Palestina (5/6)

Jerusalém, minha, tua, de quem a ocupar

Este é o quinto episódio da série “Palestina, histórias de um país ocupado”. Se ainda não ouviste os primeiros quatro episódios, ouve aqui, porque vais perceber melhor o que hoje vamos contar.

[Abaixo podes ler a transcrição de toda a audiorreportagem, incluindo a tradução, para português, de todas as declarações, citações e diálogos tidos em inglês.]

PARTE I

Olá. Este é o quinto episódio da série “Palestina, histórias de um país ocupado”. Tínhamos planeado que seria o último capítulo. Mas não vai ser. A complexidade de tudo o que se passa nesta região precisava de mais tempo. Por isso, para semana, lançamos mesmo o último.

Para já, no episódio de hoje, “Jerusalém, minha, tua, de quem a ocupar”, vamos perceber a história deste lugar sagrado e porque parece ser o epicentro de tudo o que acontece. Vamos ainda recordar os Acordos de Oslo, a forma como eles condicionam a ocupação efetiva e ouvir o que pensa alguém que cresceu num colonato.

Seja toda a gente bem vinda ao É Apenas Fumaça. Eu sou o Ricardo Esteves Ribeiro. E eu sou a Maria Almeida.

“Obrigado. Quando eu tomei posse, prometi olhar para os desafios do mundo com os olhos abertos e pensamento fresco. Não podemos resolver os nossos problemas assumindo os mesmos pressupostos e repetindo as mesmas estratégias falhadas do passado. Todos os desafios exigem novas abordagens. Hoje, o meu anúncio marca o início de uma nova abordagem ao conflito entre Israel e os palestinianos.” – Donald Trump

6 de Dezembro de 2017. Passava pouco da uma da tarde, quando Donald Trump, presidente dos Estados Unidos da América, entrou na Sala de Recepção Diplomática, na Casa Branca. De gravata azul e um pin com a bandeira do seu país na lapela, começou um discurso que já muita gente adivinhava. Mike Pence, vice-presidente norte-americano, estava atrás de si.

“Durante todos estes anos, presidentes representando os Estados Unidos negaram-se a reconhecer oficialmente Jerusalém como a capital de Israel. Na verdade, negámo-nos a reconhecer qualquer capital de israelita. Mas hoje, finalmente reconhecemos o óbvio: que Jerusalém é a capital de Israel. Isto é não é mais nem menos do que o reconhecimento a aceitação da realidade. Também é a coisa certa a fazer. É algo que tem de ser feito. É por isso que, em coerência com o Jerusalem Embassy Act, ordenei que o Departamento de Estado comece os preparativos para mudar a embaixada americana de Tel Aviv para Jerusalém. Isto irá iniciar imediatamente o processo de contratação de arquitetos, engenheiros e gestores para que, quando finalizada, seja um magnífico tributo à paz.” Donald Trump

Um magnífico tributo à paz. Assim, Donald Trump faria com que os Estados Unidos da América fossem o primeiro país do mundo a ter uma embaixada na cidade sagrada depois de décadas sem missões diplomáticas aí sediadas. Não é que não tivesse havido embaixadas em Jerusalém. Mas as mais de 10 que havia na altura foram retiradas, pelos respectivos países, durante os anos 80. Um protesto contra a ocupação de toda a cidade de Jerusalém, em 1967, e depois de uma série de resoluções das Nações Unidas que foram sucessivamente ordenando a retirada de Israel da terra ocupada.

“Este é um dia histórico.” – Benjamin Netanyahu

Para Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro israelita, foi um dia histórico.

“O anúncio de hoje do presidente Trump é um grande acontecimento. Estamos profundamente gratos ao presidente, pela sua corajosa e justa decisão de reconhecer Jerusalém como capital de Israel e preparar a inauguração da embaixada dos Estados Unidos aqui. Esta decisão reflete o empenho do presidente por uma verdade ancestral mas verdadeira, por cumprir as suas promessas em fazer avanços pela paz.” – Donald Trump

Mas não foi bem isso que aconteceu. Apesar dos apelos de Netanyahu, uma parte da comunidade internacional condenou esta decisão. Ainda no mesmo dia, o Papa Francisco, fazia um apelo urgente para que se respeitasse o estatuto da cidade, como indicavam as resoluções da Nações Unidas. Stephane Dujarric, porta voz da ONU, referia num discurso essas mesmas resoluções.

“Sempre considerámos Jerusalém como um problema a ser resolvido no final das negociações e resolvido através de negociações entre as duas partes com base nas resoluções relevantes do Conselho de Segurança da ONU” – Stephane Dujarric

Federica Mogherini, Alta Representante da União Europeia para Política Externa e Segurança:

“A União Europeia defende o recomeço de um processo de paz significativo em direção a uma solução de dois Estados. Acreditamos que qualquer ação que enfraqueça estes esforços deve ser absolutamente evitada.” – Federica Mogherini

Nabil Shaath, representante palestiniano nas negociações com Israel e ex-ministro dos Negócios Estrangeiros:

“Ele destruiu qualquer possibilidade de vir a desempenharum papel no “acordo do século” de que ele tanto tem falado.” – Nabil Shaath

Theresa May, primeira-ministra britânica:

“Jerusalém deverá formar uma capital dividida entre os Estados israelita e palestiniano. Isto é, continuamos a defender uma solução de dois Estados, reconhecendo a importância de Jerusalém. A nossa posição não mudou.” – Theresa May

O secretário-geral da Liga de Estados Árabes, Ahmed Aboul Gheit, dizia que “seguir com este processo perigoso terá consequências”. Já o rei da Jordânia alertava que a decisão de Trump podia abalar a estabilidade da região.

“Não existe alternativa à solução de dois Estados, e Jerusalém é a chave de qualquer acordo de paz e é muito importante para a estabilidade da região.” – Abdullah II

Mahmoud Abbas, num discurso ainda no próprio dia do comunicado de Trump, dizia: “Estas medidas, que nós rejeitamos e recusamos, criam constrangimentos deliberados em todos os esforços pela paz, e refletem a retirada dos Estados dos Unidos do papel de supervisionar o processo de paz que tinham assumido no passado. Além de que estas medidas podem ser consideradas um prémio a Israel por ter negado os acordos de Paz e por desafiar a Lei Internacional e um incentivo para continuarem a ocupação, os colonatos, o apartheid e a limpeza étnica.”

Na semana seguinte ao anúncio, a violência na Cisjordânia e em Jerusalém esteve em destaque nas notícias, um pouco por todo o mundo. A RTP tinha enviados especiais no local.

