Brasil

Bolsonaro: um mito em crise permanente (2/2)

[Este episódio foi produzido para ser ouvido, não apenas lido. O que se segue abaixo é a transcrição integral de toda a peça áudio.]

Se ainda não ouviste a primeira parte deste trabalho, pára aqui e vai ouvir, porque vais entender melhor a história.

Em abril de 2015, Bolsonaro desfiliou-se do Partido Progressista (PP), partido egresso do PDS, por sua vez nascido da Arena (Aliança Renovadora Nacional), o partido de sustentação da ditadura civil-militar. O, na época deputado, desfiliou-se já com a intenção de seguir seu desejo de ser presidente. Filiou-se, em março de 2016, ao Partido Social Cristão, uma agremiação ligada a líderes evangélicos, onde foi lançado pré-candidato à presidência.

Jair Bolsonaro:
Eu só peço a Deus poder corresponder à expectativa que muitos depositam em mim pelo Brasil.

Em dezembro de 2016, quando seus vídeos no YouTube chegavam a 1 milhão de visualizações e seu perfil no Facebook já contava com 3 milhões de seguidores, sua intenção de voto oscilava entre 8% e 9%, de acordo o instituto de pesquisas Datafolha, e o candidato disputava o terceiro lugar com Geraldo Alckmin e José Serra, ambos do PSDB de São Paulo. Primeiro colocado, Lula tinha em torno 25% das intenções de voto e Marina Silva, da Rede, cerca de 15%. Bolsonaro só descia do pódio quando o ex-juiz Sergio Moro, hoje seu ministro da Justiça, era cotado como candidato à presidência e lhe tomava o terceiro lugar.

Em dezembro de 2017, a menos de um ano das eleições presidenciais, Lula havia ampliado sua vantagem e seguia em primeiro lugar, com 34% das intenções de voto. Bolsonaro, por sua vez, estava isolado na segunda posição, entre 15% e 20% das intenções de voto, a depender do cenário. Na pesquisa seguinte, em janeiro de 2018, logo após a condenação de Lula, Bolsonaro apareceu pela primeira vez na liderança, com 18% das intenções em um cenário sem a participação do petista.

Até agosto de 2018, as maiores intenções de voto em Bolsonaro estavam concentradas entre eleitores do sexo masculino, com nível superior e renda acima de cinco salários mínimos. Era popular também entre eleitores evangélicos, policiais e, claro, os militares, grupo que sempre representou na política.

Com a entrada do economista liberal Paulo Guedes para o núcleo de sua campanha, Bolsonaro conseguiu também colocar-se como uma alternativa ao PT junto ao mercado financeiro e empresários. Bolsonaro passou a ser um instrumento da própria elite econômica, defende Tales.

Tales Ab’Saber:
O que de fato elegeu o Bolsonaro é esse aval das elites econômicas brasileiras, o que é gravíssimo. Para que as elites econômicas retomem o poder e façam as reformas que elas acreditam que são importantes, e que são importantes para elas, elas precisam de um fascista. É uma degradação política, humana, da burguesia brasileira. É grave esse passo que esses caras deram. E, hoje, têm muitos se lamentando.

Seu desafio era transformar a rejeição das mulheres, dos negros e pardos, da população mais pobre e minorias – como a população LGBTI – em intenções de voto.

PARTE X – A CONSTRUÇÃO DO FENÔMENO POP

O início da campanha em rádio e TV, considerado o momento em que o jogo eleitoral começa de fato no Brasil, no final de agosto de 2018, trouxe uma boa e uma má notícia para Bolsonaro. A boa notícia foi a impugnação pelo TSE da candidatura de Lula, preso desde abril de 2018, o que levou Bolsonaro para o primeiro lugar nas pesquisas.

A má notícia é que a propaganda eleitoral do PSDB, baseada nas declarações de Bolsonaro contra mulheres e negros, surtiu efeito rápido. Pesquisas internas começaram a mostrar que o candidato, primeiro colocado nas pesquisas, começava a cair, enquanto Geraldo Alckmin, do PSDB, subia.

Bolsonaro: Jamais ia estuprar você que você não merece
Maria do Rosário: Olha eu espero que não senão eu lhe dou uma bofetada
Bolsonaro: Dá que eu te dou outra! Dá que eu te dou outra!
Maria do Rosário: Mas que barbaridade. O senhor está me empurrando? O que é isto? Olha aqui segurança! Mas o que é isto?
Bolsonaro: Você me chamou de estuprador!
Maria do Rosário: Desequilibrado! Sai, desequilibrado!
Bolsonaro: Vagabunda!

