“Casas para quem?” por Margarida David Cardoso

Este texto foi lançado originalmente na nossa newsletter. Se quiseres receber estas crónicas, recomendações de reportagens, podcasts e filmes no teu email, subscreve aqui.

Sempre tivemos mais casas do que famílias, dizem os Censos. Em 50 anos, a disponibilidade de casas não acompanhou o crescimento da população: cresceu muito acima disso. Enquanto os residentes aumentaram cerca de 20% desde 1970, o número de alojamentos familiares mais do que duplicou. Mas mesmo em 1970, quando não chegava a 3% a fatia de alojamentos para residência secundária ou uso sazonal, a percentagem de casas vagas (quase 14%) ilustrava o desajuste. Dois terços delas estavam fora do mercado. Tanta casa sem gente, tanta gente sem casa foi um pregão robustecido pelo tempo: em 2021, eram 12% os alojamentos familiares vagos, metade não disponíveis para venda nem arrendamento (375 118). Nessas contas, já não entram os alojamentos locais que, nos últimos censos, o INE retirou do bolo de “alojamentos familiares clássicos” por lá, de facto, não morar gente

Não se explica o desencontro dos custos de ter uma casa com a capacidade de a suportar só com o impacto do alojamento local no aumento dos preços, com o processo de gentrificação associado. O problema tem mais geografias: não é exclusivo das áreas metropolitanas. Mas, em cidades como Lisboa não há como não ver as enormes bolsas de alojamento turístico a ajudar a secar a oferta, despejar moradores e reduzir as tipologias. A vereadora lisboeta do urbanismo, Joana Almeida, reconheceu recentemente à Renascença que há mais casas para turismo do que para habitar no centro histórico da cidade. Cerca de 70% da resposta turística em Lisboa são alojamentos locais – seriam precisos mais de 200 hotéis para acomodar o mesmo número de camas.

É pela dimensão do problema que um ​​movimento de habitantes de Lisboa colocou o alojamento local no centro de um pedido de referendo local pelo direito a habitar a cidade. O Movimento Referendo pela Habitação quer levar Lisboa a referendar a existência de alojamentos locais nos imóveis destinados à habitação. Anda a recolher assinaturas e, se chegar às 5000, levará a proposta a votação na assembleia municipal. Propõe duas perguntas: “Concorda em alterar o Regulamento Municipal do Alojamento Local no sentido de a Câmara Municipal de Lisboa, no prazo de 180 dias, ordenar o cancelamento dos alojamentos locais registados em imóveis destinados a habitação? Concorda em alterar o Regulamento Municipal do Alojamento Local para que deixem de ser permitidos alojamentos locais em imóveis destinados a habitação?”

Além de querer travar o alojamento local – para que “deixe de ter lugar em casas onde poderíamos morar” –, o movimento procura organizar “quem reclama o direito a habitar a cidade”. Apresenta-se como apartidário, autofinanciado, gerido em assembleias, grupos de trabalho e grupos de bairro. É, por norma, uma voz coletiva. Por isso, quando quisemos convidar representantes do movimento a participar num Ask Me Anything Fumaça, sabíamos que viriam pelo menos duas. Na próxima quinta-feira, dia 22 de junho, pelas 21h, conversamos com elas: Ana Gago e Raquel Serdoura. Ana, ex-residente de Alfama, está a fazer doutoramento em Geografia; Raquel é, por autodefinição, “residente da Graça por sorte”, estudante de pós-graduação em Direitos Humanos e trabalhadora numa loja cujos clientes são maioritariamente turistas. Porque é o alojamento local alvo desta iniciativa cidadã? Deve ser o foco único da luta pela habitação digna? É possível, de facto, discutir a sua extinção tal como hoje existe?

O Ask Me Anything Fumaça é uma conversa online, via Zoom, onde as pessoas da Comunidade Fumaça colocam as suas perguntas e discutem com especialistas. Se tiveres uma contribuição mensal ativa, vais receber no email o link para esta conversa. Se ainda não fazes parte, considera juntar-te em www.fumaca.pt/contribuir.

Subscreve a newsletter

Escrutinamos sistemas de opressão e desigualdades e temos muito que partilhar contigo.