Urbanismo

Patrícia Santos Pedrosa: “As cidades têm que ser diversas e conscientes da diversidade”


“(…) Vocês sabem lá o que é pensar duas vezes se vamos mesmo sair de mini-saia. Porque nos vão despir com o olhar, porque vão mandar bocas na escola ou no trabalho, porque vais passar por uma obra e ter que ouvir brejeirice.

Vocês sabem lá o que é atravessar a rua para não se cruzarem com um punhado de homens que vai de certeza dizer qualquer coisa, sabem lá o que é perceber, sem ver, que os olhos ficaram colados no teu rabo e ouvir o que não se diz a uma desconhecida.

Vocês sabem lá o que é ter medo de andar à noite sozinha. Levar a chave na mão, estudar um andar rápido mas decidido, que não mostre medo. Não olhar para trás, ter receio de olhar para trás. Ouvir passos e o coração acelerar. Apurar a audição, continuar.

Vocês sabem lá o que é entrar à noite num transporte público e procurar uma mulher para nos sentarmos à beira dela. Ter medo de encontrar uma carruagem vazia. Rezar para que vão sempre duas, três, quatro pessoas até à paragem em que saímos (…)”

A citação é parte de uma publicação que a jornalista Bárbara Baldaia escreveu na sua página de Facebook, a 6 de outubro passado. Neste testemunho pessoal, ilustra-se de forma clara a violência de género vivida diariamente pelas mulheres nos espaços urbanos.

Andam menos a pé que os homens e não é porque as pernas lhes falham. As cidades continuam a ser “pensadas, planeadas, projetadas, do ponto de vista do homem branco [de] classe média”, diz-nos a arquiteta Patrícia Santos Pedrosa. Embora sejam lugares multiculturais, habitados por pessoas de diferentes classes, credos, raças, orientações sexuais, para a investigadora, a arquitetura e o planeamento urbano fazem-se, contudo, a partir desse ponto de vista único, que determina o desenho e a construção dos espaços públicos. O resultado é uma urbe que não serve toda gente. E onde não manda toda a gente. 

Há sub-representação feminina no poder político. Apesar de denunciar a falta de dados relativamente à representação no poder local, a nível global, a UN Women – entidade da Organização das Nações Unidas dedicada à promoção da igualdade de género e ao empoderamento das mulheres – revelava que, em junho de 2016, apenas 22,8% de parlamentares no mundo eram do género feminino.

Se é verdade que as abordagens às questões de género são, por norma, sociológicas, devemos olhá-las, também, à luz da arquitetura e do planeamento urbano, já que estes dois mantêm uma relação directa com a forma como pensamos a cidade e usamos o espaço público. A forma que a cidade toma não influencia, só, as questões de género. Decide, também, a universalidade – ou não – ao seu acesso. Falta, pois, que a organização dos espaços reflita a multiplicidade dos olhares e das vivências que ocupam as urbes. Falta, pois, que as cidades sejam desenhadas para todas as pessoas que as ocupam, que as visitam, que nelas trabalham e delas fazem casa.

Um lugar escuro convoca um sentimento de insegurança e potencia a violência de género. O mesmo se passa com uma rua onde ninguém passa. Mas um passeio inadaptado dificulta o acesso a pessoas idosas, invisuais, ao carrinho de bebé, com mobilidade reduzida. Da mesma forma, conceder demasiado espaço ao automóvel privado rouba a possibilidade de outras formas de mobilidade, menos exigentes ao nível da ocupação do espaço público e, na maioria das vezes, mais sustentáveis.

A arquitetura e o planeamento urbano podem – e devem – desempenhar um papel de importe na idealização dos nossos lugares comuns. Se, na sociedade, o machismo é estrutural, sistémico, não é difícil imaginar que esteja, também, presente no nosso modo de construir e fazer cidade. Sem que nos demos conta da multitude de pessoas e funções – sem termos todas estas dimensões em consideração -, a cidade não será construída para toda a gente.

Patrícia Santos Pedrosa é mãe, feminista, investigadora, arquiteta, professora na Universidade da Beira Interior e fundadora da Associação Mulheres na Arquitectura. Nesta entrevista, falou-nos da importância da arquitetura no processo de garantir o direito à cidade e à mobilidade e de como o modo de construção e organização dos espaços contribui para a diminuição da violência de género e a inclusividade do espaço urbano.

Se a cidade de hoje é pensada maioritariamente por homens, será que no futuro é possível imaginar uma cidade feminista? Fará isto sentido? Como será a cidade co-construída e co-participada?

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