Na propaganda do candidato Geraldo Alckmin, do PSDB, uma atriz interpretava ainda uma mulher que se confronta com os valores de Bolsonaro:

Campanha PSDB:
É aquela velha história, esse papo normalmente começa com ‘o problema não é você, sou eu’. Mas eu pensei direito, o problema é você mesmo. Simples assim. Cara, você só fala absurdo. Eu não posso confiar em alguém que é a favor da violência, é machista, racista e homofóbico. Sério? Esterilizar pobre? Mulher tem que ganhar menos? E ainda gosta de torturadores? Em que mundo você vive? Você é um atraso de vida. Eu mereço alguém melhor.

Emergia aquilo que o psicanalista Tales Ab’Saber denomina como “neofascimo brasileiro”.

Tales Ab’Saber:
Um dos núcleos fundamentais desse neofascismo brasileiro é o desprezo pelos direitos humanos. O desprezo por direitos humanos é muito diferente de você dizer ‘eu não quero estrangeiros roubando meu emprego’. Quando você diz isso, como os europeus e os americanos, você não está dizendo: ‘eu desprezo direitos humanos.’ Você está dizendo: ‘não, é uma questão de interesse de mercado. essas pessoas são humanas, mas elas ocupam o meu lugar e a funçao racional da nação é proteger as pessoas do lugar.’ Mas não estão botando em xeque a existência do outro. claro que em algum lugar estão. Mas no discurso público não estão. No caso brasileiro, os caras dizem: ‘essas pessoas não têm direitos humanos.

A mudança nas intenções de voto não foram captadas pelas pesquisas na ocasião. Em 6 de setembro de 2018, em Juiz de Fora, Bolsonaro levou uma facada na altura do abdómen e foi internado às pressas. O autor do atentado é Adélio Bispo, que está preso e aguarda julgamento.

Em convalescença no hospital, Bolsonaro foi impedido de fazer campanha de rua, dar entrevistas e participar de debates televisivos. Nesse momento, o ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, que substituíra Lula como candidato do PT, começou sua ascensão. Entre os dias 21 de agosto e 28 de setembro, o candidato saiu de 4% das intenções de voto para 22%, ficando em segundo lugar. O clima dentro do PT era de confiança e otimismo: graças à popularidade de Lula, em pouco tempo Haddad estaria em primeiro lugar nas pesquisas. Não foi o que aconteceu.

Se a ascensão de Haddad ao longo do mês de setembro foi vertiginosa, a de Bolsonaro foi paulatina – mas consistente. De acordo com o instituto de sondagens Datafolha, o candidato tinha 22% das intenções de voto na última pesquisa de agosto. Subiu para 24% na pesquisa seguinte, em 10 de setembro, pouco depois do atentado, e depois para 26%. No dia 28 de setembro chegaria a 28% das intenções de voto.

A perspectiva de ter o candidato como o favorito à presidência da República despertou reações. De todos os movimentos, o #Elenão, liderado por mulheres, foi o que atingiu mais capilaridade pelo país, contando com o apoio de boa parte da classe artística, como a atriz Malu Mader:

Malu Mader:
Eu jamais votaria em alguém que chama mulheres de vagabundas, que diz que prefere um filho morto a um filho gay, que faz piadas menosprezando negros e mulheres, que diz que as minorias devem se adequar ou então desaparecer, que proclama publicamente ser favorável à tortura e homenageia torturadores, que diz que é natural que muitos inocentes morram numa guerra. Portanto, dia 29, às 15h, na Cinelândia, vamos dizer juntas ‘ele não’.

O ator Chay Suede.

Chay Suede:
Ele não porque o livro de cabeceira dele foi escrito por um torturador e ele não teve pudor nenhum em admitir isso durante uma sabatina em rede nacional, o que na minha opinião é gravíssimo porque revela o caráter no mínimo muito violento de um homem que pelo menos eu não desejo que seja presidente do meu país. Ele não porque ele é incompetente, porque em 30 anos de vida pública ele foi incapaz de apresentar sequer um projeto relevante que pudesse transformar e melhorar a vida do povo brasileiro. Ele não porque ele relativiza a escravidão e trata a meritocracia como uma possibilidade num país tão desigual como o nosso. Ele não porque ele não fala em distribuição de renda, apesar de nós vivermos em um país extremamente injusto. Ele não porque ele faz sinal de arma com a mão.

E a modelo e apresentadora do programa “Amor e sexo”, da TV Globo, Fernanda Lima, uma das figuras públicas mais odiadas pelos apoiadores de Bolsonaro.

