“Polpómetro organizacional”, por Nuno Viegas

Olá.

Publicar o balancete de uma organização está para a transparência organizacional como a Kima de maracujá está para a fruta. A certo ponto, um lembra o outro. Mas ninguém pode, em boa consciência, afirmar que a Kima tem de natural mais do que os ares. Nesta newsletter, dedicamo-nos à polpa organizacional gerada pelo último retiro anual do Fumaça. Durante uma semana de dezembro, a redação reuniu-se em Peso da Régua para avaliar o ano que passou e preparar o que agora começa. Em métricas de startup, tomámos 122 decisões (algumas minúsculas, anotadas só para evitar qualquer dispersão de responsabilidade). Demasiado para de tudo te dar conta, portanto, faço-te resumo de sucessivas atas.

Na reta final de cada série que produzimos, há um momento de construção de uma bolha. É aí que estamos para a nossa investigação começada há seis anos sobre policiamento, Fronteira do Medo. Com consentimento, tirámos ao Ricardo Esteves Ribeiro, que vai a mais de meio da escrita dessa série, todas as funções que não escrevê-la. Está numa redoma laboral, para publicarmos este ano. A Maria Almeida deixa também o trabalho de dia-a-dia que fazia gerindo redes sociais, newsletters e emails da Comunidade, para começar a escrever uma série sobre os direitos laborais de empregadas domésticas, o primeiro dos trabalhos sobre o apagamento histórico de mulheres. A Rafaela Cortez, freelancer, está já dedicada há alguns meses a escrever a nossa série sobre a indústria da ajuda na Palestina. Já escrita, a passar por sucessivas edições de grupo, está a nossa última peça sobre saúde e doença mental por uns tempos, dedicada ao sofrimento ético de profissionais de saúde.

Ainda em reportagem, eu e a Margarida David Cardoso vamos no primeiro semestre do ano procurar fechar pontas soltas de investigação e (essencialmente) transcrever mais de uma centena de horas de áudio para começar a escrita da peça sobre o sistema prisional português, que leva três anos de pesquisa. Lá para o fim do ano, a equipa quer começar a investigar o Programa Especial de Realojamento, a última peça a receber apoio no nosso crowdfunding de 2020.

Revendo processos editoriais, depois de construirmos no ano passado um sistema saudavelmente paranoico de proteção de fontes anónimas, procurámos encontrar formas de diminuir o recurso ao anonimato. Tem sido um desafio, em particular, ao cobrir as polícias (onde é obrigatória autorização hierárquica para falar a jornalistas) e as prisões (cujos funcionários afirmam, por regra, temer represálias se prestarem declarações). Para proteger a identidade destas fontes, mas também para guardar documentos sensíveis e garantir que a redação se consegue defender de espionagem estatal e ações judiciais para suprimir o trabalho jornalístico, vamos no próximo ano implementar novas, amplas medidas de segurança digital. Perdoar-me-às que não detalhe esses sistemas.

Decidimos pela primeira vez orçamentar fundos para pagar tribunais e advogados, permitindo-nos mover intimações judiciais contra instituições públicas que desrespeitam as suas obrigações de transparência. No ano passado, ultrapassando o orçamento previsto, tínhamos já processado a Polícia de Segurança Pública e a Guarda Nacional Republicana para obter documentos sob o regime de segredo de estado. Passámos, além disso, algum tempo a pensar os cuidados a ter ao divulgar outros documentos classificados por órgãos de polícia criminal.

Publicamente, aprofundaremos uma estratégia de decrescimento que leva alguns anos. No feed de podcasts do Fumaça, procuraremos republicar trabalhos narrativos antigos e lançar apenas entrevistas gravadas para a produção de séries futuras. O Fumaça não se organiza em temporadas, mas hoje trabalha em ciclos de investigação de anos (próximos das lógicas de criação de documentário) para construir séries e reportagens contextualizadas, com boa produção sonora e qualidade de escrita. Este jornalismo de investigação tornado podcast narrativo leva meses, e meses, e meses, e é tão mais lento quantos mais conteúdos soltos, entrevistas, debates, nos dedicássemos a produzir. Vamos continuar concentrados. Nessa linha, evitamos ir moderar debates ou fazer entrevistas ao vivo, como foi hábito em tempos. Em pessoa, tentaremos veicular o nosso trabalho essencialmente através de sessões coletivas de escuta (português para listening parties). Investimos num sistema de escuta simultânea, presencial, com auscultadores sem fios, para trinta pessoas, com volumes ajustáveis, boa qualidade de som e sem interferências, que permite que nos sentemos numa sala ou num jardim, a ouvir um episódio e discutir o que aí se expõe. No lançamento de Desassossego, experimentámos por duas vezes o formato, ainda sem o equipamento, e tivemos uma linda experiência de conversa e desafio. (Se tiveres um espaço, evento ou festival, e gostasses de nos receber para uma sessão deste género, escrevo-nos.)

