“Por vezes chovo”, por Cláudia R. Sampaio

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Foi o dia em que quase morri. Não fui eu que quis morrer, o mundo é que estava a matar-me.

Foi como se tivesse engolido o universo, o sol entrando-me por entre as pernas, uma explosão no meu ventre petrificado. Eu, deitada em esplendor, vómito de coroa e manto aveludado. Eu, rainha dos químicos, espumando pela boca, agraciada pelo vislumbre do fim, sendo salva, resgatada do meu Olimpo, entregue à desgraça da medicina. Eu, flor trágica da consciência, a ser regada, numa cama imaculada, animada pelas vozes dos médicos que gozavam comigo. Miúdas parvas, diziam eles, mimadas, diziam eles, miúdas que deviam arranjar uma ocupação, diziam eles, que só querem chamar a atenção, diziam eles. Obrigada por me devolverem à minha inutilidade.

Depois voltei a ser eu, uma presença que estica e encolhe como um elástico, à mercê das horas da minha existência. Esta forma de mulher ressuscitada, a fumar, olhos cravados no tempo-vácuo. Sei precisamente o espaço onde estou a existir, posso ser tudo, o mundo pode até voltar a matar-me, sim, estou aqui. Sou Deus na forma escura desta sala, sou o pensamento esquecido da solidão, o queixo abençoado da serotonina.

E o meu corpo, bloco escancarado de confusão asmática, caverna de uma mente às voltas na tempestade, arrastando-se para mais um milagre. Vou e volto, desfaço-me a sorrir, vou desaparecendo a sorrir. Já de nada me serve ter pena, estou nuvem esporádica, por vezes chovo, um sopro de fecundidade perdida.

Aplaudo o mistério de tudo, vibro com a falha por entre os dentes, aclamo a memória do que não fui. Salvé existência que não controlo! Amo o desconsolo de me fazeres perdida, à espera do desfecho que às vezes arremessam os anjos.

Contudo, prossigo nesta crueza como se me descaísse a alma, braços levados ao colo, as coisas vão cabendo nas intermitências da esperança. Também eu. No fim não haverá tristeza, só rumo, a minha lucidez é mãe reluzindo em astro.

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