Fernanda Lima:
Ele não porque ele é grosseiro, porque ele é agressivo com seus projetos e suas palavras. Ele não porque em mais de 20 anos como deputado do Rio de Janeiro não fez absolutamente nada em relação à segurança do estado. Ele não porque ele diminui as mulheres, os negros e os gays e simboliza um retrocesso enorme na conquista de direitos, além de estimular ainda mais violência. Ele não porque quando ele fala em família, ele tá falando apenas do modelo de família que ele acredita, sem nenhuma empatia com outros tantos modelos de família que amam, acolhem, educam e dialogam, mas não batem. Ele não porque violência não se resolve com mais violência e sim com educação, oportunidade pra todas e todos, sem qualquer discriminação de raça ou orientação sexual. Ele não porque ele tem um torturador como ídolo. Já bastaria isso. Ele não porque sou brasileira, não tenho partido político, mas acredito num lado onde o bem é pra todos. Por isso eu apoio essa reação das mulheres contra ele no dia 29 nas ruas de todo o Brasil.

Os atos do movimento #Elenão aconteceram em São Paulo, Rio de Janeiro e em outras 38 cidades brasileiras no mesmo dia em que Bolsonaro deixava o hospital Albert Einstein, em São Paulo, após três semanas internado. Reuniram mulheres e homens, heterossexuais e LGBTIs, militantes de partidos progressistas, membros de torcidas organizadas de futebol e movimentos sociais. Mas não chegaram à massa.

Segundo uma pesquisa conduzida pelo filósofo e professor da Universidade de São Paulo, Pablo Ortellado, a maior parte dos participantes do movimento era branca e de classe média. Um vídeo do ideólogo Olavo de Carvalho, figura marginal do conservadorismo nos anos 1990 que angariou um verdadeiro exército digital a partir de seu canal no YouTube e os cursos que ministrava pela internet, publicado três dias antes do ato, dá o tom de como a manifestação foi compreendida por apoiadores de Bolsonaro e parte do eleitorado que ainda não tinha voto definido:

Olavo de Carvalho:
Vamos pensar em termos de luta de classes. Eu acho que o que está havendo é uma luta de classes, se tem uma luta do povo trabalhador contra elite da qual vocês são representantes principais, vocês são a turma chique, vocês só vivem em ambiente chique. Vocês vão dizer que vocês vivem na fábrica? Vivem nas ruas com o povo trabalhador? Não! Vocês só vivem em ambientes chiquíssimos, em festinhas regadas a champanhe francês e cocaína.

Foi a arrancada final de Bolsonaro. Na pesquisa realizada em 2 de outubro, Bolsonaro subiu de 28% para 32% e Haddad oscilado um ponto para baixo, de 22% para 21%. Pela primeira vez o candidato petista aparecia estagnado. Na pesquisa divulgada em 5 de outubro, Bolsonaro tinha 35% das intenções de voto, abrindo 13 pontos de vantagem contra seu principal adversário. O candidato perdia apenas em poucos segmentos. Por região, perdia apenas no Nordeste. Por escolaridade e renda, perdia apenas entre eleitores que ganham até dois salários mínimos e que completaram apenas o ensino fundamental. Por cor e raça, perdia apenas entre os negros. Por religião, entre ateus e membros de religiões de matrizes africanas.

Entre as mulheres – segmento no qual aparecia então tecnicamente empatado com Haddad – Bolsonaro ampliou sua vantagem nesse período, saindo de 21% em 28 de setembro, um dia antes do ato, para 28%, no dia 5 de outubro. O candidato estava estampado em camisetas, era o protagonista de grupos de Facebook e WhatsApp, meme de humor duvidoso e dono de uma marca registrada que se popularizou nas fotos de seus apoiadores: os dedos das mãos simbolizando arminhas. No dia 7 de outubro, Bolsonaro iria para o segundo turno com 46% dos votos válidos. Haddad, o segundo colocado, teria 29%. Bolsonaro sairia vitorioso do segundo turno, realizado o dia 28 de outubro, com 55% dos votos.

Tales Ab’Saber:
Nós só olhávamos que nós vamos para as ruas, progressivamente,as mulheres progressistas e  os homens progressistas, para dizer “esse cara não tem condição democrática”. Certamente tinha uma contra-máquina tão forte, tão grande, desqualificando esse movimento. Foi essa que fez resultado. E nós sabemos como ela funciona. Ela vai numa escalada de absurdo, nonsense e violência. No fim, as mentiras sobre as mulheres feministas eram totais: as imagens que circulavam completamente falsas. E aí a gente vê o papel da grande mídia: a grande mídia tratou um movimento progressista como se fosse um comício de campanha qualquer. E esvaziou. E deixou o espaço para essa máquina subterrânea, essa indústria da mentira e da violência e foi aí que ela foi direto nas mulheres, nas evangélicas e nos pobres, ela capilarizou, como você falou, e ela capturou cada um deles. Cada um.

