A Serpente, o Leão e o Caçador (3/5)

O Leão (Parte 2)

[Este episódio foi produzido para ser ouvido e não apenas lido. O que se segue abaixo é a transcrição integral de toda a peça áudio.]

I

Com as ondas a baterem-lhe nos pés, Ioane Teitiota levanta o braço bem cima da cabeça e do muro que protege a sua casa para mostrar onde a água chega na maré alta. É um muro de pequenas pedras gastas pelas ondas que o separa do oceano. 

Ioane sente-se como alguém que foge de uma guerra. “Aqueles que têm medo de morrer são iguais a mim”, disse numa entrevista à BBC em 2015. Isto porque o país onde vive com a mulher e três filhos poderá estar praticamente submerso em 2050.

O Kiribati é formado por 33 minúsculas ilhas que espreitam pelo Oceano Pacífico. Pedaços estreitos e planos de terra, que quase nunca se erguem mais de dois metros acima da linha de água, a nordeste da Nova Zelândia e da Austrália. É difícil encontrar um lugar que fique a mais de alguns minutos a pé da água.

Em 2011, Ioane pediu à Nova Zelândia que o reconhecesse como o primeiro refugiado climático do mundo. Durante quatro anos, depois do seu visto no país expirar, tentou convencer os tribunais neozelandeses de que as inundações, a contaminação das águas e as tempestades cada vez mais frequentes, devido à crise climática, fizeram com que o seu país deixasse de ser seguro para viver. Sem sucesso

A meu ver, ele não é um refugiado. Ele ultrapassou o período de residência autorizado. Nós temos um conjunto de regras que temos que seguir senão, basicamente, as rodas caem porque toda a gente dá a volta ao sistema. Mas não acho que alegar que ele é um refugiado por causa das alterações climáticas seja um argumento credível.

John Key, ex-primeiro-ministro neozelandês (som de arquivo):
A meu ver, ele não é um refugiado. Ele ultrapassou o período de residência autorizado. Nós temos um conjunto de regras que temos que seguir senão, basicamente, as rodas caem porque toda a gente dá a volta ao sistema. Mas não acho que alegar que ele é um refugiado por causa das alterações climáticas seja um argumento credível.

Tal como o ex-primeiro-ministro neozelandês John Key, os tribunais consideraram que a história de Ioane Teitiota não se enquadrava no estatuto do refugiado. Ioane, a mulher, Angua Erika, e os três filhos, já nascidos na Nova Zelândia, foram deportados em 2015.

Angua falou à Radio New Zealand antes de entrar no avião que demoraria 15 a 19 horas, e uma escala, para percorrer os cinco mil quilómetros que separam a Nova Zelândia do pequeno arquipélago do Kiribati. Ainda assim, um dos países mais próximos.

Angua Erika (som de arquivo):
Eles dizem que nós estamos numa situação irregular, mas não. Nós estamos a tentar encontrar uma vida melhor para os nossos filhos.

Não é só a subida do nível médio do mar que torna difícil a vida no Kiribati. É o aumento da frequência e intensidade das tempestades. É a contaminação dos lençóis de água para beber, num arquipélago cada vez mais sobrelotado e poluído à medida que mais pessoas escapam de zonas inundáveis. É a incapacidade de colher da terra. 

Angua dá de beber aos filhos a água que armazena da chuva, porque a dos poços ou sai salgada ou poluída. Ioane vai, ano após ano, fortalecendo a parede de pedras que tenta conter o mar. E à medida que a maré sobe, os 116 mil habitantes do Kiribati têm de viver mais próximos uns dos outros, nos locais onde ainda dá para construir barreiras. Na ilha de Betio, no extremo sudoeste da capital Tarawa do Sul, a densidade populacional é semelhante a Hong Kong ou Tokyo. 

Sem mais sítio para onde fugir dentro do seu país, há vários anos que o governo do Kiribati atalha um plano de fuga dos seus habitantes para um terreno que já comprou nas ilhas Fiji. Pois, embora o Kiribati saiba há pelo menos três décadas que será um dos primeiros países a ser dizimado pela crise climática, o seu governo e os restantes das pequenas ilhas do Pacífico pouca voz tiveram perante as grandes potências poluidoras. 

