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DIREITOS LGBTI+
Linn da Quebrada: “A mulheridade no Brasil, hoje, significa resistência, significa força”
18 Outubro 2018
Chama-se Linna Pereira. Mas toda a gente a conhece como Linn da Quebrada, nome artístico. Tem 28 anos. É uma mulher trans, artista multimédia e ativista, voz de uma nova música brasileira, funk-manifesto que não pede licença. É “bixa travesty, nem ator, nem atriz, atroz. Performer e terrorista de género”, nas suas palavras. Desde que se ouviram as primeiras batidas de “Enviadescer”, primeiro single da sua fulgurante carreira, lançado em 2016, não parou de provocar e fazer pensar. “Pajubá”, de outubro do ano passado, editado graças a uma campanha de crowdfunding, é um desafio constante. Ao que julgamos saber dos outros e de nós. Às ideias feitas. Às certezas. À norma. Sobre o que é isto das categorias de género, de como nos devemos ou não comportar, sobre como pode ou não o nosso corpo ser.
Já foi – e ainda é – muitas pessoas, muitos corpos. Nasceu Lino, já foi Lara, hoje é Linna. Amanhã poderá ser outra.
Vou te contar a lenda da bicha esquisita Não sei se você acredita, ela não é feia (nem bonita) Mas eu vou te contar a lenda da bicha esquisita Não sei se você acredita, ela não é feia (nem bonita) Ela sempre desejou ter uma vida tão promissora Desobedeceu seu pai, sua mãe, o Estado, a professora Ela jogou tudo pro alto, deu a cara pra bater Pois pra ser livre e feliz tem que ralar o cu, se foder De boba ela só tem a cara e o jeito de andar Mas sabe que pra ter sucesso não basta apenas estudar Estudar, estudar, estudar sem parar Tão esperta essa bichona, não basta apenas estudar Fraca de fisionomia, muito mais que abusada Essa bicha é molotov, o bonde das rejeitada [2x] Eu tô bonita? (tá engraçada) Eu não tô bonita? (tá engraçada) Me arrumei tanto pra ser aplaudida mas até agora só deram risada Abandonada pelo pai, por sua tia foi criada Enquanto a mãe era empregada, alagoana arretada Faz das tripas o coração, lava roupa, louça e o chão Passa o dia cozinhando pra dondoca e patrão Eu fui expulsa da igreja (ela foi desassociada) Porque “uma podre maçã deixa as outras contaminada” Eu tinha tudo pra der certo e dei até o cu fazer bico Hoje, meu corpo, minhas regras, meus roteiros, minhas pregas Sou eu mesmo quem fabric0 [4x] Eu tô bonita? (tá engraçada) Eu não tô bonita? (tá engraçada) Me arrumei tanto pra ser aplaudida mas até agora só deram risada
A Lenda, Linn da Quebrada
Linn ressignifica o que é isto de ser-se homem ou mulher. Ou querer nenhuma destas duas categorias. “Há muitas mulheridades possíveis de se construir. Há muitas formas de se ser mulher e por muito tempo ser mulher esteve em função do homem”.
Não está mais.
“Nós somos as novas Evas, nós somos as filhas e netas das bruxas, nós somos aquelas que têm construído outras corporalidades, outras identidades, outras feminilidades, feminilidades viris, outras masculinidades também, masculinidades que não sejam nocivas.”
De noite pelas calçadas Andando de esquina em esquina Não é homem nem mulher É uma trava feminina Parou entre uns edifícios, mostrou todos os seus orifícios Ela é diva da sarjeta, o seu corpo é uma ocupação É favela, garagem, esgoto e pro seu desgosto Está sempre em desconstrução Nas ruas pelas surdinas é onde faz o seu salário Aluga o corpo a pobre, rico, endividado, milionário Não tem Deus Nem pátria amada Nem marido Nem patrão O medo aqui não faz parte do seu vil vocabulário Ela é tão singular Só se contenta com plurais Ela não quer pau Ela quer paz Seu segredo ignorado por todos até pelo espelho Seu segredo ignorado por todos até pelo espelho Mulher Mulher, mulher, mulher, mulher, mulher, mulher, mulher Mulher, mulher, mulher, mulher, mulher, mulher, mulher Mulher, mulher, mulher, mulher, mulher, mulher, mulher Mulher, mulher, mulher, mulher, mulher, mulher, mulher Nem sempre há um homem para uma mulher, mas há 10 mulheres para cada uma E uma mulher é sempre uma mulher Nem sempre há um homem para uma mulher, mas há 10 mulheres para cada uma E uma e mais uma e mais uma e mais uma e mais outra mulher E outra mulher (e outra mulher) E outra mulher (e outra mulher) E outra mulher (e outra mulher) E outra mulher (e outra mulher) É sempre uma mulher? É sempre uma mulher? É sempre uma mulher? É sempre uma mulher? Ela tem cara de mulher Ela tem corpo de mulher Ela tem jeito Tem bunda Tem peito E o pau de mulher! Afinal Ela é feita pra sangrar Pra entrar é só cuspir E se pagar ela dá para qualquer um Mas só se pagar, hein! Que ela dá, viu, para qualquer um Então eu, eu Bato palmas para as travestis que lutam para existir E a cada dia conquistar o seu direito de viver e brilhar Bato palmas para as travestis que lutam para existir E a cada dia batalhando conquistar o seu direito de Viver brilhar e arrasar Viver brilhar e arrasar Viver brilhar e arrasar Viver brilhar e arrasar Ela é amapô de carne osso, silicone industrial Navalha na boca Calcinha de fio dental Ela é amapô de carne osso, silicone industrial Navalha na boca Calcinha de fio dental Ela é amapô de carne osso, silicone industrial Navalha, navalha, valha Navalha, navalha, valha Navalha, navalha, valha Navalha, navalha, valha Navalha na boca E calcinha de fio dental Eu tô correndo de homem Homem que consome, só come e some Homem que consome, só come, fodeu e some
Mulher, Linn da Quebrada
Nesta revolução há um denominador comum: o fim do machismo, da misoginia e das masculinidades tóxicas, impregnadas de violência e autoridade. Que matam.
