Violência Policial

Manuel Vicente sobre violência policial e a história do bairro da Jamaica

“Eu vim para aqui por [falta de] alternativa. Não havia outra alternativa”. É Manuel Vicente quem nos diz isto, ao explicar como veio viver para o Bairro da Jamaica, há 23 anos. O santomense de 51 anos procurava alugar casa para si e para a sua esposa no distrito de Lisboa. Procurou na Amadora e noutras zonas da periféricas cidade. Ligava para quem de direito, convidavam-no a visitar a casa mas tudo ficava por aí: “A gente telefonava e diziam ‘tudo bem, pode aparecer’. Quando chegavámos, deparavam que eramos africanos e davam sempre desculpas: ‘olha, já está um senhor à frente e depois eu vos ligo’”. Nunca ligaram.

Estávamos em 1995. Manuel ouviu de um amigo que, no Fogueteiro, Seixal, um esqueleto de prédios abandonados tinha sido ocupado para habitação. E foi. Na altura, conta, não havia eletricidade, não havia gás, não havia rede de esgoto, mas havia a vontade de quem não tem outro teto. Pegou em tijolos e construiu um piso novo em cima dos pisos não acabados, mas já ocupados. O Jamaica foi enchendo. E mais quartos e mais pisos e mais casas se construíram, mas a falta de condições básicas mantinha-se: “As pessoas não viveram; as pessoas sobreviveram, porque as condições eram desumanas”.

A luta por condições dignas de habitação vem já desses tempos. Mas nunca, até há uns meses, com resultados significativos. Pedia-se o mínimo, e nem o mínimo se alcançava. Na opinião de Manuel, por culpa da autarquia, que acusa de esconder os problemas do bairro e de nunca os ter querido resolver: “A Câmara do Seixal queria-nos levar à exaustão”, e obrigar a que os próprios moradores decidissem abandonar o Jamaica.

Enquanto foi presidente da Associação de Moradores, Manuel teve acesso privilegiado ao executivo camarário, liderado desde 1976 por alianças eleitorais com a participação do Partido Comunista Português: ou a APU (Aliança Povo Unido) ou a CDU (Coligação Democrática Unitária). Em nenhuma das ocasiões em que se reuniu com o poder local, diz, lhe pareceu que a Câmara seixalense quisesse resolver o problema. O Fumaça contactou o executivo municipal do Seixal pedindo um comentário sobre várias das acusações dirigidas à autarquia durante a entrevista. As respostas não foram esclarecedoras. Por email, a autarquia explica o processo de realojamento em curso e “lamenta ainda que a propósito de um acontecimento isolado em Vale de Chícharos, persista o aproveitamento desta situação, que em nada contribuí para que as famílias que habitam em Vale de Chícharos, retomem as suas vidas com tranquilidade”.

E assim foi ficando o Jamaica, com cada vez mais pessoas, cada vez menos segurança (existem prédios em perigo de desabar) e uma comunidade a tentar manter-se de pé. Foi preciso esperar até 2017, quando o Ministério do Ambiente anunciou que iria proceder ao realojamento de 234 famílias do bairro, numa colaboração entre o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, a Câmara Municipal do Seixal e a Santa Casa da Misericórdia do Seixal, numinvestimento superior a 15 milhões de euros. O processo acontecerá por fases e, se as primeiras famílias foram realojadas no passado dezembro, as últimas não deverão ter nova casa antes de 2022, se tudo correr dentro do plano.

Mas não foi o tão-esperado realojamento do Jamaica que trouxe o bairro para as capas de jornais. No dia 20 de janeiro, uma festa de aniversário acabou com um caso de brutalidade policial cometida por vários agentes da Polícia de Segurança Pública (PSP). Segundo a PSP, os agentes foram chamados ao bairro por causa de uma “desordem entre vários indivíduos do sexo feminino”. Nesse mesmo dia, um vídeo publicado nas redes sociais mostra o momento em que a polícia espanca vários habitantes indefesos.

Seguiu-se a habitual guerra nas redes sociais: ora declarações de apoio aos moradores ora à PSP. No centro de Lisboa, uma manifestação contra a brutalidade policial acabou com balas de borracha e bastonadas distribuídas pelas forças de segurança a quem protestava. A 25 de janeiro, cinco dias depois do caso, mais de 100 pessoas juntaram-se em protesto à frente da Câmara Municipal do Seixal, rejeitando o racismo. Exigiam também condições dignas de habitação e repudiavam a atuação da polícia. Quem não esteve lá foi a Associação de Moradores do Jamaica, pelo menos oficialmente representada. No dia anterior, os seus dirigentes disseram, em comunicado à agência Lusa: “não iremos participar nas manifestações agendadas (…) tudo o que queremos de momento é retomar as nossas rotinas diárias e seguir em frente”. Manuel Vicente explica uma das razões que pode estar nos bastidores desta tomada de posição: “a Câmara [Municipal do Seixal] veio ao bairro da Jamaica, quase de joelhos, para que nós não fossemos à manifestação”, diz. Com medo de ficarem de fora do processo de realojamento ou de serem de alguma forma prejudicados, depois de mais de duas décadas de luta, a maior parte dos moradores, aparentemente, amochou. . Não foi o caso de Manuel Vicente – ele esteve lá.

Nesta entrevista, falamos sobre a relação dos moradores com a autarquia, das origens e a história do bairro, os casos de brutalidade policial e do processo de realojamento, que começou no final de 2018.

A 6 de outubro de 2023, a citação “A Câmara do Seixal veio ao bairro da Jamaica, quase de joelhos, para que não fossemos à manifestação” foi substituída, no título deste artigo, pela identificação do tema da entrevista.

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