O último Fórum das Ilhas do Pacífico, em agosto de 2019, foi exemplo disso. Representantes das pequenas ilhas sentaram-se com os líderes das grandes economias australiana e neozelandesa e pediram maior ação para travar a crise climática. A Austrália disse-lhes que não.

Reportagem Sky News (som de arquivo):
Scott Morrison volta para casa hoje, convencido de que a Austrália não está desfasada das restantes nações do Pacífico, apesar do governo estar isolado nas suas posições sobre as alterações climáticas. Após um retiro de 12 horas no Fórum das Ilhas do Pacífico, os 18 Estados-membros recusaram-se a concordar incondicionalmente com uma declaração que exige uma rápida transição do carvão e que os países retirem os subsídios aos combustíveis fósseis.

Enele Sopoaga, primeiro-ministro do Tuvalu, uma pequena ilha no sul do Pacífico onde se realizou o fórum, esperava mais do encontro.

Enele Sopoaga, primeiro-ministro do Tuvalu (som de arquivo):
Eu disse-lhe, tu estás preocupado em salvar a tua economia e a tua situação na Austrália. Eu estou preocupado em salvar o meu povo no Tuvalu.

As pequenas ilhas do Pacífico são das nações que menos contribuíram com a emissão de gases com efeito de estufa para a atual crise climática. Ainda assim, são as primeiras a sofrer as suas consequências, tal é o perigo serem apagadas do mapa. Os seus habitantes terão de se juntar à longa lista de pessoas obrigadas a deixar as suas casas por causa do clima.

Segundo um relatório de 2018 da Organização Internacional para as Migrações, mundialmente, três em cada cinco pessoas forçadas a migrar dentro do seu país eram vítimas de desastres climáticos, principalmente tempestades e inundações. Os conflitos armados fizeram 10,8 milhões de deslocados em todo o mundo; o clima 17,2 milhões. Na última década, o clima foi ano após ano o principal fator de deslocamento interno. E embora poucos estejam imunes, são os países extremamente pobres que correm maior risco: 80% dos deslocados na última década vivem na Ásia, onde está um terço das pessoas mais pobres do planeta. 

Neste momento, o que as protege? Porque é que a crise climática não é ainda uma razão legal válida para pedirem proteção noutro país? 

Seja toda a bem-vinda ao Fumaça, eu sou Margarida David Cardoso.

II

Desde 1990, 92% das mortes em desastres naturais ocorreram em países de baixo ou médio rendimento, persistentemente concentrados na região Ásia-Pacífico e em África. Os três mega desastres dos últimos vinte anos foram exemplo disso: o sismo seguido de tsunami no Oceano Índico, em 2004, o ciclone Nargis que varreu o Myanmar, em 2008, e o terramoto no Haiti, em 2010.

António Guterres, Secretário-Geral das Organização das Nações Unidas (som de arquivo):
Do Sul do Pacífico a Moçambique, às Caraíbas e mais além, eu vi o impacto transformador e devastador da emergência climática em comunidades vulneráveis. Desastres que causam um sofrimento horrível e podem acabar com décadas de trabalho de desenvolvimento num instante.

Como o Secretário-Geral das Organização das Nações Unidas, António Guterres, tem referido várias vezes em frente a líderes mundiais, os mais pobres e vulneráveis são os primeiros a sofrer e os mais atingidos pela crise climática. Têm menos capacidade económica para se adaptar ou se afastar das zonas de risco – de campos improdutivos, de regiões áridas ou que vão progressivamente sendo levadas pelo mar. Menos dinheiro para investir em programas de educação e prevenção, sistemas de alerta, respostas de emergência ou para aplicar regulamentos de construção em áreas de risco. 

Se nada mudar – sem cortes significativos nas emissões de gases com efeito estufa e ação mais justa de desenvolvimento –, cerca de 143 milhões de pessoas nas regiões da África Subsaariana, sul da Ásia e América Latina poderão ser forçadas a migrar dentro dos seus países nos próximos 30 anos. 143 milhões é o mesmo que dizer a população de Portugal, Espanha, França, Luxemburgo, Suíça e Bélgica, toda junta. São 86 milhões de cidadãos da África Subsaariana, 40 milhões do Sul da Ásia e 17 milhões da América Latina, segundo o mais pessimista dos três cenários estimados no relatório Groundswell, de 2018, do Banco Mundial.