Brasília amanheceu ensolarada no dia 1º de janeiro de 2019. Jornalistas que cobririam a posse no Planalto encaminharam-se às sete da manhã para o Centro Cultural Banco do Brasil, de onde sairiam os autocarros para levar os jornalistas ao Planalto. Os repórteres aguardaram quase oito horas pelo início da cerimônia. Com o acesso à água e banheiro restritos, tiveram que se revezar em um banquinho para repousar. Até mesmo seus movimentos, segundo relatos, estavam cerceados. Foi a primeira vez, desde 1990, ano da primeira posse de um presidente eleito após a ditadura, que a imprensa foi tratada desta maneira em uma cerimônia de posse.

Do lado de fora, na Esplanada dos Ministérios, o esquema de segurança também era intenso. Segundo notícias da ocasião, 10 mil policiais militares ficaram responsáveis pela segurança do evento, número quatro vezes maior ao da posse de Dilma Rousseff, em 2015. Artigos como bolsas, mochilas e garrafas estavam vetados. Os policiais responsáveis pelas duas primeiras revistas na Esplanada impediram, ainda, a entrada com isqueiros, sacolas plásticas e até mesmo com um bonequinho de Bolsonaro, à venda nas ruas de Brasília, objetos que não constavam na lista de restrições divulgada em dezembro.

O esquema de segurança não impedia, porém, o clima de festa. Os apoiadores de Bolsonaro – vestidos à paisana, de verde e amarelo ou com camisetas com sua foto estampada – carregavam também bandeiras. Em uma delas, lia-se: “Ustra vive!”. Ustra, para quem não se recorda, é o coronel do Exército, Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna) do II Exército, órgão responsável pela repressão e tortura durante a ditadura civil-militar. Ustra, homenageado por Bolsonaro, em seu voto durante na sessão do impeachment, em 2016, é também o único brasileiro declarado torturador pela Justiça brasileira.

O acesso restrito à Praça dos Três Poderes – onde se situam o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Palácio do Itamaraty – obrigou os seguidores de Bolsonaro a se acotovelarem na grade ao fim da Esplanada, sob a bandeira dos estados brasileiros. Alguns ergueram suas namoradas e filhos nos ombros, outros deram o zoom no celular para aproximarem-se da cena e outros, ainda, se deram ao trabalho de narrar cada passo do evento. Concluída a cerimônia, o clima era de fim de rave: filas para usar os banheiros químicos, para tomar a água que era distribuída gratuitamente e voltar para casa – ou partir para suas cidades de origem.

Foi nesse momento que abordei duas das pessoas presentes. A bancária Juracy Gonçalves Bragança, 58 anos, moradora de Brasília, abriu mão de viajar para encontrar a família na festa de réveillon para estar presente na posse de Bolsonaro.

Danilo – E é sua primeira posse aqui?
Juracy – Primeira posse. Eu queria ter participado na época do Tancredo Neves, que foi a época das Diretas Já, infelizmente não foi o que assumiu, faleceu antes, e hoje eu não podia perder. Na época do Fernando Henrique eu não estava em Brasília, estava em férias, então não pude participar. Agora é a primeira posse que eu participo, que eu fiz questão de vim, deixei de passar Réveillon com a minha família para estar aqui.
Danilo – A senhora militou pelo Bolsonaro?
Juracy – Ele era a minha terceira opção de candidato. Depois de ver que se a gente não se engajasse, realmente, para que fosse eleita uma pessoa de direita, que pensasse como a gente, família, religião, brasilidade, nacionalismo, se não fosse assim a gente ia continuar com o mesmo e aí eu comecei. Eu dedicava todos os dias, pelo menos 30 minutos, nas redes sociais, todos os dias, três meses, realmente trabalhando 30 minutos pra ele. Era minha dedicação.
Danilo – Que argumentos a senhora usava para convencer as pessoas a votarem no Bolsonaro.
Juracy – Justamente esse. Nós temos que resgatar família, o respeito das pessoas. Justamente isso. Você ter respeito, ter consciência de que você só consegue aquilo, o bem, através de trabalho, educação, saúde e não através de vandalismo, de invasões, depredações, que era isso que nós vivíamos no país há uns quatro, cincos anos. Era uma coisa sem lei. Era um país totalmente sem lei o Brasil. Com muito roubo, muita droga, estava muito bagunçado.
Danilo – E quais são suas expectativas?
Juracy – Eu acho que já começou a mudar só pelo fato de ele ter sido eleito, das pessoas que ele colocou, são técnicos, são pessoas realmente de bem, pessoas que nós vamos sentir orgulho, alguns a gente já tem, caso do Sérgio Moro, o da tecnologia, que eu esqueci o nome agora…
Danilo – Marcos Pontes.
Juracy – Então, uma pessoa que a gente tem orgulho, e de ter vários militares, que são pessoas muito preparadas, que são pessoas que têm sentimento nacional, de brasilidade.

