Mas, também, antes que seja livre, que se pense o que vamos fazer quando for livre para que, quando for livre, não seja o caos.
Ricardo – E achas que isso vai acontecer?
Baghdad – [fala em árabe]
Ruba – Perguntei: ‘se estivermos juntos, vai acontecer, e ela disse que sim, certamente’.
Ricardo – E achas que as pessoas estão juntas, agora?
Baghdad – Bluh… [fala em árabe]
Ruba – Desde que acreditemos nos nossos direitos neste país, poderemos certamente vir a ser livres. Pode ser quando estivermos já mortos, na altura dos nossos filhos, ou na altura dos nossos netos. Mas seremos certamente livres um dia.

Ricardo – Já alguma vez foram à praia?
Baghdad – Sim.
Ricardo – Então tiveram de passar o muro para o outro lado. Como foi estar do outro lado?
Baghdad – [fala em árabe]
Ruba – Ela disse – e está a falar do sentimento no checkpoint – que não era bom ver alguém que não tem nada a ver contigo a decidir quem pode e quem não pode passar. E mesmo que tenham um visto, eles podem dizer “não podes passar”. É um sentimento muito mau.

Ao terminar esta entrevista, já que as duas queriam ser jornalistas no futuro, passámos-lhes o telemóvel, que fazia de gravador. Era Miran quem o segurava, com as mãos a tremer. Mas foi sem pensar muito e olhando-nos nos olhos que perguntou:

Ruba – Ela quer dizer alguma coisa.
Miran – [fala em árabe]
Ruba – Ela disse que agora tem 16 anos e está a começar a saber mais sobre a situação da Palestina e o que estamos a viver, mas o que ela gostava mesmo de saber é onde está o mundo, tendo em conta o tudo o que se está a passar. Porque é que ninguém faz nada? É uma pergunta para vocês…

A música é dos Lotus Fever. Durante este episódio, ouviste também as músicas Al Shate’ Al-Akhar de Kamilya Jubran. Arab Chamer de Imad Chawich wa Fareeha al abdallah. As músicas Asfâr, Sama Cordoba e Dawwar el shams, de Le Trio Joubran e Nghayer Bukra de Dam.

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