Com ação climática urgente, o número de deslocados seria 75% menor.

As previsões do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, o grupo de cientistas da ONU que estuda a crise climática, não são melhores. Se conseguirmos limitar o aquecimento do planeta a 2.ºC em relação ao período pré-industrial – o marco temporal mais usado pela comunidade científica –, o nível das águas eventualmente subirá vários metros, deixando submersas áreas onde hoje vivem 280 milhões de pessoas. 

Imaginemos uma pessoa forçada a deixar a sua casa. O mais provável é que faça como a maioria dos refugiados climáticos e encontre refúgio dentro do seu próprio país. Sairá com um pequeno grupo ou sozinha, de um zona rural para uma cidade próxima, quase sempre para encontrar trabalho e ganhar dinheiro suficiente para repor os rendimentos perdidos. Tenderá a ficar o mais perto de casa que consegue. E, à primeira oportunidade, fazer as malas e voltar.

Vê-se muito isto em casos de seca: agricultores que andam para trás e para a frente, de um lugar para o outro, ao sabor do que a terra lhes dá. Migrar definitivamente é o último recurso.

Mas, em último caso, se não conseguir encontrar refúgio no seu país, é provável que não vá muito longe. É por isso que, em 2008, há já 12 anos, a Organização Internacional para as Migrações escrevia, num estudo sobre migrações e alterações climáticas: “A imagem simplista de um agricultor de uma zona costeira forçado a fazer as malas e mudar para um país rico não é típica. Pelo contrário, como já é o caso com refugiados políticos, é provável que o ónus de apoiar os migrantes climáticos seja suportado pelos países mais pobres – os menos responsáveis ​​pelas emissões de gases de efeito de estufa.” 

Em 2019, a mesma organização percebeu que era exatamente isso que estava a acontecer: “Os países menos desenvolvidos, apesar de já estarem entre os mais pobres e vulneráveis do mundo, são confrontados com um “duplo esforço”, sendo-lhes exigido que enfrentem um considerável deslocamento interno devido ao clima, enquanto também abrigam um número cada vez maior de refugiados [de outros países].” Hoje, cerca 80% dos refugiados vivem em países vizinhos daqueles de onde fugiram, segundo as Nações Unidas. Turquia, Paquistão, Uganda e Sudão são os que mais recebem.

Cláudia Pedra:
Os países que estão perto dos países que têm problemas graves, seja em que situação for – pode ser um conflito, pode ser uma guerra, pode ser por causa das alterações climáticas – são sempre os países vizinhos que acolhem a maior parte das pessoas. Por isso, durante muitos anos, quando a guerra do Afeganistão estava mais intensa, o país do mundo que tinha mais refugiados era o Irão. Nós temos no Líbano mais de um milhão de pessoas. É um país minúsculo.

Cláudia Pedra é especialista em migrações e trabalha na área dos direitos humanos há mais de 20 anos.  Foi diretora da Amnistia Internacional entre 2002 e 2008 e é há sete anos diretora da Associação de Estudos Estratégicos e Internacionais, onde tem investigado sobre tráfico de seres humanos.

Com a migração a aumentar dentro e fora das fronteiras, a crise climática vai desafiar a capacidade de adaptação de muitas comunidades e sobrecarregar outras. Onde já existirem desigualdades, dificuldades no acesso a água, comida, habitação, tudo será pior.

E embora seja reconhecido que, a curto prazo, milhões de pessoas terão que se deslocar por causa do clima – pelas Nações Unidas, pela Organização Internacional para as Migrações, pela União Europeia, pelo Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, desde o seu primeiro relatório de avaliação em 1990… Apesar disso, as alterações climáticas não são razões válidas, na lei internacional, para fugir e procurar refúgio. Falarmos em refugiados climáticos é falarmos de um conceito jurídico que, na verdade, não existe.

III

Então, o que protege estas pessoas?