“A cada 19 horas um LGBT é barbaramente assassinado ou se suicida vítima da ‘LGBTfobia’, o que faz do Brasil o campeão mundial de crimes contra as minorias sexuais”, diz o Relatório 2017 do Grupo Gay da Bahia, a organização LGBTI+ de referência na contabilização deste tipo de dados, no Brasil. Embora seja difícil provar a afirmação em termos mundiais, por falta de dados credíveis para comparação, como explica a Agência Pública, os números não deixam de mostrar uma realidade tenebrosa.
Detalhando: “445 LGBT+ (lésbicas, gays, bissexuais e transexuais) morreram no Brasil, (incluindo-se três nacionais mortos no exterior), em 2017, vítimas da homotransfobia: 387 assassinatos e 58 suicídios. Nunca antes na história desse país registraram-se tantas mortes, nos 38 anos que o Grupo Gay da Bahia (GGB) coleta e divulga tais estatísticas. Um aumento de 30% em relação a 2016, quando registraram-se 343 mortes”. Este é o número mais aproximado a que se pode chegar e a organização revela que os dados podem estar subestimados, não havendo números oficiais definitivos a nível nacional. Segundo um estudo da Transgender Europe (TGEU), entre 2008 e 2016, o Brasil foi apontado como o país onde mais se mataram pessoas trans, em números absolutos – foram registradas 868 ocorrências nesse período, entre 66 países.
Está em curso uma luta de poder. “Nós temos ganhado território, nós temos estabelecido uma guerra, uma disputa. Disputa de linguagem, disputa de poder, de alternância de poder, nós temos ganhado território. E isso tem deixado eles com medo. Eles estão com medo, é óbvio. Eles têm perdido território, sempre foram homens e meninos mimados, acostumados a ter poder e a ter tudo em suas mãos, é óbvio que eles estariam com medo.”
Um facto histórico, que mostra como as pessoas trans, negras, da periferia reivindicam o seu lugar político e na política é a eleição de Erica Malunguinho da Silva (do PSOL – Partido Socialismo e Liberdade). É a primeira trans eleita para a Assembleia Legislativa de São Paulo [e não do Rio de Janeiro, como erradamente digo na entrevista], com 55.223 votos. Só este ano, houve pelo menos 53 candidaturas de pessoas trans, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil. Em 2014, concorreram cinco.
“É justamente por isso que vem a reação. E que vem toda essa forma, principalmente de se criar um mito em torno do Bolsonaro. Porque o Bolsonaro é um meme, ele é um mito, ele é a representação do poder e da branquitude e da masculinidade nociva no que diz respeito à tentativa de proteger o seu território. Mas o que me assusta não é o Bolsonaro, o que me assusta talvez sejam as pessoas que querem eleger o Bolsonaro”.
Esta terça-feira, 16, mais uma travesti foi morta no centro de São Paulo. Testemunhas dizem que o assassinato foi da autoria de apoiantes do candidato à presidência pelo Partido Social Liberal, que teriam gritado ‘com Bolsonaro presidente, a caça aos ‘veados’ vai ser legalizada’. Juntando-se às dezenas de ataques com motivação política, que nos últimos dias têm sido denunciados.
Baseado em carne viva e fatos reais É o sangue dos meus que escorre pelas marginais E vocês fazem tão pouco mais falam demais Fazem filhos iguais, assim como seus pais Tão normais e banais, em processos mentais Sem sistema digestivo lutam para manter vivo Morto, vivo, morto, vivo, morto, morto, morto, viva! Bomba pra caralho, bala de borracha, censura, fratura exposta Fatura da viatura, que não atura pobre preta revoltada Sem vergonha, sem justiça, tem medo de nós Não suporta a ameaça dessa raça Que pra sua desgraça a gente acende (a)ponta, mata a cobra, arranca o pau Tem fogo no rabo, passa, faz fumaça, faça chuca ou faça sol É uó, (u)ócio do comício em ofício que policia o comércio de lucros e loucos que aos poucos Arrancam o couro dos outros mais pretos que louros, os mouros Morenos, mulatos, pardos de papel passado presente futuro Mais que perfeito, em cima do muro, em baixo de murro No morro, na marra quem morre sou eu? Ou sou eu quem mata? Quem mata, quem multa, quem mata sou eu? Ou sou eu quem mata? Quem mata, quem multa, quem mata sou eu? Ou sou eu quem mata?