Carlos Pinota – Boa tarde José Manuel Rosendo, agora é muito difícil travar a escalada deste conflito.

José Miguel Rosendo – É muito difícil, pelo menos não há nenhum sinal de que o conflito possa diminuir de intensidade, e com o avolumar das vítimas, dos mortos e também dos feridos, aumenta a revolta dos palestinianos.

Rockets foram disparados desde a Faixa de Gaza. Bombardamentos desde Israel. Os confrontos entre palestinianos e o exército israelita eram diários. Os civis palestinianos enviavam pedras, os militares judaicos respondiam com gás lacrimogéneo. Pelo menos oito palestinianos foram mortos pelas forças israelitas e 260 foram presos, incluindo vários menores.

“O mais interessante que eu tenho visto na imprensa, jornalistas a falarem de protestos e violência,” – Ziyaad Yousef

Este é Ziyaad Yousef, membro do Comité de Solidariedade com a Palestina, que entrevistámos por Skype, em Lisboa, poucos dias depois do anúncio de Trump, em dezembro do ano passado.

“Não podemos esquecer que mesmo antes do Trump fazer este anúncio, ou no dia-a-dia, a violência é diária, e é o que os media não mostram. Falam que o anúncio do Trump leva à violência na Cisjordânia, protestos, etc. Os protestos são diários, e os protestos têm existido já há décadas e a violência é diária, mas é uma violência de Israel, uma violência da ocupação, uma violência militar, de uma as grandes potências militares do mundo, que não geram notícias. Só quando os palestinianos vão para a rua, e se juntam e resistem, isso é que gera notícia.” – Ziyaad Yousef

Era apenas mais um dia.

“Há décadas que os Estados Unidos se imaginam como um mediador imparcial que viria trazer paz ao Médio Oriente, mediando negociações entre Israel e a Autoridade Palestiniana.” – Ben Ehrenreich

Este é Ben Ehrenreich, jornalista americano e autor do livro “The Way to the Spring. Life and Death in Palestine”, a falar sobre o papel de mediação dos Estados Unidos entre o Estado de Israel e a PA. PA, Palestinian Authority, em inglês, quer dizer Autoridade Palestiniana, o nome da entidade que oficialmente governa a Cisjordânia. Entrevistámo-lo em Junho deste ano, por telemóvel.

“Os Estados Unidos sempre favoreceram Israel nas suas negociações, e não têm sido um mediador justo. Sempre tentaram pressionar a Autoridade Palestiniana a aceitar menos, pressionaram a representação palestiniana a aceitar menos e a aceitar colonatos, o que seria completamente insatisfatório para a maioria dos palestinianos.” – Ben Ehrenreich

Mas o reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel e o anúncio da promessa de uma embaixada na cidade sagrada por parte de líderes americanos não é nada que não tivesse sido dito antes.

“Quero ser claro: a segurança de Israel é sagrada. Não é negociável. Os palestinianos precisam de um Estado. Os palestinianos precisam de um Estado que seja contíguo e coeso, que os permita prosperar. Mas qualquer acordo com o povo palestiniano tem de preservar a identidade de Israel como um Estado judaico, com fronteiras seguras, reconhecidas e defensáveis.” – Barack Obama

O discurso é de 2008, e Barack Obama era, na altura, candidato à presidência dos Estados Unidos. Na plateia, estavam centenas de lobistas pró-Israel numa conferência anual organizada pela AIPAC (American Israel Public Affairs Committee), um dos mais poderosos grupo de lobby israelita nos Estados Unidos.

Também George W. Bush tinha estado na conferência da AIPAC, oito anos antes, na altura em que se candidatava à presidência dos Estados Unidos.

“A partir do momento em que tome posse, vou iniciar o processo de mudança do embaixador do Estados Unidos para a cidade que Israel escolheu como sua capital.” – George W. Bush

E Bill Clinton, em 1993:

“Jerusalém é ainda a capital de Israel, e deve permanecer uma cidade indivisível e acessível a toda a gente.” – Bill Clinton

Zyiaad Yousef tem uma tese sobre este alinhamento de posições ao longo do tempo e entre políticos tão distintos:

“Os presidentes americanos, para serem eleitos, primeiro têm de ir à conferência do AIPAC, declarar o amor a Israel e, depois, são, como é dito, aprovados para serem eleitos como presidente dos Estados Unidos.” – Zyiaad Yousef

A verdade é que desde 1995, altura em que Bill Clinton era presidente, o processo de passagem da embaixada americana de Tel Aviv para Jerusalém é lei nos Estados Unidos (é o chamado “Jerusalem Embassy Act”). Nesse decreto, lê-se: “Jerusalém deve ser reconhecida como a capital do estado de Israel; e a embaixada dos Estados Unidos em Israel deve ser estabelecida em Jerusalém, o mais tardar, até 31 de Maio de 1999.”

Mas a implementação da lei tem sido consequentemente adiada, com base num artigoque permite adiar a mudança por seis meses, se estiverem em causa os interesses de segurança nacional dos Estados Unidos. E foi isso que acabaram por fazer todos os presidentes desde 1998: suspender a mudança da embaixada a cada 6 meses, como explica Ben Ehrenreich.

“Enquanto eles são candidatos a presidente, fazem estas promessas à direita evangélica nos Estados Unidos e depois não as cumprem. Tem sido lei americana desde há algum tempo que a embaixada mude para Jerusalém, e presidentes passados têm-na adiado de cada vez que se tem de decidir, porque ninguém quer realmente fazê-lo, porque é estúpido. E porque revela a máscara. A máscara que a América tem muito cuidadosamente usado, e usou durante Obama, Bush e Clinton, de que os EUA são este mediador e que tudo vai acabar numa linda solução de dois Estados e tudo vai correr bem, e podemos chutar a bola para a frente. Essa máscara caiu agora.” – Ben Ehrenreich

O papel dos Estados Unidos como aliado de Israel sempre foi claro, e muito anterior a Trump. Por exemplo, Obama – que ganhou o prémio Nobel da paz em 2009 – assinou, em 2016, um memorando de entendimento de ajuda monetária a Israel, num valor de 38 mil milhões de dólares, a dez anos, o maior pacote de ajuda militar a ser dado pelos Estados Unidos a qualquer país. Tudo transparente.