Cláudia Pedra:
Na verdade, só a legislação relativamente às migrações. Não existe uma legislação criada para refugiados climáticos. Aliás, usa-se muitas vezes esse termo de refugiado climático, mas na verdade ela não existe. Existe a questão de deslocados, migrantes, migrações por causa do clima, mas isso faz com que seja muito diferente, porque a proteção internacional é muito mais forte para as pessoas que pedem estatuto de refugiado do que para as migrações.

As migrações estão sujeitas às definições de fronteira. Uma pessoa sai do seu país e só entra regularmente noutro se esse país a deixar. Ou seja, tem direito a sair do seu país, mas não lhe é garantido que possa entrar noutro.

O caso só é diferente para aqueles a quem é reconhecido um estatuto de asilo, como explica Emellin de Oliveira, especialista em Direito das Migrações. E isso só acontece a quem é perseguido em função da raça…

Emellin de Oliveira:
Raça, nacionalidade, religião, pertença a um grupo social ou por uma opinião política, são essas as cinco razões. O que se tem feito muito hoje é, no termo pertencer a um grupo social, tentar dar uma interpretação mais extensiva, encaixar outras proteções que não estão previstas na Convenção de Genebra.

Assinada em 1951, a Convenção de Genebra define os princípios da lei internacional sobre o tratamento humanitário em tempo de guerra, entre eles o que é e que direitos tem um refugiado. Estava inicialmente desenhada apenas para aqueles que necessitavam de asilo na sequência de acontecimentos anteriores a Janeiro de 1951, mas um protocolo assinado em 1967 removeu estes limites temporais.

Emellin de Oliveira, que também é investigadora de doutoramento na Universidade Nova de Lisboa sobre a securitização da migração na União Europeia, explica como a lei de asilo portuguesa não é excepção e não inclui uma proteção para refugiados climáticos. 

A única brecha que lhes poderá conceder alguns direitos está no artigo de 123.º da lei de estrangeiros. Esta abre a possibilidade de se atribuir uma autorização de residência temporária por dois anos, por razões humanitárias, em casos que não encaixem na lei de asilo. A pessoa tem que provar que tem como se sustentar em Portugal, e é, sublinha-se na lei, um regime excecional.

Emellin de Oliveira:
Estamos a falar de uma excepção, de uma proteção muito fraca e também muito discricionária. Porque aqui, sendo muito aberto, também cabe ao decisor ver caso a caso se é um caso de proteção ou não. Enquanto, por exemplo, na lei de asilo eu comprovo que sou perseguido por causa da minha afiliação política, é-me reconhecido o estatuto. Um refugiado climático tem que fazer prova pela lei de imigração, e essa lei é diferente porque estamos a falar de imigrantes económicos, não são imigrantes forçados ou involuntários, seriam considerados migrantes voluntários, como se eles quisessem ter saído como, por exemplo, um estudante ou uma pessoa que vem abrir uma empresa em Portugal.

A diferença entre a proteção que é dada a alguém que chega como imigrante ou ao abrigo da lei de asilo é enorme. Cláudia Pedra.

Cláudia Pedra:
Se for aceite, o refugiado tem imensos direitos. Com o estatuto do refugiado, basicamente, tem todos os direitos que um português teria, excepto o de votar. Além disso, quando se consegue ter o estatuto pleno de refugiado, ele é eterno. Ele só desaparece se a situação que levou à perseguição daquela pessoa desaparecer inteiramente. E muitas vezes, não é o caso. Nós temos aqui cubanos desde os anos 60, continuam a ser perseguidos. 

Um refugiado em Portugal tem direito a uma autorização de residência por cinco anos, que pode ser renovada caso a  perseguição se mantenha. Ao fim desse período, já tendo cinco anos de residência regular no país, a pessoa pode candidatar-se à nacionalidade portuguesa

Emellin de Oliveira:
Quando uma pessoa é refugiada ou é beneficiário de uma proteção subsidiária – estamos a falar da lei de asilo –, existe uma obrigação do Estado, uma vez reconhecida que aquela pessoa realmente se voltar para o seu país colocará em risco a sua vida ou a sua integridade física, existe uma obrigação do Estado em reconhecer o estatuto. É claro que depois se pode fazer uma discussão, porque existem algumas cláusulas de exclusão, mas falando num cenário em que uma pessoa não cometeu nenhum crime grave, que não foi ela a perseguidora, falando de um contexto mais geral, nesse caso o Estado tem que proteger. Uma pessoa é refugiada, tanto que se fala em reconhecimento, não se diz ‘Eu vou-te dar o estatuto’. Não se dá, reconhece-se o estatuto, porque a pessoa já chegou como refugiada, o que ele tem que fazer é apenas prova de que está a dizer a verdade. Enquanto o migrante não. Não existe um direito à imigração, não existe um direito a entrar no outro território.

