mobilidade e dependência automóvel

David Vale: “O problema urbanístico é de espaço. Não há espaço para estacionar os carros”

Em 2016, entravam todos os dias em Lisboa 370 mil automóveis, que se juntavam aos 160 mil dos residentes da cidade. Mais de meio milhão de veículos. No Porto, a situação não é muito diferente. “Não há espaço” para todos – di-lo David Vale, professor na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa e especialista em mobilidade e planeamento urbano. Este problema torna-se ainda mais evidente quando se observa a ineficiência associada à ocupação do espaço público por parte do automóvel particular. João Pedro Matos Fernandes, ministro do Ambiente, colocava o dedo na ferida, em 2017: “Os carros de cada um de nós estão parados 92% do tempo e, por isso, não podemos continuar a desenhar as cidades e os centros urbanos a pensar no automóvel como rei.”

A dispersão urbana em torno das duas grandes áreas metropolitanas de Portugal – Porto e Lisboa – não facilita, mas a rede rodoviária promove a deslocação em veículos particulares. Ao mesmo tempo, a realidade do serviço de transportes públicos não parece acompanhar os anúncios do governo. As linhas urbanas de comboio de Cascais e de Sintra, que fazem a ligação ao centro de Lisboa, ganham passageiros mas perdem oferta.

Tanto no Porto como em Lisboa as deslocações são feitas maioritariamente de carro. Mas o conforto do automóvel particular não combina com a finitude do espaço nos centros urbanos e, pior, atropela o interesse comum. O espaço que os carros ocupam não está, claro, disponível para usufruto de todos. É, somente, de alguns – daqueles que têm carro.

Faltará democratizar a distribuição do espaço público? Francisco Cárdenas, responsável pelo planeamento e programação da Agência de Ecologia Urbana de Barcelona, considerava que sim, já há oito anos: “Na maioria das cidades médias e grandes, no Sul da Europa, cerca de 70% do espaço público é para o veículo privado. É preciso alterar isto. A dependência do veículo privado é a grande perversão das cidades actuais.” E não são poucos os exemplos de cidades que restringem o acesso automóvel e que fazem por diminuir o impacto do carro ao nível da ocupação do espaço público. Aqui ao lado, em Madrid, faz-se isso, assim como em Barcelona, onde os carros são obrigados a dar voltas maiores para desincentivar o seu uso, privilegiando os transportes coletivos, mas também  andar a pé e de bicicleta – os chamados modos suaves. Em Oslo, a estratégia para retirar os carros do centro da cidade passa por eliminar progressivamente lugares de estacionamento. Como alternativa, instalam-se parqueamentos destinados a bicicletas.

A verdade é que Portugal tem as quartas melhores estradas da Europa, mas a terceira pior ferrovia. Para David Vale, “há toda uma cultura que beneficia o automóvel” e são as melhores condições de circulação as responsáveis por atrair mais tráfego. “É aquilo a que chamamos procura induzida”, conta, em entrevista ao Fumaça. O problema começa logo ao nível do próprio desenho e distribuição do espaço. O especialista considera que o carro “não é um meio de transporte universal”.  E se o meio urbano “está desenhado para o automóvel”, então “há muita gente excluída”.

Um pouco por toda a Europa, pedonalizam-se os centros históricos e restringe-se o acesso automóvel, ao mesmo tempo que se aposta no transporte público e se promovem os modos suaves. Por cá, a aposta ainda é tímida. Em Lisboa, a Zona de Emissões Reduzidas (ZER) foi implementada em 2011 para impedir a entrada dos veículos mais poluentes. Mas um artigo de maio deste ano d’O Corvo revelava que nos últimos dois anos “ninguém terá sido multado”. Faltará fiscalização. Faltará, também, vontade política? Ou será que, por cá, podemos continuar a pensar a cidade para o automóvel? Noutros tempos, nos Países Baixos, também as cidades foram pertença dos automóveis. Noutros tempos.

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