“Para ti, era transparente, para mim era transparente. Enquanto estas coisas aconteciam, nós mencionávamos isso. Mas para a direção do New York Times, para os comentadores de política de Washington, não era transparente. Eles tinham as suas mentiras e continuavam com elas. E acho que, ainda assim, uma grande parte do poder instituído acreditava mesmo nelas. E agora isso já não acontece.” – Ben Ehrenreich

A inauguração da embaixada foi marcada para 14 de Maio – dia em que Israel celebrava 70 anos da sua fundação como Estado. Mas no dia seguinte, 15 de maio, cumpriam-se também 70 anos de Nakba, ou catástrofe, quando em 1948, mais de 800 mil palestinianos foram forçados por Israel a abandonar as suas casas e vilas.

12 de Maio de 2018. Dois dias antes da inauguração, Israel, ganhava o Festival Eurovisão da Canção, em Portugal, com a música “Toy”. Netta Barzilai, a representante israelita, dizia no seu discurso de agradecimento:

“Obrigado! Eu amo o meu país! Na próxima vez em Jerusalém!” – Netta Barzilai

Desde 30 de Março, todas as semanas, milhares de palestinianas e palestinianos marchavam para a cerca criada por Israel que separa Gaza do território que assume como seu, um protesto anual chamado “Marcha do grande retorno”. Exigem o fim do bloqueio a Gaza, que dura há mais de 10 anos e o regresso às suas casa, de onde foram forçados a sair em 1948.

14 de Maio de 2018. O massacre em Gaza continuava. Só nesse dia, 60 pessoas foram mortas pelo exército israelita. Mais de 2700 ficaram feridas. A menos de 80 quilómetros, em Jerusalém, o clima era de festa.

“Mas mudar embaixada dos EUA, em maior escala, é também um passo em direção a avançar pela paz na cidade, em toda a região e pelo mundo. As ruas de Jerusalém, com os seus templos, mesquitas e igrejas, apontam para o seu lugar no mundo. Mas em Jerusalém, podemos também vislumbrar o futuro cheio de esperança. A esperança por uma grande compreensão e paz. Hoje, estou confiante que a embaixada dos EUA em Jerusalém será, nas palavras do presidente Trump, um tributo magnífico à paz.” – John Sullivan

Um magnífico tributo à paz. Dezenas de pessoas ouviam o discurso do John Sullivan, vice-ministro dos Negócios Estrangeiros norte-americano, numa embaixada ainda a meio gás, com a maior parte dos seus funcionários nos escritórios de Tel Aviv. Do lado de fora, centenas de israelitas protestavam contra a mudança. Mas nada interrompeu as festividades. E foi com um sorriso rasgado que Ivanka Trump, filha de Donald Trump e sua conselheira oficial, inaugurou a embaixada.

“Em nome do 45º presidente dos Estados Unidos da América, convidamo-vos, oficialmente, e pela primeira vez, até à embaixada dos Estados Unidos, aqui, em Jerusalém, a capital de Israel. Obrigado.” – Ivanka Trump

Referindo-se aos protestantes palestinianos mortos às dezenas nesse dia no massacre de Gaza, Jared Kushner – marido de Ivanka, genro de Trump e também conselheiro oficial do sogro – disse ainda, numa declaração que não fazia parte do discurso oficial entregue à comunicação social, ainda antes de ser lido, que “os que estão a provocar a violência são parte do problema, e não da solução”.

“A 6 de Dezembro, o presidente Trump foi muito claro na sua decisão, e a celebração de hoje não reflete o afastamento do empenho por uma paz duradoura. Uma paz que ultrapasse os conflitos do passado com o objetivo de dar às nossas crianças um brilhante e infinito futuro. Como vimos pelos recentes protestos o mês passado e ainda hoje, os que provocam a violência são parte do problema e não parte da solução.” – Jared Kushner

PARTE II

Jerusalém foi a nossa última paragem, onde planeámos passar dois dias. Ainda antes da viagem, tinham-nos dito que não podíamos regressar a Portugal sem passar pela Educational Bookshop primeiro, uma livraria gerida por uma família palestiniana, conhecida por ter uma gigantesca coleção de livros sobre a história da Palestina e sobre a ocupação. Perdemos a cabeça e a carteira no meio de tantos livros. Mas a Educational Bookshop é também conhecida por outros motivos.

É um local que muitos jornalistas e ativistas usam para trabalhar. Juntam-se no andar de cima da livraria, que estava quase cheio, aproveitam o wifi, e guardam os seus ficheiros na internet. Os donos ajudam ainda no lado mais físico de manter a informação em segurança: servem de intermediários e enviam livros, cadernos de notas, documentos por correio, para que estes não sejam confiscados no aeroporto pelas forças israelitas.

Mahmoud Muna, um dos donos da livraria, vem falar connosco. Primeiro sobre as suas recomendações de livros, depois sobre a cidade de Jerusalém.

“Bem, deves tratar Jerusalém como se fossem três Jerusalems diferentes. Existe Jerusalém Ocidental, a Jerusalém israelita, que é como qualquer outra cidade em Israel, e aí tens a perspetiva dos israelitas. Depois tens a outra Jerusalém, que é basicamente esta rua e á volta dela, que é uma Jerusalém misturada, de classe um pouco mais alta. Depois tens a Old City, que é a Jerusalém realmente antiga. Tenta fazer entrevistas e conhecer pessoas das três cidades. Jerusalém não é uma, são três. Esse seria o meu conselho.” – Mahmoud Muna

Tentar entender Jerusalém obriga a conhecer a história da cidade. E para isso, temos de voltar atrás no tempo.

Jerusalém é uma cidade sagrada para as três grandes religiões monoteístas (aquelas que acreditam num único deus): judaísmo, cristianismo e islão. Ao longo do tempo, a cidade foi passando de mão em mão e à medida que era ocupada por um povo diferente iam-se ali construindo novas raízes, novas tradições, novos simbolismos.

Segundo a tradição judaica, tudo começou há 3 mil anos, quando David, rei de Judá, conquistou Jerusalém, fazendo dela capital do reino. Anos mais tarde, é o seu filho, Salomão, que constrói um dos monumentos mais importantes da história hebraica, o Templo de Salomão, também conhecido como “Primeiro Templo”, que acabou por ser destruído no ano de 587 antes de cristo. Ainda assim, apesar da demolição, a cidade viu erguer-se, anos mais tarde, um outro templo, a que se chamou “Segundo Templo”. Ambos os monumentos serviram de local de peregrinação e devoção de judeus durante as suas festas mais sagradas.

Depois de os romanos destruírem o “Segundo Templo”, já séculos depois de ter sido erguido, o local mais sagrado para os judeus passou então a ser o sítio concreto onde este se localizava: o Monte do Templo (para os judeus) ou Nobre Santuário (como lhe chamam os muçulmanos), uma enorme praça com locais de culto para o judaísmo, islão e cristianismo. Um dos muros que delimitam essa praça, o que chegou aos nossos dias do “Segundo Templo”, chama-se Muro das Lamentações. É o segundo local de culto mais sagrado para os judeus, onde milhares rezam todos os dias.