Vem aí outro grande passo: implementarmos um programa de gestão automatizada das contribuições mensais recorrentes da Comunidade Fumaça, desenvolvido pela redação independente do The Bristol Cable, em parceria com o Correctiv. Até aqui o processo era largamente manual, ocupando uma quantidade desproporcional de tempo à equipa integrar cada pessoa que nos escolhia doar cinco euros. Ganhamos tempo para outras experiências, incluindo uma nova campanha de incentivo à republicação do Fumaça (diz à tua rádio local que pode transmitir as nossas peças de graça!), criar uma quantidade limitada de merchandising físico (concluindo um antigo, e particularmente aceso, debate na redação), pensar melhores políticas de acessibilidade às nossas publicações, definir uma política ética de seleção de materiais promocionais, e refletir sobre como ter processos de recrutamento mais diversos.

Aproveitando o raro evento que é ter a totalidade da redação junta numa sala com tempo para discutir, aprovámos uma mudança cirúrgica ao nosso Estatuto Editorial, introduzindo no ponto sexto a noção de que jornalistas são jornalistas durante o seu horário de trabalho e de resto livres para intervir no mundo, pelo associativismo, ativismo, ou o que mais desejem. Formulámos sumariamente a ideia como “quem [o Fumaça] emprega, é livre de, fora de funções, manter atividade política”. Também nesse dia fizemos, pela primeira vez, uso da liberdade cimentada no estatuto de o Fumaça “tomar posições políticas coletivas em matérias consensuais”, aprovando uma posição editorial conjunta em condenação da cumplicidade do Governo português com o genocídio das pessoas palestinianas.

Cada uma das 122 decisões deste retiro desemboca na negociação do orçamento anual do Fumaça. Todos os anos nos vamos aproximando do custo real de produzir este tipo de jornalismo, descobrindo as estruturas que nos faltam estabelecer, as necessidades que surgem a quem constrói uma redação fora dos grandes grupos económicos. O aumento expectável de custos para o próximo ano reflete o regresso da redação permanente do Fumaça a uma equipa de sete pessoas a tempo inteiro e duas a tempo parcial (durante grande parte do último ano, tivemos uma pessoa a menos), os custos de implementação do software de gestão de contribuições, alocações para custas judiciais, a subida de várias despesas fixas (programas de edição, contabilidade, renda), uma atualização de 6% dos vencimentos de pessoas trabalhadoras (procuramos ter aumentos anuais, na longa caminhada até que uma redação sediada em Lisboa pague a quem para esta trabalha um ordenado que permita cobrir uma renda na capital e não ter medo de escolher ter filhos), e ainda os custos excecionais de execução do do The Journalism Value Project. Não prevemos investimentos relevantes em equipamento, ou trabalho com jornalistas freelancers para lá da execução de projetos em curso. Podes ler aqui o orçamento completo, num valor total de 285 mil euros.

A execução de 2023 ainda não veio fechada da contabilidade, mas, mais ponto percentual, menos ponto percentual, no último ano, pela primeira vez, as doações mensais recorrentes da Comunidade Fumaça cobriram essencialmente metade de todos os custos da redação ao longo de 12 meses. É um privilégio monumental no jornalismo independente ter este apoio financeiro constante, que nos permite fazer jornalismo ao ritmo a que pedem as histórias e não os anunciantes, garantir os direitos laborais de quem empregamos, e saber que teremos dinheiro no banco até ao final do ano sem ter de ir caçar mais bolsas filantrópicas. Neste mês de janeiro, com este orçamento, 44% das despesas da redação do Fumaça são pagas pelas doações mensais de uma Comunidade de 1700 pessoas, de que tu já fazes parte (obrigado!), ou a que te podes juntar agora mesmo para ajudar a construir jornalismo lento, com contexto, edição, verificação de factos, e de acesso livre, porque estar informado não deve ser um direito só de quem pode pagar para passar uma paywall.

Até já,

Nuno Viegas

Subscreve a newsletter

Escrutinamos sistemas de opressão e desigualdades e temos muito que partilhar contigo.