“Nascer para cuidar dos outros”, por Maria Almeida

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Passei a minha infância e adolescência rodeada de mulheres que me criaram, cuidaram e acompanharam até eu sair de casa dos meus pais, aos 18 anos. 

A Adélia viu-me crescer desde que nasci. Lembro-me do carinho que deu; da forma como se ria sempre que eu insistia que me contasse uma boa história para adormecer, daquelas que não estavam nos livros; e da paciência para lidar com as minhas birras de criança mimada, que insistia em fugir para o jardim. Vinha todos os dias acordar-me, às 7h, e adormecer-me, às 21h, completando o trajeto entre o seu quarto, ao lado da cozinha, e o meu, do outro lado da casa, junto a todos os outros, no piso de cima. Vivia connosco, acompanhava-nos nas férias e não tinha horário. Lembro-me do seu nome, não do apelido. Não sei de onde era, nem para onde foi depois de ter sido despedida. Sei o quanto me custou a sua ausência, e nem consigo imaginar o que lhe terá custado a ela deixar para trás uma família e uma criança de oito anos de quem cuidava como filha. Guardo uma coleção de fotografias em que ela aparece, quase sempre, ao meu lado.

A Palmira trabalhava em casa dos meus avós. Fazia a única sopa de que eu, os meus irmãos, e primos gostávamos. E por isso todos os domingos fazíamos a peregrinação até casa dos meus avós para o jantar de família e o devido abastecimento de sopa para a semana. Voltávamos com o carro carregado de tupperwares: a sopa da Palmira, e os panados e croquetes da Adelaide, a outra empregada que trabalhava lá em casa. Quando os meus pais iam para fora, já depois da Adélia ir embora, era com a Palmira que ficava. Chorei quando me disse que tinha de deixar de trabalhar porque tinha um problema grave nas costas, provavelmente causado pelo trabalho extenuante de limpar o chão da casa, de carregar pesos todos os dias, de cozinhar de pé horas e horas.

A Cristiana conheceu-me tinha eu nove anos. Ela era muito nova, tinha uns 16 ou 17 quando começou a trabalhar em casa dos meus pais. Criámos uma relação de cumplicidade. Ofereceu-me o meu primeiro cachecol do Futebol Clube do Porto, que ainda hoje levo para o Estádio do Dragão e que se tornou numa espécie de amuleto da sorte. Deixou o trabalho depois do divórcio dos meus pais, com a mudança de casa da minha mãe. 

Vivi com o privilégio de ser acompanhada por estas mulheres: Adélia, Palmira e Cristiana, empregadas domésticas e cuidadoras. Na minha infância e adolescência normalizei a ideia de que tinham nascido para cuidar dos outros a troco de teto e dinheiro. Não pensava nos sacrifícios que faziam para limpar uma casa que não era delas, alimentar uma família que não a sua, e cuidar de filhos que não eram seus. Desvalorizava os seus esforços, e as mazelas com que ficavam. Olhava para elas como família, mesmo sabendo que aquele laço podia ser quebrado a qualquer momento se o trabalho não fosse bem feito. Só ao crescer me apercebi do quão injusta e perversa era esta ideia de servitude, e olhei-a com vergonha.

Em março do ano passado, trouxe esta discussão para a mesa da patroa. Levei a minha mãe e sobrinha a Paredes de Coura para ver a peça de teatro Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua patroa, interpretada pela atriz e encenadora Sara Barros Leitão. No regresso ao Porto conversámos sobre a história das mulheres que criaram o primeiro Sindicato de Serviço Doméstico, refletimos sobre o seu trabalho e a sua luta. Falámos da Adélia, da Palmira, da Cristiana e de tantas outras mulheres com vidas semelhantes. 

Nenhuma de nós conhecia aquela história. Saí do teatro com vontade de a fazer chegar a mais pessoas. E é isso que, graças a uma sugestão dos meus camaradas de redação Margarida David Cardoso e Bernardo Afonso, vamos fazer no Fumaça. 

Estamos a trabalhar em parceria com a Cassandra, estrutura de criação artística que trouxe o Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua patroa aos palcos, numa reportagem de vários episódios sobre trabalho doméstico e a história do primeiro Sindicato de Serviço Doméstico em Portugal, criado na década de 1970. Esta reportagem fará parte de um trabalho maior sobre mulheres esquecidas, investigação que nos comprometemos a fazer num crowdfunding que organizámos em 2020 e que angariou 6,034€. 

Na passada sexta-feira, gravámos a primeira entrevista, com Carina Pereira, empregada doméstica no Marco de Canaveses. E, enquanto lês esta newsletter, é bem provável (mais hora menos hora) que eu, o Bernardo Afonso, e a Mafalda Araújo, socióloga que contribuiu para a investigação que deu origem à peça, estejamos a caminho de Mora, no Alentejo, para entrevistar Conceição Ramos, antiga dirigente sindical e co-fundadora do Sindicato de Serviço Doméstico. 

Em breve, trazemos-te mais novidades. Até lá, podes consultar esta página para acompanhar o progresso desta investigação. 

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