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Mas Jerusalém é também sagrada para os cristãos. Segundo a sua tradição, foi em Jerusalém que Jesus percorreu a Via Dolorosa, de cruz às costas, até ser crucificado no local onde hoje está construída a Igreja do Santo Sepulcro (segundo a crença das igrejas católicas romana e ortodoxa) ou na Túmulo do Jardim (para as igrejas protestantes). Foi também em Jerusalém que aconteceu a ressurreição e ascensão de Jesus aos céus e era no Monte do Templo que, segundo a bíblia, Jesus pregava já no final da sua vida.

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Foi no ano 637 que os muçulmanos conquistaram a cidade, que desde essa data passou a assumir uma importância central para o Islão. Tirando o período das cruzadas – entre os séculos XI e XIII – foram as comunidades muçulmanas que governaram Al Quds, ou “a sagrada”, como lhe chamam. Isso terminou em 1918, quando o Reino Unido, através do Mandato Britânico, ocupou a Palestina.

Jerusalém norteou, durante algum tempo, a Quibla, a direção da reza – para onde muçulmanos se devem virar enquanto estão em oração (hoje, viram-se para Meca). Segundo a tradição islâmica, foi também em Jerusalém que aconteceu a Isra e Miraj, uma viagem mística que Maomé terá feito, durante a noite, quando subiu aos céus para falar com deus.

Por tudo isto, Jerusalém tem uma importância religiosa central nas crenças das três maiores religiões monoteístas. Mas o mais impressionante, é que todas estes acontecimentos religiosos aconteceram numa área com um quilómetro quadrado. Durante milhares de anos e até há pouco mais de um século, Jerusalém era apenas aquilo a que hoje chamamos de “Old City”, ou Cidade Antiga. Fechada entre muros, até ao final do século XIX, as suas portas (que hoje são oito), apenas abriam durante o dia. Tudo o que estava para lá dos muros não era Jerusalém.

A Jerusalém dos dias de hoje, que inclui tudo o que foi construído fora das muralhas da Old City, começou a delimitar-se a partir de 1918, quando o Mandato Britânico tomou conta da Palestina.

Segundo dados da Terrestrial Jerusalem, uma organização sem fins lucrativos que tem por objetivo mapear geografica e politicamente a cidade sagrada, em 1922 viviam em Jerusalém 62 mil pessoas (15 mil cristãs, 13 mil muçulmanas e 34 mil judias). Anos mais tarde, em 1946, depois do final da II Segunda Guerra Mundial, a população tinha crescido para 163 mil pessoas (31 mil cristãs, 33 mil muçulmanas 99 mil judias).

Um ano depois, em 1947, como explicámos no primeiro episódio desta série, a ONU aprovou a resolução 181, que dividia o território em dois – uma parte para os palestinianos, e outra para os israelitas. Na Parte III da resolução, lê-se: “A cidade de Jerusalem deverá ser estabelecida como “corpus separatum”, sob regime especial internacional, e deverá ser administrada pelas nações unidas”. Assim, Jerusalém ficaria com um regime especial, sendo um local gerido pelas Nações Unidas. Nem de israelitas, nem de palestinianos.

Pelo menos, em teoria. Mas a ocupação que se seguiu, em 1948, e que levou à expulsão de mais de 800,000 palestinianos das suas casas e vilas, fez com que o corpus separatum nunca tivesse sido implementado. Em 1949, Israel e a Jordânia – que estavam em guerra – acordaram um armistício, e dividiram partes da cidade entre si.

O nosso hotel ficava em East Jerusalem, ou Jerusalém Oriental, onde vivem a maior parte dos palestinianos. Para sabermos mais sobre cidade, fomos até à outra ponta – West Jerusalem, ou Jerusalém Ocidental, onde vivem a maior parte dos israelitas.

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“Olá. Estamos à procura do Daniel Seidemann.” – Ricardo Ribeiro

Daniel Seidemann é um advogado especialista na história de Jerusalém. É israelita, mas nasceu nos Estados Unidos. No final da década de 90, integrou uma equipa de assessores envolvida nos acordos de Oslo, que hoje vamos explicar, e foi conselheiro de Ehud Barak, antigo primeiro-ministro de Israel. Hoje, é diretor da Terrestrial Jerusalem, que fundou em 2010.

Ricardo – Olá Daniel, como está? Sou o Ricardo. Maria – Sou a Maria. Daniel – Bem. Ocupado, ocupado, ocupado.*

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É ele quem nos explica a história de Jerusalém depois da Nakba, em 1948.

“Entre 1949 e 1967, Jerusalém foi uma cidade dividida fisicamente e politicamente. Jerusalém Ocidental estava sob controlo israelita. Jerusalém Oriental estava ocupada pela Jordânia. Jerusalém Ocidental era quase exclusivamente uma cidade israelita, havia muito poucos palestinianos e ainda menos judeus a viver na parte jordânia. Não mais de meia dúzia.” – Daniel Seidemann

Com a anexação de East Jerusalem, a Jordânia ficou com um território de 6,4 quilómetros quadrados. Israel, ficava com os 38 quilómetros quadrados de West Jerusalem. Na altura, apenas o Paquistão e o Reino Unido reconheceram oficialmente a anexação de East Jerusalem, por parte da Jordânia. Nenhum país do mundo reconheceu a anexação de Israel. Mas em 1967, com a Guerra dos Seis Dias, tudo mudou.

Daniel – Em 1967, Israel anexou não só a Jerusalém jordana mas também algumas 27 vilas à volta de Jerusalém. Chamámos-lhe Oriental e Ocidental. E chamámos-lhe Jerusalém unida. Ricardo – Diz “nós”, porque também é Israelita? Daniel – Sou um israelita. Sou um ocupante.

Israel chamou-lhe “United Jerusalém”, Jerusalém unida em português.

“Foi anexada. Portanto, na prespetiva israelita, os bairros palestinianos de Jerusalém Oriental são o equivalente à baixa de Tel Aviv. Nenhum outro país no mundo reconhece isso. Desde 1967, criámos grandes colonatos onde aproximadamente 212 mil israelitas vivem. E isso é o onde existe uma fronteira de facto. Uma fronteira de facto entre as áreas construídas para palestinianos e as áreas construídas para israelitas. Por isso, ainda que, no papel, Jerusalém seja unida, israelitas não se aventuram em Jerusalém Oriental ou nas áreas palestinianas de Jerusalém Oriental e os palestinianos raramente vêm para Jerusalém Ocidental. E quando vêm é usualmente para ir para o trabalho.” – Daniel Seidemann

Desde 1967 até hoje, que várias resoluções do Conselho de Segurança e da Assembleia Geral da ONU condenam a ocupação de East Jerusalem.