Bomba Pra Caralho, Linn da Quebrada
Em 2016, 4.645 mulheres foram assassinadas no Brasil – um total de 4,5 mulheres mortas por cada 100 mil brasileiras. A maioria das vítimas era negra. O Brasil mata 71% mais mulheres negras do que brancas. As informações são do Atlas da Violência 2018, do Instituto de Pesquisas Económicas Aplicadas e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, publicado em junho passado. Neste relatório, percebe-se também que a taxa de homicídio de mulheres negras foi de 5,3 para cada 100 mil negras; e de 3,1 para cada 100 mil brancas. Entre 2006 e 2016, os números de assassinato caíram 8% entre as mulheres brancas e aumentaram 15,4% entre as mulheres negras.
É preciso resistir, diz Linn: “Temos construído redes, entre nós. Temos nos ajudado, temos nos amado e temos construído redes psicológicas de apoio, redes de apoio emocional, redes de apoio material, redes de apoio económicas para nos manter vivas, em relações que não sejam nocivas a nós.”
Bicha estranha, louca, preta, da favela Quando ela tá passando todos riem da cara dela Mas, se liga macho Presta muita atenção Senta e observa a tua destruição Que eu sou uma bicha, louca, preta, favelada Quicando eu vou passar e ninguém mais vai dar risada Se tu for esperto, pode logo perceber Que eu já não tô pra brincadeira Eu vou botar é pra foder Ques bicha estranha, ensandecida Arrombada, pervertida Elas tomba, fecha, causa Elas é muita lacração Mas daqui eu não tô te ouvindo, boy Eu vou descer até o chão O chão O chão Chão, chão, chão, chão Bicha preTRÁ, TRÁ, TRÁ, TRÁ Bicha preTRÁ, TRÁ, TRÁ, TRÁ, TRÁ Bicha preTRÁ, TRÁ, TRÁ, TRÁ Bicha preTRÁ, TRÁ, TRÁ, TRÁ, TRÁ A minha pele preta, é meu manto de coragem Impulsiona o movimento Envaidece a viadagem Vai desce, desce, desce, desce Desce a viadagem Sempre borralheira com um quê de chinerela Eu saio de salto alto Maquiada na favela Mas, se liga macho Presta muita atenção Senta e observa a tua destruição Que eu sou uma bicha, louca, preta, favelada Quicando eu vou passar e ninguém mais vai dar risada Se tu for esperto, pode logo perceber Que eu já não tô pra brincadeira Eu vou botar é pra foder Ques bicha estranha, ensandecida Arrombada, pervertida Elas tomba, fecha, causa Elas é muita lacração Mas daqui eu não tô te ouvindo, boy Eu vou descer até o chão O chão O chão O chão, chão, chão, chão Bicha preTRÁ, TRÁ, TRÁ, TRÁ Bicha preTRÁ, TRÁ, TRÁ, TRÁ, TRÁ Bicha preTRÁ, TRÁ, TRÁ, TRÁ Bicha preTRÁ, TRÁ, TRÁ, TRÁ, TRÁ Sempre borralheira com um quê de chinérela Eu saio de salto alto Maquiada na favela Mas que pena, só agora viu, que bela aberração? É muito tarde, macho alfa Eu não sou pro teu bico Não
Bixa Preta, Linn da Quebrada
Linna é cara, corpo e alma de Bixa Travesty documentário realizado por Claudia Priscilla e Kiko Goifman, vencedor de um prémio Teddy, a distinção do Festival Internacional de Cinema de Berlim para produções que abordam temáticas LGBTI+. “Bixa Travesty” encerrou a edição 2018 do Festival Internacional de Cinema Queer de Lisboa e abriu a edição no Porto. Quando a entrevistamos, a 10 de outubro, encontramo-la e à sua equipa – Jup do Bairro, Pininga, Badsista – na Associação Cultural ZDB, no Bairro Alto, para um conversa aberta ao público.
Acompanhada por Jup, sua cara-metade em palco, tentavam responder à pergunta “A Canção é uma arma?”. Como cantaria José Mário Branco, em 1975, “tudo depende da bala / e da pontaria / tudo depende da raiva / e da alegria”. No caso de Linn, o alvo já foi atingido, como se ouve nos primeiros segundos do filme Bixa Travesty: “Eu quebrei a costela de Adão. Muito prazer, eu sou a nova Eva. Filha das travas. Obra das trevas”.