A Serpente, o Leão e o Caçador (2/5)

O Leão (Parte 1)

[Este episódio foi produzido para ser ouvido e não apenas lido. O que se segue abaixo é a transcrição integral de toda a peça áudio.]

I

Notícias (sons de arquivo):
[Sons sobre revolta e guerra síria desde 2011]

Há uns anos Farrah Nasif, uma jovem refugiada síria a viver nos Estados Unidos, disse a um jornalista do New York Times que para perceber o início da revolta síria ele tinha que entender o que aconteceu na seca.

Seja toda a gente bem-vinda ao Fumaça. Eu sou a Margarida David Cardoso.

II

Adam Al Alou:
Antes de mais, espero ser útil, porque não sou um especialista no assunto, como te disse. Ganhei um conhecimento geral sobre isso porque a) é a minha área de investigação; b) sou sírio; e c) porque sou dessa região. Então, vi isso em primeira mão, embora durante esses anos fosse um estudante universitário em Damasco, quando seca chegou pela primeira vez.

Adam Al Alou não é de facto um especialista em alterações climáticas, mas haverá poucas pessoas em Portugal que percebam tanto a guerra na Síria como ele. Doutorando em Estudos Políticos Comparativos, na Universidade de Lisboa, aos 29 anos, trabalha no ISCTE como investigador, dedicando-se ao estudo do conflito e da sociedade civil síria.

Veio para Lisboa em 2014 com uma bolsa de estudo da Plataforma Global de Apoio a Estudantes Sírios, dinamizada pelo antigo Presidente da República Jorge Sampaio.Natural de Deir Ezzor [que também se pode escrever Dayr al-Zawr ou Deir ez-Zor], a maior cidade do leste da Síria, a 450 quilómetros de Damasco, Adam viu a seca de perto.

Adam Al Alou:
A seca que ocorreu entre 2006 e 2010 atingiu as áreas do rio Tigre – áreas que dependem do rio Tigre para irrigação. E essas são algumas das terras mais férteis da Síria. A maior parte da agricultura na Síria vem daí. Atingiu o campo, basicamente a província de Al Hasakah e Deir Ezzor – áreas muito dependentes da agricultura.

Al Hasakah e Deir Ezzor, onde Adam cresceu, são duas das 14 províncias sírias. Al Hasakah, que faz fronteira com o Iraque e a Turquia, no extremo nordeste da Síria, era conhecida pelas suas terras férteis, de onde se tirava trigo, arroz e algodão para todo o país, e onde se concentrava metade da produção de petróleo sírio. 

Sempre houve secas nesta região. Mas ao longo do século XX, os invernos nos países do Médio Oriente e do Norte de África ao largo do Mar Mediterrâneo tornaram-se consideravelmente mais secos, devido à crise climática. As secas são mais frequentes e intensas. De tal forma que dez dos doze invernos mais secos na região desde 1902 foram registados nos últimos vinte anos. De acordo com um estudo da Administração Oceânica e Atmosférica Nacional do governo dos Estados Unidos da América, não é apenas a variabilidade natural do clima que explica o que está a acontecer. A emissão de gases com efeito de estufa, com origem nas atividades humanas, e o aquecimento do mar à superfície contribuíram para o aumento geral da temperatura. As secas que Adam fala foram particularmente severas no nordeste da Síria, o celeiro do país. Os consecutivos fracassos agrícolas forçaram a Síria, que era autossuficiente em trigo, a importar.

Reportagem Al Jazeera (som de arquivo):
Toda gente está a ser afetada naquela região. Os pastores são afetados, os agricultores perderam as suas colheitas. A situação é muito má. Esta é a terceira seca consecutiva. As pessoas esgotaram os seus mecanismos para lidar com isto e realmente estão a passar por uma situação muito difícil.

A escassez de chuva significa falta de comida e de rendimento. Ao quarto ano de seca consecutivo, as Nações Unidas estimavam que um a três milhões de pessoas tinham sido arrastadas para a pobreza extrema.

Reportagem NPR (som de arquivo):
Os agricultores foram expulsos das suas terras. 800.000 sírios perderam os seus meios de subsistência. Duzentos mil deles simplesmente abandonaram as suas terras.