Cláudia Pedra:
Quando se fala de refugiados climáticos, está-se a usar a palavra refugiado; não se está a falar nem de proteção humanitária, nem se está a falar de deslocações…

A Organização Internacional das Migrações tem optado pelo conceito de deslocados climáticos – conceito vazio de qualquer proteção prática, precisamente porque, diz Cláudia Pedra, “ser refugiado implica um maior número de proteções”.

Neste momento, para além de lhe poder ser recusada a entrada no país de refúgio, quase nada protege um refugiado climático de ser devolvido ao país de onde fugiu – esse que é o princípio basilar do estatuto de refugiado. Digo quase porque no final de janeiro, uma deliberação histórica da comissão de direitos humanos das Nações Unidas, no seguimento do caso de Ioane Teitiota, do Kiribati, afirmou que é ilegal, à luz da lei internacional, que os governos devolvam pessoas a países onde as suas vidas podem ser ameaçadas pela crise climática. Os que o fizerem estarão a violar o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966, ratificado por 173 países, incluindo todos os Estados da União Europeia. Vários juristas e organizações não-governamentais acreditam que esta decisão pode abrir um precedente legal e influenciar decisões futuras.

Os refugiados climáticos são quase invisíveis no sistema internacional: nenhuma instituição é responsável para recolher e organizar os seus dados e muito menos fornecer serviços básicos. Incapazes de provar perseguição política no seu país de origem, caem nas brechas da lei de asilo, à procura da excepção em que o seu caso se aplique.

Mas há outras razões porque o termo refugiado climático é problemático. O estatuto de refugiado pressupõe, antes de tudo, que a pessoa é perseguida pelo governo do seu país ou este não é capaz de a proteger da perseguição de que é alvo, por isso, tem que escapar. É sempre uma proteção num país terceiro. Ora, para a maioria dos deslocados climáticos, isso não se aplica, porque não chegam a sair do seu país, deslocam-se internamente. O conceito de refugiado tende ainda a implicar um direito de retorno ao sítio de onde fugiram, o que não se pode aplicar em muitos cenários de alterações climáticas, como no desaparecimento de zonas costeiras ou pequenas ilhas. E vários investigadores argumentam que é muitas vezes difícil estabelecer uma relação entre as alterações climáticas e o facto das pessoas terem de abandonar as suas casas. Que as relações causais são difíceis de estabelecer.

E há ainda uma outra preocupação política: de que voltar a discutir a definição de refugiado para abranger fatores ambientais, revendo a Convenção de Genebra de 1951 e o seu protocolo de 1967, tropece na má vontade de alguns governos.

Emellin de Oliveira:
Em tempos de aumento de extrema-direita, terrorismo, criminalidade grave, se sentarmos todos os Estados para discutir e tentar reformar a Convenção de Genebra há muito mais possibilidades de que venha a ser reduzido o âmbito de proteção do que venha a ser alargado. Eu prefiro acreditar que é melhor existam essas proteções nacionais mas que exista alguma resposta, do que tentarmos às vezes pensar em algo internacional – que é bom mas a verdade é que é irrealista – e acabarmos tirando a proteção de outros que também precisam. 

No entanto, deixar isto à discricionariedade dos Estados acarreta riscos das legislações produzidas a nível nacional violarem os Direitos Humanos. Um exemplo recente foi a decisão do Parlamento indiano de maioria hindu de aprovar, em dezembro de 2019, um projeto de lei permitindo que imigrantes do Paquistão, Bangladesh e Afeganistão que entraram de forma irregular na Índia possam pedir a cidadania. No entanto, a lei exclui todos aqueles que sejam muçulmanos.