“Além disso, existe uma divisão legal política. Israel anexou o território de Jerusalém Oriental em 1967 mas não anexámos a população. Então, os palestinianos de Jerusalém Oriental não são cidadãos de Israel, não têm direito ao voto em eleições nacionais, não têm passaporte israelita. Têm direito ao voto em eleições municipais, mas não o fazem porque, se o fizessem, estariam a reconhecer a legitimidade da lei israelita. Por isso, por exemplo, se quiserem saber qual é a fronteira de Jerusalém em dia de eleições, é dia de eleições para os 62% da população que é israelita. Não é dia de eleições para a população que é palestiniana. Então, Jerusalém está dividida legalmente, politicamente e fisicamente, mesmo que não existam barreiras físicas dentro da cidade, com algumas exceções. Há muros cognitivos. As pessoas obedecem-lhes como se fossem barreiras físicas.” – Daniel Seidemann

Desde 1967 que Israel ocupa Jerusalém Oriental, a Cisjordânia, a Faixa de Gaza e os Montes Golã.

PARTE III

Uri – Ricardo? Ricardo – Sim. Tudo bem? Prazer em conhecer-te. Uri – Uri. Maria – Eu sou a Maria. Uri – Olá Maria.

Encontrámo-nos com Uri Zaki num restaurante em West Jerusalem. Uri foi diretor da delegação norte-americana da B’tselem, uma organização israelita de direitos humanos e trabalhou como consultor na Human Rights Watch. Hoje, pertence à Organização Sionista Mundial, criada por Theodor Herzl, fundador do movimento sionista. É também dirigente do Meretz, um partido que tem cinco dos 120 assentos do Knesset, o parlamento israelita.

“O Meretz é o partido progressista de Israel, que basicamente acredita em valores liberais, é muito a favor da paz, contra a ocupação, a favor dos direitos LGBT e, claro, a favor dos direitos sociais, etc” – Uri Zaki

Para Uri é possível, ao mesmo tempo, ser sionista e contra a ocupação da Palestina.

“Eu acho que sou o verdadeiro sionista. Acho que Herzl, que fundou o movimento sionista, era extremamente liberal e, desde a criação, o movimento sionista foi sempre um movimento liberal. Dando um exemplo, a Nova Zelândia foi o primeiro país a dar o direito ao voto às mulheres. O segundo movimento nacional que fez isso foi o congresso sionista, muito antes de qualquer nação europeia, ou os Estados Unidos, etc. Herz, no seu romance Atneuland, que quer dizer “uma velha nova cidade”, um romance sobre o futuro Estado judaico, descreveu como isto seria um Estado puramente democrático, onde todas as pessoas seriam iguais perante a lei, onde rabinos não iam tomar parte em política, nem os militares, etc. Todo o movimento sionista foi moldado segundo uma pátria para o povo judeu, num Estado totalmente democrático procurando a paz. Claro que, quando o movimento sionista criou o seu projeto aqui, existiam palestinianos aqui que não gostaram do facto de existir um movimento nacional a crescer, e parte dos seus princípios eram trazer judeus de todo o mundo naquilo que eles pensavam ser, e talvez tivessem razão, às suas custas. E eles lutaram. Eu acho que fizeram muitos erros – os sionistas e os palestinianos – e começou um conflito violento.” – Uri Zaki

O sionismo, para si, tem como base dois grandes pilares. A contínua ocupação do povo palestiniano significa abdicar de um deles.

“Um pilar é a pátria judaica, e o outro é a democracia. Se quisermos controlar uma maioria palestiniana – e agora temos quase uma maioria palestiniana sob controlo israelita, de maneiras diferentes, ou na Cisjordânia, que é um controlo militar por parte de Israel; em Israel per se, onde existem cidadãos palestinianos no Estado de Israel; e em Gaza, onde Israel tem quase controlo total de todos os aspetos da vida (se bem que não controlo direto). Isso significa que para termos uma democracia e termos maioria que não é o nosso grupo nacional, quer dizer que temos de parar de ser um estado judaico ou, tomar a direção que este governo está a seguir, que é fazer disto um Estado não democrático, o que é igualmente perigoso de um ponto de vista sionista. Do sionismo original, o que fez deste país o que ele é.” – Uri Zaki

Nem sempre Uri Zaki teve esta ideia sobre a ocupação.

Uri – Quando eu me juntei ao exército – por obrigação, é obrigatório – era o líder da direita do meu liceu. Era membro do partido Likud. Até votei no Netanyahu, nas u suas primeiras primárias, que ganhou. Depois, quando cheguei à área de Hebron, apercebi-me que esses pilares não podem existir juntos. Ricardo – Podes falar sobre isso? Uri – A minha primeira posição foi oficial. Estava a servir no exército, num centro de detenção para menores palestinianos. Não eram assassinos, mas sim pessoas que enviavam pedras ou cocktail molotovs, etc, muitos deles do Hamas. Na tradição judaica, a maior parte das nossas festas e dias sagrados, têm o mesmo padrão: os judeus foram ocupados por uma nação estrangeira mais forte, com a ajuda de deus, lutámos de volta, e conseguimos a liberdade. É assim na Hanucá, com os macabeus contra os gregos ou a Síria helenista, ou na Pessach, com os egípcios, e outros. E eu achei que essa era a nossa história. Mas em Hebron, nós somos os gregos, nós somos os romanos. Não somos os judeus dos tempos passados. E não devia ser um local onde judeus estejam. Embora tenhamos sofrido e porque sofremos, não devíamos estar lá. É perturbador. E foi aí que eu comecei a questionar a minha ideologia.

Mas a julgar pelas últimas três eleições, que permitiram ao Likud, partido de Benjamin Netanyahu, formar governo em coligação – esta última, em 2015, com outros quatro partidos ou alianças, a que se juntou uma quinta formação política, em 2016 – a população israelita continua a apoiar a ideologia deste governo. Ainda assim, o Likud tem apenas 30 dos 120 lugares no Knesset, mas foi o partido mais votado nas eleições. Uri Zaki explica as razões do ceticismo com que israelitas olham para palestinianos.

