“A gente vai dissolvendo”, por Ricardo Esteves Ribeiro

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Olá.

Nos últimos anos entrevistei mais de 30 polícias. Conheci-os em manifestações organizadas por sindicatos, em protestos mais ou menos informais, em resposta a newsletters como esta, em redes sociais, por recomendação de outros elementos da PSP e da GNR, em cafés… De todos eles se poderia dizer algo diferente. Não só de onde vêm e há quanto tempo trabalham, mas também aquilo em que acreditam e como olham o mundo (teremos tempo de falar sobre eles na série que lançaremos nos próximos meses).

O que, por outro lado, pouco muda de uns para outros, é a resposta a uma pergunta que lancei a quase todos:

Ricardo Esteves Ribeiro: Quantas sessões de terapia com psicólogos é que tu tiveste desde que entraste na PSP?
Polícia 1: Nenhuma. […] Já tive testes psicotécnicos. Com psicólogo, nunca fui a nenhuma reunião. […]
Ricardo Esteves Ribeiro: Há quanto tempo é que és polícia?
Polícia 1: Sou há 15 anos.

Ricardo Esteves Ribeiro: Quantas sessões de psicoterapia é que tu tiveste desde que entraste para a PSP?
Polícia 2: Pela polícia, nada. Nenhuma, nunca tive nem nunca falei com nenhum psicólogo da polícia. […] Esse acompanhamento não há. 

Ricardo Esteves Ribeiro: Portanto, tu estiveste 15 anos na polícia sem nunca ter tido uma consulta de psicologia?
Polícia 3: E se calhar muitos, durante os 30 anos que foram polícias, nunca tiveram nenhuma.

Ricardo Esteves Ribeiro: Não há consultas de rotina psicológicas?
Polícia 4: Não. Não. Não. Nenhuma consulta de rotina.

Ricardo Esteves Ribeiro: E quantas sessões de terapia com psicólogos é que teve desde que entrou na PSP?
Polícia 5: Nenhuma. […]
Ricardo Esteves Ribeiro: Ou seja, não há rotina de acompanhamento psicológico? 
Polícia 5: Não, não, não.
Ricardo Esteves Ribeiro: Deveria haver?
Polícia 5: Deveria sim, deveria haver. Eu acho que é um problema que se varre para debaixo do tapete. 

Uma das respostas ficou-me particularmente gravada na memória. Pedro Carmo, na PSP há quase 30 anos, hoje presidente da Organização Sindical da Polícia, um dos sindicatos que representa funcionários da instituição, contava-me que uma das coisas que ele e os seus colegas vão aprendendo, com a experiência, “é a dissolver na mente aquilo que [os] perturba”. “A gente vai dissolvendo. Elas ficam cá, mas a gente vai dissolvendo e esquece as datas, esquece os episódios, e tenta, de alguma forma, andar para a frente. […] Só fica na polícia quem tem uma pancada. Porque não se consegue aguentar isto de outra forma. […] Eu vou transmutando. Acabo de ir à ocorrência, aquilo chateou-me imenso, perturbou-me imenso, é nojento, seja o que for, eu faço a transmutação. Passado um bocado, já estamos a contar anedotas.”

Segundo a PSP, alguns polícias têm lá consultas: os 27 psicólogos que emprega deram 13.801 no ano passado. Dizem não ter dados sobre o número de polícias atendidos mas, feitas as contas, mesmo que cada paciente tivesse apenas quatro sessões, isto cobria só 17% do efetivo da PSP. Talvez os restantes consigam, em certas ocasiões, de certa maneira “dissolver” o impacto que o policiamento tem neles. Talvez consigam “transmutar”, esquecer por momentos o que sentiram, mas o impacto do policiamento na saúde de polícias é real. Lúcia Pais investiga isso mesmo (entre outros temas) há mais de uma década. Ao longo desse tempo, não se surpreenderia de já ter entrevistado cerca de 200 agentes. 