O mecânico João Francisco Vieira de Sá, 60 anos, é natural do Maranhão, mas também mora na capital federal, há 40 anos. Presente à posse, tem esperanças de melhorias econômicas com esse governo, após dois anos de recessão seguidos por mais dois anos de baixo crescimento econômico.

Danilo – Por que o senhor veio para a posse?
João – Nunca tinha vindo nunca numa posse, achei que ele falou algumas coisas do meu interesse, é bom pro Brasil, aí eu vim ver.
Danilo – O senhor votou no Bolsonaro?
João – Votei no Bolsonaro.
Danilo – O senhor chegou a fazer campanha pra ele?
João – Ajudei bastante.
Danilo – Como?
João – Falei pra todos meus amigos aí que a gente tinha que tentar mudar esse Brasil da gente, que é um Brasil que anda pra trás, não tem nada de coisa boa, não tinha nada de bom pra gente. Só tem imposto, né? Muito imposto e muita carestia, muita desonestidade.
Danilo – Do que ele dizia o que o senhor percebeu que seria bom para o Brasil e o fez votar nele?
João – Principalmente esse corte da metade desses impostos que ele promete cortar, principalmente essa gasolina, que é muito caro, o custo de vida é muito alto também, né? O salário mínimo é muito pouco, muito baixo, né? E a vida da gente a gente vive só pra pagar imposto, né?
Danilo – O senhor sofreu muito com a recessão, com a crise, nesses quatro anos?
João – Muito, mas muito. Dá uma diferença terrível. é muito grande mesmo. Sofrimento mesmo. Eu e a família. Só trabalhar só pra pagar imposto mesmo, só sofrimento.
Danilo – É a primeira posse da qual o senhor participa?
João – Exatamente. É a primeira. Nunca me empolguei muito pra vir nas outras. Não porque ele ganhou, porque eu vi coisa que me interessou. Ele falando eu senti que o Bolsonaro me falou, assim, a verdade, né? Você sente de dentro dele que ele fala a verdade, né? Então, procurei acreditar nisso aí.

PARTE VII – ENTRE O FENÓMENO POP E A CRISE PERMANENTE

A eleição de Jair Bolsonaro veio cercada de expectativas, inclusive entre os agentes econômicos – sobretudo do mercado financeiro e do agronegócio brasileiro – que apostaram em Bolsonaro e na política econômica ultraliberal defendida por Paulo Guedes, seu ministro da Economia.

Em seus dez primeiros dias de governo, Jair Bolsonaro bateu a marca de 10 milhões de seguidores no Facebook – território que domina – e recuou em, pelo menos, nove decisões diferentes. Inclusive na área econômica.

Jair Bolsonaro:
O Paulo Guedes anuncia hoje também a possibilidade de diminuir a alíquota do imposto de renda porque o nosso governo tem que ser a marca de não aumentar impostos.

Foi desmentido pelo secretário da Receita Federal, órgão responsável pelos tributos brasileiros.

Marcus Cintra:
Não vai haver nada que esteja sendo discutido com relação à alteração do imposto de renda.

E pelo ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, deputado federal desde 2003 pelo Rio Grande do Sul, notório defensor do armamento civil e que ganhou relevância política ao tornar-se aliado de Bolsonaro.

Onyx Lorenzoni:
Não tem aumento de imposto. Estou afirmando aqui: não haverá aumento de impostos.

As confusões na área econômica não se resumiram a recuos. No Fórum Econômico de Davos, onde o presidente era aguardado com alguma expectativa entre os donos do dinheiro interessados nas promessas de reformas liberalizantes de seu governo, Bolsonaro falou por apenas seis minutos.

Jair Bolsonaro:
Vamos diminuir a carga tributária, simplificar as normas, facilitando a vida de quem deseja produzir, empreender, investir e gerar empregos. Trabalharemos pela estabilidade macro-econômica, respeitando os contratos, privatizando e equilibrando as contas públicas. O Brasil ainda é uma economia relativamente fechada ao comércio internacional e mudar essa condição é um dos maiores compromissos deste governo. Tenho certeza de que até o final do meu mandato, nossa equipe econômica liderada pelo ministro Paulo Guedes nos colocará no ranking dos 50 melhores países para se fazer negócios.

Não causou boa impressão. A sua estreia em Davos foi criticada pela imprensa brasileira e estrangeira. Seu maior desafio na área econômica, porém, é outro: realizar a reforma da Previdência brasileira.