IV

Em 2018, 152 países membros das Nações Unidas adoptaram o Pacto Global para a Migração, o primeiro acordo que estabelece uma série de compromissos por parte dos governos para uma migração segura, ordenada e regular. Entre eles, reduzir as vulnerabilidades no percursos dos migrantes, incluindo “as condições que enfrentam nos países de origem, trânsito e destino”, e “cooperar internacionalmente para salvar vidas e impedir mortes e ferimentos de migrantes por meio de operações de busca e salvamento”.

Esta foi também a primeira vez que um documento de política à escala global reconheceu a existência de migrantes climáticos – não confundir com refugiados climáticos. 

O acordo foi visto como um passo importante. Ainda assim, limitado. Além de não ser juridicamente vinculativo, não foi adotado por alguns dos principais responsáveis por violações de direitos dos imigrantes. Estados Unidos da América, Hungria, Israel, Polónia e  República Checa votaram contra. Argélia, Austrália, Áustria, Bulgária, Chile, Itália, Letónia, Líbia, Liechtenstein, Roménia, Singapura e Suíça abstiveram-se. Quatro países estiveram ausentes da votação. Ao todo, nove Estados-membros da União Europeia rejeitaram o pacto.

Então, se há trinta anos que responsáveis políticos sabiam que a crise climática ia colocar em risco milhões de pessoas, como é que nunca se encontrou uma solução para proteger os refugiados climáticos?

Emellin de Oliveira:
Existe uma falta de interesse político pelo contexto em que vivemos. Quando falamos em liberdade de entrada – porque, na verdade, o asilo, se considerarmos realmente refugiados climáticos como refugiados, seria um direito a entrar num outro território porque preciso de proteção – seria em poucas e fáceis palavras dessa forma. Sendo uma excepção, [o direito de asilo] é limitado. E sendo limitado a ideia é que não se abra, porque senão vira regra.

Cláudia Pedra:
Para mim, é uma questão de recursos e de medo de tomar as decisões. Muitas vezes estas decisões têm que ser feitas com alguma jurisprudência, ou seja, tem que haver alguém que avance primeiro e que tome um papel forte. E durante muito tempo esperou-se que a Nova Zelândia fizesse isso.

Era 2014 e o caso de Ioane Teitiota, do Kiribati, teve cobertura mediática internacional perante a hipótese de ser o primeiro refugiado climático do mundo.

Cláudia Pedra:
O processo arrastou-se durante anos. A atenção internacional estava toda ali a pensar ‘Vamos ver o que é que a Nova Zelândia diz’. E a Nova Zelândia disse que não, rejeitou o pedido de asilo.

Quando apreciou o caso, em 2015, o Supremo Tribunal não deixou de reconhecer que o Kiribati “enfrenta inquestionáveis desafios”, mas entendeu que, ao regressar ao seu país, Ioane não enfrentaria “danos graves”. Além disso, não encontrou provas de que o governo do Kiribati estivesse a falhar naquilo que podia fazer para proteger os seus cidadãos da degradação ambiental. Por isso, Ioane não poderia ser considerado refugiado.

Os tribunais neozelandeses quiseram, contudo, deixar claro que esta deliberação não deve descartar uma proteção para refugiados climáticos no futuro. Lê-se no acordão do Supremo Tribunal: estas “decisões não significam que a degradação ambiental resultante de alterações climáticas ou de outros desastres naturais não possam criar um caminho para a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados ou para a jurisdição para a proteção de pessoas”.

E, assim que tomou posse, em 2017, a primeira-ministra neozelandesa Jacinda Ardern declarou que o seu país tinha que fazer algo.

Jacinda Ardern, primeira-ministra neozelandesa:
Estamos à procura de formas de incorporar a responsabilidade que temos nas alterações climáticas e como abordamos os futuros refugiados climáticos entre os nossos vizinhos.

Em 2017, já depois dos tribunais neozelandeses rejeitarem o pedido de refúgio de duas famílias do Tuvalu, outro pequeno estado no sul do Pacífico, o Governo da Nova Zelândia colocou a hipotese de criar um programa especial de vistos de refugiados para os habitantes forçados a migrar devido à subida das águas, limitado a 100 pessoas por ano. 

