“Um sinal de rutura do sistema”, por Margarida David Cardoso

[Aqui vão algumas generalizações abusivas em prol da clareza.] O jornalismo, em traços gerais, perdeu tempo, memória, contexto, e alguma imaginação. Tornou-se mais uniforme, imediatista e pequeno. José Pacheco Pereira fez um retrato nestas linhas no programa É ou Não é, da RTP, na semana passada, que acredito que seja pacífico, se não até consensual. Não é alheio à tendência para a cobertura em espelho de uma mesma agenda, mais ditada por instituições do que por iniciativa das redações; diretos em excesso, vazios de interesse público. Há dificuldade em contrariar discursos de poder (ou a contradição tende para a argumentação frágil). Comentadores e analistas têm rédea livre de contraditório ou verificação de factos. E o jornalismo rápido tem, por definição, cada vez menos densidade, investigação e rasgo.

Pensar nestes termos é útil à autocrítica e às discussões sobre a ética da profissão. Mas acho impossível fazê-lo sem primeiro considerar o modelo de negócio precarizante das empresas que gerem as redações e a erosão dos direitos laborais de quem lá trabalha. Não sei que acessos de criatividade se podem exigir a uma jornalista com 20 anos de profissão, especializada às expensas próprias, que leva 1000 euros para casa ao fim do mês, e que vê diariamente o seu valor profissional indexado a um ecrã de medição de audiência e clicks atualizado ao segundo. Ontem, trabalhadores da TSF cumpriram 24 horas de greve – a primeira nos 35 anos da rádio –, reivindicando, entre outras questões, a efetivação de aumentos salariais propostos pela administração, que (ainda que mais baixos do que as exigências da redação) acabaram por ser aceites, mas nunca aplicados.

A discussão sobre a profissão dá muitas voltas, mas tarda em debruçar-se sobre a necessidade de revolucionar o modelo de sustentabilidade do jornalismo. Não sabemos como tê-la sem pensar numa profunda remodelação do sistema: o fim dos falsos recibos verdes e dos salários indignos, incapazes de contrariar a saída de jornalistas ao fim de uma ou duas décadas para cargos de assessoria ou comunicação; o fim da crença de que este é um problema de gestão, com culpa partilhada entre jornalistas e leitores, que se salva à custa de mais conteúdos, mais rápidos, apenas acessíveis à curta fatia da população que pode e escolhe pagar por uma ou duas assinaturas. Isto é uma repetição do que dissemos muito melhor em 2019, numa conferência sobre financiamento dos media: precisamos de uma revolução para garantir a sustentabilidade do jornalismo e não para salvar o negócio dos média.

Não vai ser o Estado a resolver sozinho este problema, mas tem que fazer parte da solução. Deve ter a obrigação legislada de ser radicalmente transparente. Mas, em 2019, na mesma conferência, os diretores de grandes órgãos presentes rejeitaram-no, por desconfiarem demasiado dos riscos de influência. Não consigo encontrar motivos para desconfiar mais de um governo do que de grandes empresas de média opacas, às quais obrigações de transparência, de gestão democrática, ou de prestação de contas não se colocam da mesma forma, ou até de forma nenhuma. Também o mesmo risco que se corre com uma autarquia se pode aplicar a uma empresa privada local. Com que argumentos se defende que privados têm menos interesses do que o Estado?

Uma empresa privada com tamanho suficiente para deter um grupo de comunicação social não é menos poder do que um órgão de soberania. Se uma maioria das redações não dão lucro, o investimento não se faz certamente pelo retorno financeiro, mas pela sua tradução em poder. Daniel Oliveira, jornalista e comentador político, chama-lhe mecenato ideológico. E, por coerência, ou achamos que ele não existe – e então temos poucos motivos para desconfiar do Estado –, ou reconhecemos que ele existe e criamos para o Estado, para as empresas e para todos os financiadores de jornalismo mecanismos de transparência radicais que protejam as redações e jornalistas de quaisquer tentativas de interferência editorial. Com base nisto, o jornalismo terá mais argumentos para trabalhar a confiança do público, desenvolver a literacia mediática (demonstrando como é que a máquina funciona), e, em última análise, atiçar a crítica das próprias jornalistas para participarem no rumo de financiamento dos seus próprios locais de trabalho.

Acreditamos que é essencial um programa de bolsas públicas de apoio às estruturas jornalísticas sem fins lucrativos, e de bolsas de apoio à investigação jornalística individual, para freelancers e profissionais de grandes redações. É urgente diversificar fontes de rendimento que não perpetuem as lógicas precarizantes que nos trouxeram ao lugar onde estamos e abram o jornalismo a toda a gente. São precisos incentivos financeiros à contratação de jornalistas com vínculos de trabalho não precários; linhas de crédito ou apoios a fundo perdido para a criação de novas redações independentes e para a transição de já existentes para modelos sem fins lucrativos, com estatuto de utilidade pública. Precisamos de uma discussão séria sobre a lei de mecenato, em linha direta com fundações, para o financiamento cego ao jornalismo. Precisamos de autorregulação forte e de uma Entidade Reguladora da Comunicação Social alerta e crítica, não só da deontologia da profissão, como das condições laborais das redações.

À nossa volta (uma amostra fechada numa bolha, claro), é impressionante o número de jornalistas que abandonam a profissão no momento em que os anos de espera superam qualquer expectativa de que as condições de trabalho melhorem (ou não se continuem a degradar). É, para mim, o maior sinal de rutura de um sistema. 

Este texto reúne reflexões conjuntas da redação do Fumaça, partilhadas nos últimos anos (primeiro aqui, depois aquiaqui e aqui). Está longe de ser uma discussão nova. Só falta que seja abrangente e demolidora.

Até já,
Margarida

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