Jair Bolsonaro:
Estamos determinados a mudar o rumo do nosso país. Nossos objetivos são claros, resgatar a nossa segurança, fazer a economia crescer e servir a quem realmente manda no país: a população brasileira. Sendo assim, ontem encaminhamos ao Congresso um pacote anti-crime e hoje iniciamos o processo de criação de uma Nova Previdência.

Assunto considerado primordial para a melhoria do ambiente econômico – e a redução da dívida pública brasileira – a Reforma da Previdência deve ser a principal pauta do governo no parlamento em 2019. É também a mais difícil, por ser um dos assuntos mais impopulares do país. A Previdência é fundamental no combate à pobreza e à desigualdade brasileira. Segundo um estudo feito pela LCA Consultores a pedido do jornal “O Estado de S. Paulo” ao menos 10,8 milhões de brasileiros dependem da renda de idosos aposentados para sobreviver. Em 2017, o número de residências onde mais de 75% da renda provém das aposentadorias subiu de 5,1 milhões para 5,7 milhões, um universo que corresponde a quase 17 milhões de brasileiros. A reforma mexe também nos direitos adquiridos e interesses de classes organizadas, como os funcionários públicos do Judiciário brasileiro e os militares. São justamente esses os setores com maior capacidade de pressão e que têm maior peso no déficit da Previdência.

Para conduzir uma pauta que nem mesmo o ex-presidente Michel Temer, habilidoso no trato com o Congresso, foi capaz de levar adiante, o governo tem como uma de suas principais defensoras e articuladoras na Câmara a deputada Joice Hasselmann.

Joice Hasselmann:
Boa tarde senhor presidente, boa tarde a todos, minha gente, vamos falar aqui um pouquinho, sobre Previdência. Sobre a nova Previdência.

Joice trabalhou na rádio CBN, no Paraná, e apresentava um programa no site da revista Veja. Em seu estado natal, sofreu acusações de plágio por parte de 23 jornalistas, de diversos veículos, em 65 reportagens. Demitida da Veja, criou um canal no YouTube que a tornou uma das principais porta-vozes do bolsonarismo – e das notícias falsas espalhadas no ambiente digital. Eleita com mais de um milhão de votos pelo estado de São Paulo, a segunda maior votação da história, Joice não tem nenhuma experiência como deputada – e se indispôs, antes de tomar posse, com integrantes de seu partido. Entre eles Eduardo Bolsonaro, o filho número três de Bolsonaro. A ela, líder do governo na Câmara, cabe a missão de conquistar votos para a reforma da Previdência. Ou, nas palavras dela:

Joice Hasselmann:
Não teremos uma reforma da Previdência. Presidente Crisóstomo, esse termo está errado. Nós teremos uma nova Previdência.

As chances de aprovar a reforma – fundamental para a manutenção do apoio das elites econômicas ao governo Bolsonaro – reduziram-se drasticamente há três semanas, dia 21 de março, com a prisão preventiva do ex-presidente Michel Temer e do ex-ministro e ex-governador do Rio de Janeiro Moreira Franco, ambos do MDB. Moreira Franco é padrasto da mulher de Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados e personagem fundamental para a aprovação desta e de outras reformas no Congresso.

A prisão dos dois políticos foi interpretada por parte da classe política e do judiciário como uma demonstração de força dos investigadores da Lava Jato, num momento em que vinha se enfraquecendo perante a opinião pública.

Temer e Moreira Franco são investigados na ação chamada Descontaminação, um desdobramento de outra investigação, que apura casos de corrupção na construção da usina nuclear – central nuclear, aí em Portugal – de Angra 3, no interior do Rio de Janeiro. A prisão do ex-presidente foi determinada a partir da delação do empresário José Antunes Sobrinho, da construtora Engevix, que, segundo os investigadores, teria pago em 2014 R$ 1 milhão (pouco mais de 200 mil euros) em propina – suborno – a uma empresa controlada pelo coronel Lima, aliado de Temer, também preso no dia 21 de março. O dinheiro, segundo a acusação, iria para o MDB, intermediado por Moreira Franco.

A prisão, que ocorreu 79 dias após Temer deixar o governo, foi feita a pedido do juiz Marcelo Bretas, do Rio de Janeiro, alegando a garantia da ordem pública e a preservação das provas. A decisão seria anulada quatro dias depois, levando à soltura de Temer, Moreira Franco e outros investigados. O juiz responsável pela decisão, Antonio Ivan Athié, do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, alegou que a prisão feria garantias constitucionais.

O jornalista Reinaldo Azevedo, crítico de uma série de ações da Lava Jato, criticou a justificativa da prisão.