Em 2011, numa altura em que uma onda de primaveras árabes varria o norte de África e o Médio Oriente, em países como a Tunísia, o Egipto e a Líbia, levando à queda de vários líderes autoritários, uma frase grafitada numa escola síria dirigida a Bashar Al-Assad ficou para a história: “Doutor, és o próximo.” Os suspeitos, 15 jovens com menos de 20 anos, foram detidos e torturados pelo regime, levantando uma onda de protestos pacíficos na cidade de Daraa, no sul, na fronteira com a Jordânia. As forças de Assad dispararam a matar sobre a multidão, reprimindo violentamente as manifestações, que rapidamente se propagaram a outras cidades. 

O que começou como uma revolta contra um regime autoritário transformou-se numa guerra civil com múltiplas facções, com a participação de grandes potências internacionais.A fúria e descontentamento contra o ditador sírio, cujo partido está no poder há quase 60 anos, foram o principal combustível dessa revolta. E aprofundar isso é um trabalho complexo, que tem que reunir diferentes peças de um enorme puzzle ainda em construção.

Adam Al Alou:
Um fator importante é que as guerras civis são fenómenos complexos, certo? Fenómenos complexos que não são monolíticos. Não os podes reduzir a uma única explicação.

Mas o caso sírio é um exemplo de como a crise climática e a má de gestão de recursos naturais podem alimentar revoltas já existentes. E de como respostas erradas de governos – ou a falta delas – podem tornar as populações ainda mais vulneráveis aos eventos climáticos. Um ciclone, por exemplo, torna-se um desastre se não houver um sistema de alerta eficaz, as casas forem mal construídas e as pessoas não souberem o que fazer.

Adam Al Alou:
A primeira visão vem principalmente de especialistas ocidentais, jornalistas, etc. Nos últimos anos, as pessoas começaram a aprofundar as razões por detrás do conflito e da revolta síria, então esta visão alega ou vincula as alterações climáticas ao conflito sírio, principalmente por causa da seca em 2006 e das migrações forçadas, da pobreza que gerou…

Reportagem MSNBC (som de arquivo):
Um novo estudo constata que as alterações climáticas exacerbaram a pior seca de sempre na Síria moderna, agravando a agitação social no país e ajudando a empurrá-lo para a guerra civil.

Reportagem Democracy Now (som de arquivo):
Este é o Secretário de Estado dos Estados Unidos da América, John Kerry: Não é uma coincidência que imediatamente antes da guerra civil na Síria o país tenha experienciado a pior seca já registada.

Reportagem Channel 4 (som de arquivo):
O interessante é que a guerra síria começou por causa das mudanças climáticas. Em Homs, tinhas agricultores que não tinham mais água por causa desta enorme seca, então tiveram que matar os seus animais, começaram a revoltar-se e Assad veio e reprimiu-os com força.

Nos últimos anos, jornalistas, analistas e políticos ocidentais procuraram explicar o início da guerra civil através dos cinco anos de seca extrema que a antecederam. Em 2015, a divulgação de um estudo sobre a enorme cintura do Crescente Fértil, que vai desde o norte do Egito ao norte do Iraque, passando pelo território sírio, definiu grande parte da narrativa: uma intensa seca na Síria, agravada pelo aquecimento global do planeta, causou migrações em massa das zonas rurais para as cidades, o que, por sua vez, contribuiu para os protestos de 2011. No entanto, a causa-efeito entre a seca, a migração e o conflito não é um facto estabelecido entre a comunidade científica. Embora seja certo que a seca, a migração e o início do conflito se encontram no tempo não é possível provar que uma coisa tenha levado à outra. E há outras cartas no baralho.

Adam Al Alou:
É um exagero muito, muito grande dizer que o conflito, ou a revolta que o precedeu, estão diretamente ligados à seca de 2006 e 2007.

Adam tem outra visão.

Adam Al Alou:
Depois tens a segunda visão, que vem principalmente de sírios e outros especialistas ocidentais, que consideram a primeira visão… Antes de tudo, eles desacreditaram-na, dizem que não é baseada em qualquer ciência ou evidência. E eles ofendem-se com isso, na verdade. Quando perguntas a sírios sobre as alterações climáticas, eles ficam principalmente ofendidos com esta tese. Porquê? Porque eles acham que isso dilui as suas reivindicações legítimas, a sua revolta e as suas denúncias socioeconómicas, etc. E que isso ignora completamente 50 anos de ditadura.

Adam Al Alou não nega a gravidade das atuais alterações climáticas. O que ele quer dizer é que a crise climática teve graves consequências na Síria, alimentando a revolta, mas não é a causa imediata por trás do conflito. As principais causas já lá estavam antes.