Uri – Eu acho que o povo israelita não é tanto à direita como a sua liderança, mas são muito céticos em relação ao outro lado, que são os palestinianos. Maria – Porque é que achas que isso acontece? Uri – Acho que é resultado de, em primeiro lugar, vários factos objetivos, mas também a maneira como as pessoas vêem a narrativa. A história que é contada aos israelitas, que é baseada na realidade (é mais complexa, mas baseada na realidade), é a seguinte: de cada vez que Israel foi de encontro aos palestinianos tentando promover um compromisso, os palestinianos reagiram com violência. Vê o exemplo de Oslo. Tivemos o início dos bombardeamentos suicidas durante o tempo de Rabin. Tivemos depois a Segunda Intifada, muito cruel. Ricardo – Há 15 anos.Uri – Há 15 anos. Tivemos depois a retirada do Sul do Líbano e a Segunda Guerra do Líbano. Depois, a retirada de Gaza, e o Hamas a tomar conta da região e rockets a caírem não só em locais perto da Faixa de Gaza, mas também em Tel Aviv e Jerusalém. Portanto, a maneira como os israelitasvêm isto é “nós fomos pelo compromisso, os nossos líderes promoveram um compromisso, e os palestinianos reagiram com violência”. Por isso são muito céticos e com medo.

Por outro lado, a violência por parte do exército israelita não parece ser tanto uma reação, mas antes uma estratégia. Segundo dados, da Amnistia Internacional, entre 1987 e 2017, nos últimos 30 anos, morreram mais de 1.400 Israelitas às mãos dos palestinianos. No mesmo período, mais de 10.200 palestinianos foram mortos por forças israelitas – sete vezes mais.

Ilan Pappé, historiador israelita e autor do livro “The Ethnic Cleansing of Palestine”, que entrevistámos em Lisboa, este Maio, explica que a visão israelita das exigências palestinianas está distorcida.

“Os média não lhes dizem o que se passa lá. Eles vêem Gaza como um problema mas não como um problema de ocupação. Eles acham que saímos de Gaza e que há por lá um grupo de terroristas islâmicos. Mas que não é só um problema nosso, mas sim do mundo. Portanto, sim, para todos os efeitos, o eleitorado judaico acha que qualquer exigência dos palestinianos é terrorismo, subscrevem totalmente as ações do estado israelita na Faixa de Gaza, sem qualquer problema moral em prender crianças na Cisjordânia ou destruir a cidade de Gaza pelo ar.” – Ilan Pappé

Para os judeus israelitas, a ocupação não é sequer um assunto quando vão às urnas votar. Os assuntos eleitorais são outros – emprego, habitação, impostos. A ocupação, é um não-assunto. Está há muito resolvido.

Ilan – É razoável dizer que a maior parte do eleitorado judeu em Israel vê o chamado “conflito” com a Palestina como resolvido. Eles não acham que ainda exista um conflito. Eles acham que Israel já obteve os seus objetivo na Cisjordânia, a Cisjordânia está quieta. Eles não fazem ideia do que se passa na Cisjordânia. Há um muro que os separa de qualquer coisa que aconteça por lá.Ricardo – Um muro construído em 2002. Ilan– 2003. Sim, começou em 2001, acabou em 2003.

PARTE IV

“Primeiro Ministro Rabin, chairman Arafat, ministro dos Negócios Estrangeiros Peres, senhor Abbas, presidente Carter, presidente Bush, distintos convidados. Em nome dos Estados Unidos e da Rússia, co-promotores do do processo de paz do Médio Oriente, acolhemos este grande momento de história e esperança. Hoje, somos testemunhas de um extraordinário acto num dos mais definidores dramas da História.” – Bill Clinton

13 de Setembro de 1993. Bill Clinton, presidente dos Estados Unidos na altura, tinha a seu lado Yasser Arafat, líder da OLP – Organização para a Libertação da Palestina, em inglês designada PLO – Palestinian Liberation Organization, Mahmoud Abbas, também da OLP, Yitzhak Rabin, primeiro-ministro de Israel, Shimon Peres, ministro dos Negócios Estrangeiros, e outros líderes políticos palestinianos, israelitas, americanos e russos.

O dia era histórico. Assinava-se a “Declaração de Princípios sobre os acordos de Auto-governação Interina”, o primeiro documento dos Acordos de Oslo, que até esse dia tinham sido negociados em segredo na capital Norueguesa. Uns dias antes, a 9 de Setembro, três cartas oficiais tinham sido trocadas entre Arafat, Rabin e o ministro dos Negócios Estrangeiros norueguês, Johan Jorgen Holst.

Na carta que o primeiro-ministro israelita enviou ao líder da Organização para a Libertação da Palestina, OLP, lê-se: “o governo de Israel decidiu reconhecer a OLP como representante do povo palestiniano e iniciar negociações com a OLP em relação ao processo de paz do Médio Oriente”. Já a carta de Arafat, ia bem mais longe. No texto escrito pelo líder palestiniano lia-se: “a OLP reconhece ao Estado de Israel o direito de existir em paz e segurança”.

Ou seja, enquanto que os palestinianos reconheciam pela primeira vez o Estado de Israel, Israel apenas reconhecia a OLP como representante do povo palestiniano – mas não a existência de um Estado. E Arafat não ficava apenas por aí. Mais à frente na carta lia-se também: “a OLP renuncia ao uso de terrorismo e de outros atos de violência e assumirá a responsabilidade sobre todos os elementos e funcionários da OLP, de modo a assegurar o seu cumprimento, prevenindo infrações e punindo os infratores”.

Shahd Wadi, palestiniana e portuguesa, doutorada em estudos feministas pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e assessora de imprensa na Missão Diplomática da Palestina, em Portugal, falou-nos sobre as consequências destas palavras, no ano passado, em Lisboa:

“Com os acordos de Oslo estamos a abdicar da legitimidade da resistência palestiniana. E a resistência palestiniana é uma coisa muito importante. A Intifada, que é considerada algo violento pelo mundo, que é uma coisa simbólica, com pedra, é um sinal de resistência palestiniana, que as pessoas têm muita dificuldade em perceber que é algo humano. A resistência é humana. Se alguém não resistir à ocupação, se alguém não resistir ao que causou a catástrofe, o que causou todo o desastre palestiniano, isto já não é uma pessoa humana. Isto já é fora da humanidade. É fora da humanidade não resistir.” – Shahd Wadi

Os Acordos de Oslo viriam mais tarde a ser compostos por vários outros documentos, assinados não só em 1993, mas também em 1994 e 95. No conjunto, este era um acordo provisório para 5 anos, com o objetivo de lançar as bases de um acordo de paz permanente. Além do reconhecimento mútuo da OLP e do Estado de Israel, definiu-se a criação da Palestinian Authority (ou Autoridade Palestiniana) como governo interino dos palestinianos, sujeito a eleições; a retirada de Israel da Faixa de Gaza, e da região de Jericó, na Cisjordânia; e a divisão de Hebron, como explicámos no terceiro episódio desta série.