Em outubro de 2022, a psicóloga clínica e professora no Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna apresentou os resultados preliminares de uma investigação onde entrevistou em profundidade 62 polícias sobre as consequências do policiamento para a sua própria saúde. Quando questionados sobre os impactos psicológicos da profissão, polícias das equipas de combate à violência doméstica apontaram exaustão, sofrimento emocional, flashbacks e “sentimentos negativos ao assumir a posição da vítima”. Os polícias do Corpo de Intervenção disseram sentir irritabilidade, inutilidade e frieza emocional. Polícias das chamadas Zonas Urbanas Sensíveis (uma designação estatal de segurança para definir locais de policiamento prioritário, de que iremos falar na série) disseram sentir também frieza emocional, para além de distúrbios do sono, medo e hipervigilância. Polícias das esquadras de turismo falaram em agitação, hipervigilância e frieza emocional. Todos disseram sofrer sentimentos de inquietação e preocupação

“Vocês imaginem o que é uma pessoa do Corpo de Intervenção que é chamada a uma ocorrência”, diz Lúcia Pais. “Portanto, vai uma equipa e vai com a adrenalina! Caramba, aquilo vai aumentando, aumentando! As pessoas estão completamente ativadas e focadas naquilo para que foram chamadas. E depois chegam lá e a coisa já se resolveu. […] Para onde é que vai a adrenalina? Para onde é que vai tudo aquilo? […] Imagine viver com uma pessoa que se sente de alguma maneira inútil e que está permanentemente com níveis de irritabilidade imensos, que salta com qualquer coisa que lhe seja dita, que está sistematicamente com uma impressão de frustração e de menos valia. O que é viver com uma pessoa nestas condições? E se houver crianças pequenas? Difícil, não é? É uma pessoa que está triste, que se sente desvaliosa, que muito provavelmente tem pouca perspetiva para diante. E isso é uma coisa que a mim me assusta enquanto clínica: qual é o projeto que esta pessoa tem para si e para os seus? Se não há projeto, eu estou aqui a fazer o quê?”

Segundo dados recolhidos por Miguel Oliveira Rodrigues (ele próprio polícia) para o livro “Os Polícias Não Choram. Toda a Verdade: Visão Multidisciplinar” e completados por nós, desde 2000, mais de 170 polícias da GNR ou PSP decidiram terminar com a sua vida, o que faz com que a taxa de suicídio nas forças de segurança seja sensilvemente o dobro da da população geral. 

Mas as consequências não se esgotam na saúde mental de quem pratica a profissão — impactam também a segurança de quem, supostamente, deveria ver na polícia o seu porto seguro. Estes níveis de irritabilidade, frustração, hipervigilância e medo de que polícias se queixam fazem com que, na opinião de Lúcia Pais, se esteja mais suscetível a praticar violência extralegal: “Porque de alguma maneira é por essa via que ocorre a naturalização da violência, não é? Quer dizer, se essa resposta tende a repetir-se, e se não há consequências outras relativamente a esse estilo de resposta, ela vai-se instalando e atravessa todos os domínios da vida da pessoa. Isso está escrito.” É cuidadosa, no entanto, ao ligar a falta de apoio psicológico a casos documentados de brutalidade policial: “Se calhar é um bocadinho um passo maior do que a perna.” Elabora: “Isto não quer dizer de todo que estes profissionais não cumprem as suas funções de forma absolutamente adequada. Aquilo que está em causa é mantermos esses profissionais com boas condições de saúde física e psicológica para não apenas continuarem a exercer adequadamente a sua profissão, mas também terem uma vida para eles próprios e para as suas famílias prazerosa.”

Fica uma pergunta: o que se faz com uma profissão que faz mal à saúde? Trata-se? Ou termina-se com ela? 

Esta entrevista faz parte da investigação sobre o policiamento de bairros guetizados, as pessoas que ali habitam e os polícias que lá trabalham que o Fumaça prepara desde 2018 em parceria com a revista digital de jornalismo narrativo Divergente. A escrita da série narrativa vai a meio. Podes saber mais aqui.

Até já,
Ricardo Esteves Ribeiro

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