Reinaldo Azevedo:
Ele precisaria agora estar cometendo crimes. Não lá atrás. Contra a ordem pública, contra a ordem econômica. Ele representa um perigo a essas duas coisas. São dois motivos. O outro motivo é atrapalhar a investigação criminal ‘Está intimidando testemunha’. Mas não é que ele intimidou testemunha há três anos, quatro anos, há 10 anos. Não. Agora. Agora há o risco de ele intimidar testemunha agora. Ou de ele esconder prova agora. Se ele escondeu prova, ainda que tenha escondido prova há dez anos, não conta.

A prisão foi criticada também pelo PT, pelo Movimento dos Trabalhadores sem Teto e pelo senador Tasso Jereissati, do PSDB. Na manhã seguinte à prisão, Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, que estava em conflito com o ministro da justiça Sérgio Moro, avisou o ministro da Economia, Paulo Guedes, que deixaria as negociações da reforma da Previdência. O motivo alegado foi uma série de tuítes de Carlos Bolsonaro, filho do presidente, em defesa de Moro.

A crise do Executivo com a Câmara deve ampliar a sensação de falta de rumo do governo Bolsonaro. As dificuldades são ainda maiores se levarmos em conta, como disse a economista Laura Carvalho, que ouvimos anteriormente, que as propostas do governo são pouco claras e que as elites econômicas do Brasil já têm se dado conta disso.

Laura Carvalho:
Eu até acho que os eleitores do Bolsonaro não estão tão preocupados ou até não votaram nele por causa da agenda econômica – só uma pequena parte dos eleitores dele, que é aquela elite, que, aliás, vem perdendo eleições há algum tempo, e que só ganhou porque apostou num líder, vamos dizer, carismático, que apelava para outro tipo de sentimento nas pessoas e não porque convenceu ninguém de que a agenda liberal de mercado, que a reforma da Previdência traria todos esses frutos, enfim, essa elite, na verdade, conseguiu eleger seu representante, mas não por isso, não por ela. Isso gera um problema complicado. De um lado você tem o ministro da Fazenda, que é o Paulo Guedes, com uma agenda extremamente ambiciosa, que vai muito além da reforma da Previdência, na verdade a reforma da Previdência é até a parte que já vinha do governo Temer. mas ele tem uma agenda muito mais ambiciosa, de privatizar todos os ativos públicos, todas as empresas estatais, de acabar com todo e qualquer direito trabalhista para quem ‘escolher’ não ter esses direitos, o que, na prática, significa não ter, porque com o desemprego onde está quem vai escolher exigir os seus direitos, no momento que vai ter sempre outro trabalhador desempregado que não vai exigir. A agenda do Guedes ela é tão radical e extrema no ultraliberalismo que até me parece que é pouco verossímil. Ele tem se comportado, o ministro da Fazenda, ele fala as coisas sem muita preocupação com a viabilidade das propostas, com tentar convencer a população de que aquilo faz algum sentido. O que, na verdade, tem mostrado desde janeiro que, talvez ele não seja a figura de maior poder, de que ele é o executivo, o cara que vai fazer, vai tocar os projetos. Ele, na verdade, fala uma coisa, o Bolsonaro no dia seguinte desmente aquilo, a reforma que vai passar é, provavelmente, muito menos ambiciosa até que a do governo Temer. (…)
Ele já está até sendo criticado pela elite econômica.

Na política externa – assunto que raramente gera crises no Brasil – Bolsonaro causou problemas ainda na fase de transição de governo: indispôs-se com a China, principal parceiro comercial do Brasil, e com países árabes, importantes compradores da carne brasileira. Neste caso por anunciar que o Brasil transferiria a embaixada em Israel de Tel Aviv para Jerusalém, como fizeram os Estados Unidos, gerando tensões e críticas internacionais. A ação faz parte de uma política de alinhamento de Bolsonaro com a agenda geopolítica de Trump, que conta com respaldo de seus apoiadores mais radicais.

Jair Bolsonaro:
A questão da embaixada: quem decide a capital… se o Brasil mudar a capital pro Rio de Janeiro mudou. Qual o problema? Os outros países obviamente viriam pra cá com suas embaixadas. Eu não vejo um clima pesado em você transferir, mudar a embaixada lá de Israel, não vejo nenhum problema.

Diante da reação da comunidade árabe internacional – e de parte dos empresários do agronegócio brasileiro, grandes exportadores de carne para esses países – Bolsonaro recuou. Com a vinda do primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu para sua posse, em 1º de janeiro, voltou a falar na transferência. O assunto segue indefinido e pode voltar a qualquer momento.