Contudo, nunca ficou escrito que Israel se ia retirar de toda a Cisjordânia. Oslo dividiu a Cisjordânia em três áreas distintas:

Na prática, a Palestinian Authority assinava um acordo para a ocupação do seu povo e do seu território. Edward Said, palestiniano, autor do livro “Orientalismo”, escrevia em Outubro de 1993, um mês depois da assinatura do acordo, a crónica “The Morning After”, onde se lê: “Em primeiro lugar, chamemos o acordo pelo seu nome verdadeiro: um instrumento para a rendição palestiniana, um Versailles Palestiniano”, referindo-se ao tratado de Versailles, assinado no final da Primeira Guerra Mundial, que fez com que a Alemanha assumisse culpa por todos os danos causados – seus e dos países da Tríplice Entente – durante a Grande Guerra, sendo considerado um acordo humilhante para os germânicos.

Um ano depois, Yasser Arafat, Shimon Peres e Yitzhak Rabin recebiam o prémio Nobel da paz, enquanto, cá fora, milhares de palestinianos, israelitas e judeus protestavam. Shahd Wadi:

É importante dizer que se calhar a maioria dos palestinianos nunca concordou com os acordos de Oslo. Sentiram que é uma renúncia, que estão a abdicar de tudo o que é direitos deles para ter um Estado simbólico.Shahd Wadi

As determinações dos acordos interinos que supostamente teriam uma validade de cinco anos, continuam, para todos os efeitos, em vigor. Mas nunca se cumpriu o seu principal objetivo, a assinatura de um Acordo de Paz permanente. Os temas que ficaram por resolveram, estão, hoje, ainda mais longe disso. No acordo assinado em 1993, lia-se: “Entende-se que estas negociações devem endereçar questões pendentes, incluindo: Jerusalém, refugiados, colonatos, planos de segurança, fronteiras, relações e cooperação com outros vizinhos, e outros assuntos de interesse comum.”

Para Daniel Seidemann, diretor na Terrestrial Jerusalem, que ouvimos há pouco, e que esteve envolvido nos Acordos, as falhas eram inevitáveis.

Daniel – Eram acordos com falhas. Mas eram acordos com falhas porque não era possível chegar a um acordo sem falhas. Era inevitável. Se esses acordos tivessem sido implementados de boa fé, acho que havia uma chance razoável de poder ser gerado um acordo permanente. Isso chegou ao fim com a morte de Yitzhak Rabin e o assassinato político correu lindamente. Atingiu o seu objetivo. Ricardo – Que era…?Daniel – Ter a certeza que ia haver acordo.

Yitzhak Rabin foi assassinado em 1995, em Tel Aviv, por um opositor ao processo de paz. Uri Zaki, membro do Meretz que ouvimos há pouco, diz que foi com Rabin que se esteve mais perto de um acordo permanente entre Israel e Palestina.

“Eu acho que o seu assassinato foi um grande golpe para Israel e para a região. Às vezes as pessoas questionam-se se eliminar uma pessoas pode mudar o rumo da história. Eu acho que este é um dos raros exemplos em que isso aconteceu.” – Uri Zaki

Ilan Pappé não vê a história deste modo.

“Não, eu acho que é como procurar uma chave onde existe luz e não onde foi perdida. Não acho que o problema seja territorial, não é sobre onde é a fronteira entre Israel e Palestina. Não acho que o problema seja dividir soberanias ou funções de governo. Acho que isso não é o centro da questão. Por isso, acho que os acordos de Oslo não ofereceram nada a não ser o reconhecimento da Organização para a Libertação da Palestina por Israel, e isso, sim, foi importante. Foi, como disse, procurar uma chave onde existe luz, mas não onde foi perdida.” – Ilan Pappé

PARTE V

Tamar – Olá. Ricardo – Olá. Tamar – Peço desculpa pelo atraso. Ricardo – Não faz mal. Tudo bem? Tamar – Sim.

tamar

Ainda em West Jerusalem, encontrámo-nos com Tamar Darmon. Tamar nasceu num colonato ilegal entre Jerusalém e Jericó, a 20 minutos de East Jerusalem. Foi aí que cresceu, como colona. Hoje, vive em Jerusalém com a sua companheira. Encontrámo-nos com ela num café de um bairro de classe-média alta da cidade. Sorridente, trazia ao colo um dos seus filhos, ainda bebé.

Ainda antes dos Acordos de Oslo, milhares de israelitas mudavam-se para colonatos ilegais na Cisjordânia, com o objetivo de influenciar a futura fronteira do que parecia poder vir a ser uma solução de dois Estados: Israel e Palestina.

A família de Tamar foi uma das que se mudou para um colonato nos anos anteriores aos Acordos de Oslo. Mas nem ela nem os seus pais tinham em mente uma ocupação permanente.

Tamar – Muitas pessoas foram para os colonatos numa decisão estratégica de “vamos tentar influenciar as fronteiras que vão ser estabelecidas através de negociações”. Não acho que ninguém tenha acreditado que fosse durar tanto tempo. Não foi a intenção, pelo menos. Pelo menos para alguns, não foi a intenção. Aparentemente, os que tinham uma intenção diferente tornaram-se líderes e mudaram a história. Maria – E porque é que os teus pais decidiram mudar-se para lá? Tamar – Porquê? É na estrada em direção a Jericó, onde não existem vilas árabes na zona. Foi uma decisão estratégica para defender as estradas que levam ao Mar Morto. Ambos cresceram a acreditar no nosso direito, no nosso direito histórico – por quando eles cresceram não existia Cisjordânia.

A família de Tamar mudou-se para um colonato construído, em 1979, entre Jerusalém e Jericó – um dos primeiros colonatos de judeus seculares no West Bank. O seu pai nasceu na Argélia, cresceu em Paris, França, e depois mudou-se para Israel, já depois de 1948. A sua mãe, nasceu em Jerusalém, no prédio onde Tamar hoje vive.