Para as perceber melhor é preciso enquadrar os cinco anos de seca que devastaram o nordeste da Síria no contexto de rápida liberalização económica e uma longa má gestão de recursos.

É que durante estes anos, do regime de Bashar Al Assad, a população recebeu pouco ou nada.

III

Adam Al Alou:
Os níveis de precipitação diminuíram e havia, na altura, um grande movimento de perfuração da terra. As pessoas começaram a depender de práticas de irrigação insustentáveis, incluindo a perfuração dos chamados “blackwells”, poços não licenciados que basicamente sugavam os aquíferos daquela área até secarem.

Os impactos das secas foram agravados pelas insustentáveis políticas agrícolas e de água implementadas ao longo de anos pelo partido Baath, pelo qual Hafez al-Assad governou desde 1971 até à sua morte, em 2000, ano em que lhe sucedeu o filho Bashar al-Assad, desde então no poder. 

Na última metade do século, o governo sírio concentrou-se na construção uma enorme rede para controlar o fornecimento de água, com barragens e extração de águas subterrâneas, que permitiu expandir a área cultivável. Porque passaram a ter água, desertos e terras áridas tornaram-se campos de pasto. Mas essas políticas culminaram numa gestão de água ineficiente – em algumas zonas, inexistente.Para garantir apoio nas áreas rurais, o governo favoreceu empreendimentos agrícolas megalomanos e alimentou uma vasta política de subsídios a culturas intensivas, como o trigo e o algodão. Além disso, fechou os olhos a padrões insustentáveis de consumo de água, incluindo milhares de poços não licenciados – os blackwells de que Adam fala.

Adam Al Alou:
Quando falamos de poços não licenciados estamos a falar de números assustadores. Por exemplo, só na cidade de Ras Al-ayn, que é uma cidade pequena naquela região, havia cerca de 11.000.

Nos anos de seca, as ações e omissões do governo sírio agravaram de forma significativa aquilo que deixou de ser apenas culpa do clima: a escassez de água em áreas rurais totalmente dependentes da agricultura. Ao mesmo tempo, o regime limitou a cobertura da imprensa de forma a retratar a Síria como vítima de fatores externos que fugiam ao seu controlo.

Adam Al Alou:
Eu acho que o maior golpe contra os agricultores nestas áreas foi a liberalização – políticas económicas de Assad, o filho, que foram desastrosas, não apenas para essas regiões, mas para toda a Síria.

Nos primeiros dez anos de Bashar Al-Assad no poder, entre 2000 e 2011, o governo sírio acelerou o ritmo de implementação de uma série de reformas neoliberais, de privatização e liberalização da economia. Licenciou bancos privados, reduziu taxas de juro de empréstimos, retirou o controlo de preços, eliminou subsídios e criou incentivos ao investimento – políticas implementadas sob a liderança de Abdallah al-Dardari, vice-primeiro ministro para os assuntos económicos de 2005 a 2011, agora a trabalhar nas Nações Unidas como Representante do Programa da ONU em Cabul, no Afeganistão, e que foi recentemente nomeado para a equipa de seis pessoas que irá desenhar um plano de reconstrução da Síria pós-guerra. Estas políticas transformaram uma economia controlada pelo Estado numa economia orientada para o mercado.

Adam Al Alou:
Os subsídios aos combustíveis, ferramentas e outros produtos essenciais à agricultura foram retirados. Então, um litro de gasóleo que na altura custava sete libras sírias, aumentou para 25 do dia para a noite. Muitos agricultores perceberam que já não valia a pena cultivar, dedicar-se à agricultura, porque não já chegava para se sustentarem.

Então, o partido de Bashar al-Assad perdeu uma importante parte do seu apoio popular.

Adam Al Alou:
Muitas pessoas argumentam que essas políticas económicas que atingiram a agricultura estão ligadas a uma tendência do governo de privatizar esse setor, porque Assad começou a conceder favores aos investimentos agrícolas privados, oferecidos como favores ao seu círculo íntimo de empresários.O partido Baath essencialmente empobreceu a sua base rural porque, desde os anos 70, era um partido socialista que falava sobre agricultores, trabalhadores, etc. Mas depois ignorou-os em favor de uma pequena classe de compinchas capitalistas perto do regime de Assad.