No entanto, seis meses depois, o projeto foi abandonado, por vontade das ilhas do Pacífico. 

As suas populações não querem ser refugiadas. Não querem abandonar a casa, a terra, ver dispersa a sua comunidade, perdida uma cultura. Querem em vez disso que as grandes nações reduzam as suas emissões, apoiem a adaptação, ofereçam caminhos legais para a migração. E só aí, se tudo falhar, lhes ofereçam proteção.Na ausência de um consenso internacional, poderão surgir soluções nacionais. Algo que já existe em países como a Itália, que concede proteção humanitária para questões ambientais. Ou no Brasil que criou uma proteção específica para acolher haitianos vítimas do sismo de 2010.

Cláudia Pedra:
Especialmente nos últimos 20, 30 anos tem-se feito um grande esforço em discutir isto. E acho que não progredimos o suficiente para isto estar resolvido na próxima década.

Cláudia Pedra e Emellin de Oliveira falam de procedimentos com vários anos, em que há erros, imprecisões, vazios legais que continuam sem resolução. Falam do Direito a andar sempre atrás do prejuízo.

No final de 2018, havia 70,8 milhões de deslocados à força em todo o mundo em resultado de perseguição, conflito, violência e violações de direitos humanos, segundo as Nações Unidos. O dobro das pessoas deslocadas 20 anos antes. Aqui inclui-se o período de maior circulação de refugiados na Europa desde a Segunda Guerra Mundial, durante o qual a União Europeia assinou vários acordos, incluindo com a Turquia e a Líbia, para travar a chegada de refugiados. Vários países, como Itália e Malta, fecharam os seus portos ao salvamento de migrantes. Como será, então, em trinta anos, quando o número de deslocados for muito maior? E quando essas pessoas precisarem de apoio por tempo indeterminado?

Emellin de Oliveira:
A meu ver pode ser muito parecido ou quiçá até pior do que foi na tal chamada crise migratória. (…) Chamamos de crise migratória quando cá na Europa, recebemos menos que uma Turquia recebeu e nós chamamos de crise. Agora imaginemos esses números, cem vezes mais. Penso que primeiro cria uma instabilidade política sem precedentes. E a verdade é que os políticos precisam de aceitação política. E uma vez que a própria sociedade não queira receber já é um passo para que não haja consenso político para se discutir. Depois, e nesse caso não sendo tão falaciosa, mas talvez mais realista, a própria capacidade de cada Estado ter recursos para receber. Enquanto a da lei de estrangeiros deve fazer prova que tem como se sustentar, o do estatuto do refugiado não precisa, na verdade, ele vai receber ajuda num período de adaptação – que cá em Portugal costuma ser de um ano e meio. Por isso, é o Estado que vai providenciar e tentar ajudar aquela pessoa. É claro que essa pessoa pode trabalhar, mas existe também – e temos que ser honestos – o período de adaptação, de ela aprender a língua, de ela conhecer os costumes. Por isso, imagine isso multiplicado a 100, a 200.

Cláudia Pedra:
Existe uma convenção que é a convenção mais mal sucedida das Nações Unidas que é a Convenção dos Direitos dos Trabalhadores Migrantes e das suas Famílias. Essa convenção entrou em vigor, mas se olharmos para quem ratificou são só país em vias de desenvolvimento, não existem países desenvolvidos. Não existem países receptores de migrantes a ratificar aquela convenção. A história desta convenção mostra bem como é difícil para as pessoas e os estados lidarem com as migrações. Quanto mais tomar uma posição firme e criar um estatuto do refugiado climático e ter que criar condições para estes milhões de pessoas encontrarem locais. É complicado.

A história dos refugiados climáticos é um espelho da relação de forças entre o Norte e o Sul, entre o Ocidente e o Oriente, desde que assim dividimos o mundo. Um duelo em que os mais fracos perdem sempre; como as pequenas ilhas do Pacífico, as que menos contribuíram para um problema que fará delas as primeiras vítimas. Apesar de o saberem há décadas, nada conseguiram fazer para o evitar. Porquê? Quando os líderes mundiais se sentaram, ano após ano, à mesa da conferência do clima das Nações Unidas, onde estava a voz dos mais pequenos? Quem decidiu por eles?

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