Ricardo – Como era viver num colonato? Tamar – Normal. Vocês vêm de uma grande cidade, certo? Era como viver numa pequena aldeia. Imagina uma aldeia bonita, calma. Eu tinha 15 miúdos na minha turma. Conhecia toda a gente desde que tinha dois anos. É muito seguro, muito feliz. Uma vida muito segura*

A vida que a Tamar descreve, num colonato, mas ainda assim no West Bank, é completamente diferente da que ouvimos palestinianas e palestinianos descrever-nos. Há calma e normalidade. Mas a razão porque os seus pais escolheram viver num colonato foi ideológica, não há dúvidas.

Tamar – A ideologia estava lá. Não era separado da ideologia. Nós sabíamos porque estávamos lá. Nós crescemos a acreditar porque estávamos lá. Mas não vives num colonato. Vives na tua aldeia. Ricardo – E sabias que era um colonato enquanto estavas a crescer? Tamar – Claro. Eu era parte disso. Ainda sou parte disso. Hoje não viveria num colonato, mas… Ricardo – Porquê? Tamar – Muitas coisas aconteceramque mudariam a situação. Hoje não se pode dizer porque não é politicamente correto, mas a nação palestiniana começou mais tarde do que a maior parte das nações que conhecemos. Quando os judeus se definiram como nação, os palestinianos ainda eram parte do mundo árabe. Eram tribos que viviam aqui, mas não tinham um sentido de povo. Talvez tenha começado como uma reação ao movimento de nacionalista em todo o mundo, ou contra a influência dos britânicos e franceses nesta área, ou como uma reação aos judeus que começaram a imigrar para Israel e a ficar com uma comunidade maior e mais forte e depois, mais tarde, um Estado. Mas demoraram mais uma décadas até se definirem. A OLP foi estabelecida em 1964. Isso foi só o início. A primeira vez que alguém disse “hey, existe um povo.

A discussão sobre se existia ou não um povo palestiniano na altura da Nakba tem tantos anos quanto a ocupação. É comum a tese de que a nacionalidade palestiniana foi criada apenas mais tarde, já depois do Estado judaico.

Baruch Kimmerling, investigador e historiador israelita, e Joel S. Migdal, investigador americano, descrevem no livro “The Palestinian People: A History” que, apesar da Palestina estar permanentemente ocupada (ainda que por diferentes poderes) desde o século XVI, a identidade nacional palestiniana foi criada a partir de 1834, quando o povo palestiniano se revoltou contra o Egípcios, que prestavam vassalagem ao Império Otomano.

Tamar – Hoje, não viveria num colonato mais por razões pragmáticas. Em primeiro lugar, a população nos colonatos tornou-se muito conservadora, de direita e até fanática. Não quero criar os meus filhos naquele ambiente. Não é verdade acerca de todos os colonatos e todos os colonos. Mas a noção geral de propriedade e de que nós merecemos isto… Eu não gosto. Para além disso, hoje é financeiramente arriscado, porque tens de assinar que não vais pedir reembolso nem nada do Estado se o colonato for evacuado. Não tenho a certeza que tenha dois ou três milhões de shekels para construir uma casa para a qual não vou ser reembolsada. Ideologicamente, estou dividida. Acredito no direito dos judeus à terra de Israel. A terra de Israel no global. Também sou uma liberal que acredita em estados nação, e acredito na auto-determinação. E acredito que, se eu quero ter isso, também tenho de respeitar os outros que querem ter o mesmo. Então, mesmo que os palestinianos tenham começado o seu processo de nacional muitos anos depois dos judeus, isso não significa que eles hoje não sejam um povo, que não tenham uma nação, que não tenham uma identidade, uma identidade nacional. E eu quero que eles respeitam a minha, por isso acho que tenho de respeitar a deles. E a identidade deles quer um estado. E também percebo isso. Infelizmente, eles querem-no na mesma terra onde eu quero ter o meu. Interessa-me mais Beit El, Nablus e Hebron do que Ashkelon e até Haifa. Ricardo – Porquê? Tamar – Porque as minhas raízes estão lá. É onde a minha história começou. Lendo a Bíblia, se conduzires pela estrada 60 de Hebron a Nablus, consegues ver as figuras: Abraão, Isaac, consegues vê-los. É incrível. Tamar – Historica, cultural, judaicamente, é mais importante para mim ter acesso e soberania sobre Hebron, o local onde Abraão e os quatro patriarcas estão, do que sobre esta casa. Ricardo – Em Jerusalém. Tamar – Sim, em Jerusalém Ocidental. Sim. Se eu tiver de pensar como vou criar os meus filhos ou netos e gerações futuras a ser judaicos, não só judaicos religiosamente como tendo um sentido de judaísmo, como é que faço isso sem ter de dizer “tive soberania sobre estes sítios que são a essência da nossa história e concedi-os”. Ricardo – E achas que seria possível ter um Estado onde pudesses usar ou viver em Nablus ao mesmo tempo que os palestinianos? Tamar – Não nos próximos 100 anos. A questão é se estou disponível para esperar 200 anos, e a minha a minha resposta é “não”. Para algumas pessoas é “sim, porque não, já esperámos 3000 anos”.

Para Tamar, esperar não é uma solução.

“Eu não quero que os meus filhos vão para o exército. A sério. Daqui a 18 anos. Eu não tenho 100 anos para esperar. E não é que eu não queira que eles não vão para o exército para explodirem num autocarro. Isso também não é uma boa solução para mim. Eu quero que eles tenham uma vida calma e pacífica. E quero isso para os meus filhos e para os filhos dos palestinianos. Ninguém nasce terrorista.” – Tamar Darmon

Vai a fumaca.pt para veres as fotografias que ilustram esta reportagem. A série “Palestina: histórias de um país ocupado” é escrita pela Maria Almeida, e por mim, Ricardo Ribeiro. Editada pelo Pedro Miguel Santos. A edição de som é feita pelo Bernardo Afonso.

Subscreve aqui para receberes o próximo episódio desta série.

Fumaça é produzido por: Bernardo Afonso Frederico Raposo Maria Almeida Pedro Zuzarte Pedro Miguel Santos Sofia Rocha Tomás Pereira Tomás Pinho E por mim, Ricardo Esteves RibeiroA música do genérico é dos Lotus Fever.

Durante este episódio, ouviste também as músicas Bahar e Rahil de Ramzi Aburedwan. Al Hubb Assa’b e Ghareeba de Kamilya Jubran & Werner Hasler. ‘Oubour de Mohsen Subhi. Fight de Habib Al Deek e We will come back, de Shadi Al-Assi & Suhell.

Ouçam mais episódios em apenasfumaca.pt ou no iTunes, Soundcloud, Youtube, Comunidade Cultura e Arte, RUM-Rádio Universitária do Minho, Rádio Alma Bruxelas, Shifter e também noutras aplicações de podcasts.

Até já.

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