Para mim, tudo isto foi uma questão de má governação, mais do que uma questão climática ou ambiental. Claro que há uma questão climática porque os níveis de precipitação diminuíram, mas isso poderia ter sido evitado. A catástrofe que aconteceu na Síria, a seca, poderiam ter sido evitadas se houvesse boa governança na altura, mas não houve.

O abandono das culturas significou para muitos o abandono do campo. Numa altura de liberalização económica e seca prolongada, mais de 300 mil famílias mudaram-se para as cidades. Em algumas aldeias, mais de metade da população. E aí, o emprego e as casas não chegavam para todos.

Adam Al Alou:
Na altura, maioria foi para as maiores cidades sírias, mas também houve pessoas que foram trabalhar para o Líbano. Elas trabalhavam em muito, muito más condições e isso mostra o quão desesperante era a situação delas. Um milhão de pessoas ficaram vulneráveis por causa disso. Estamos a falar de agricultores que sofreram impactos, mas não foram embora; do mecânico, por exemplo, que consertava tratores agrícolas, mas também perdeu o emprego porque deixou de haver agricultores na zona.

Na casa de Adam, a seca era assunto à mesa. O pai começou a trabalhar em projetos de irrigação para mitigar os efeitos da falta de chuva, já esta ia funda na terra. A intervenção do governo vinha tarde demais. E Adam lembra-se de ouvir falar disso nas ruas – não muito, mas falava-se. Era algo estranho à época: ouvir críticas ao governo em plena luz do dia.

Adam Al Alou:
Tinhas um governo que não respondia. E isso também contribuiu para aumentar as queixas das pessoas.

IV

Queria voltar ao início da conversa com Adam em que ele me disse que se falássemos com outros sírios sobre a crise climática e o início da guerra civil, para muitos isso seria uma ofensa. Por acreditarem que isso afasta a responsabilidade de quem governou a Síria no últimos 60 anos e permite ao regime de Assad culpar em fatores externos as suas próprias falhas. Queria perguntar-lhe, então: quando a Síria escrever a história da sua revolução, que papel atribuirá à crise climática?

Adam Al Alou:
Será, de certeza, mencionado, mas eu duvido é que venha a ser mencionado como um problema de alterações climáticas, por duas razões. Porque a) foi mais um problema de má governação do que qualquer outra coisa. E b) porque, na verdade, as alterações climáticas não são uma grande tema na região. Pessoas que estão debaixo de bombardeamento constante, fome e tudo isso – não acho que seja uma prioridade para elas.

É muito interessante para mim falar sobre isto e esclarecer isto. Para muitos sírios, a sua revolta foi puramente política contra uma ditadura que governou o país por 50 anos. Mas mesmo essa perspectiva está errada. Muitas pessoas, é claro, participaram na revolta por razões políticas, mas outras participaram por questões económicas, até por motivos religiosos. É por isso que eu digo que isto é um problema caleidoscópico.

Como na Síria, as mudanças do clima podem não causar conflitos por si só. Mas, ao tornarem os eventos extremos mais frequentes e severos, podem levar problemas já existentes a um ponto de rotura. 

Uma análise das universidades de Stanford e da Califórnia a meia centena de estudos concluiu que desvios na temperatura média aumentam o risco de conflito entre grupos em mais de 10%.

Som design: chuva e derrapar de pneus na estrada.

É fácil de compreender isto se compararmos com o aumento do risco de acidentes de carro em dias de chuva, mostram os investigadores. Chuvas fortes aumentam a probabilidade de um erro humano ou mecânico desencadear um acidente. Sem a possibilidade desses erros acontecerem, as chuvas não afetariam as taxas de acidentes de carro. Mas sem as chuvas, ainda haveria alguns acidentes.

Estes 10% ajudam-nos a ver a crise climática entre a nebulosa mistura de motivos que obrigam milhões de pessoas a deixar as suas casas.

Na Síria, desde 2011, foram mortas mais de meio milhão de pessoas. Nove anos de conflito forçaram metade da população a fugir: 6,6 milhões de pessoas deslocaram-se dentro da Síria, mais de 5,6 milhões saíram do país. São hoje a maior população de refugiados do mundo. Quantos destes saíram devido à crise climática, não sabemos. O que sabemos é que essa fosse a razão, não teriam direito a um estatuto de refugiado.

Subscreve a newsletter

Escrutinamos sistemas de opressão e desigualdades e temos muito que partilhar contigo.