O presidente que se elegeu com o lema “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” anunciou, em sua viagem aos Estados Unidos, uma série de medidas que dividiram opiniões, como no caso da extinção do visto para turistas americanos sem nenhuma negociação de contrapartida; a retirada de impostos para o trigo americano e o uso comercial por americanos da base de Alcântara, no Maranhão, nordeste brasileiro. Os dois presidentes acordaram, ainda, que o Brasil abriria mão do status e benefícios de país em desenvolvimento na Organização Mundial do Comércio em troca do apoio de Trump para ingresso na Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico.  A Venezuela também esteve na pauta.

Bolsonaro – Não nos interessa nem a nós nem a eles que o país  se perpetue na situação que se encontra a Venezuela.
Repórter – Diplomacia ou intervenção militar?
Bolsonaro – Diplomacia em primeiro lugar. Até as últimas consequências. Trump repetiu que todas as hipóteses estão na mesa.

O governo Bolsonaro tem se colocado como parceiro estratégico dos Estados Unidos para forçar a queda do atual presidente venezuelano Nicolás Maduro. Entre os dias 22 e 23 de fevereiro,quatro pessoas haviam morrido e mais de 20 se feriram em confrontos na fronteira brasileira com a Venezuela. A estratégia do presidente brasileiro e do chanceler Ernesto Araújo de alinhamento à política de ajuda humanitária e desestabilização do governo Maduro, adotada pelos Estados Unidos, não é consenso nem mesmo dentro do governo, conforme deixa evidente a declaração do vice-presidente Hamilton Mourão, que participou da reunião do Grupo de Lima para debater a crise.

Hamilton Mourão:
A nossa posição é usar a diplomacia como método e as pessoas políticas e econômicas necessárias até o senhor Nicolás Maduro compreenda que é a hora dele se retirar.

O estado de crise do governo federal, porém, não se resume aos temas econômicos e de política externa. Outro fator são os três filhos mais velhos de Bolsonaro, tratados pelo presidente nos desígnios de zero um, zero dois e zero três, conforme o ambiente militar.

O deputado federal Eduardo Bolsonaro – o filho zero três – causou problemas antes mesmo do pai ser eleito durante o segundo turno, quando teve o vídeo de uma palestra sua divulgado na internet. No vídeo, ele afirmava:

Eduardo Bolsonaro:
Se quiser fechar o STF sabe o que você faz? Você não manda nem um jipe. Você manda um soldado e um cabo. Não é querer desmerecer o soldado e o cabo, não. O que é o STF, cara?

O STF – Supremo Tribunal Federal – é a mais alta corte da justiça brasileira.

O vereador da cidade do Rio de Janeiro, Carlos Bolsonaro – o filho zero dois – é, de todos, o que detém maior influência sobre o Bolsonaro. Apelidado por membros do PSL como Tonho da Lua – em referência a um personagem da telenovela Mulheres de Areia que sofria de deficiência mental…

Tonho da Lua:
Eu vou jogar uma areia nessa sua carinha! Ai que medo…

Carlos envolveu-se em uma série de entreveros com membros do governo e de seu partido.O principal deles foi com o ex-secretário geral da Presidência, Gustavo Bebbiano, demitido após as acusações de que o PSL, partido ao qual Bolsonaro e Bebianno são filiados, utilizou-se de candidaturas para financiar outras candidaturas, uma prática ilegal.

Presidente do partido, na ocasião, Bebbiano negou as irregularidades. Disse, ainda, que estava em conversas normais sobre os assuntos de governo com o presidente. A declaração deixou Tonho – digo, Carlos – contrariado e o levou, assim como a Bolsonaro, a divulgar um áudio de WhatsApp no qual o presidente dizia que não poderia falar com Bebianno. A intenção era desmentir o secretário geral e afastar o presidente da crise.

Jair Bolsonaro:
Ô Gustavo, está complicado eu conversar ainda. Então, não vou falar, não vou falar com ninguém, a não ser estritamente o essencial. Estou em fase final de exames para possível baixa hoje, tá ok? Boa sorte aí.

Uma série de áudios revelados pela revista “Veja”, porém, mostrou que Bolsonaro encaminhou três mensagens de áudio para Bebianno no dia 12 de fevereiro – mesma data em que o ex-ministro disse ter falado “três vezes” com o presidente, além de uma série de áudios trocados entre o então secretário geral da presidência e o presidente. Em um deles, Bolsonaro negava a Bebbiano ter falado com Bebbiano.

Jair Bolsonaro:
Você não falou comigo nenhuma vez no dia de ontem.

Gustavo Bebbiano, figura que ascendeu com o bolsonarismo e se tornou uma dos políticos mais influentes do PSL durante a campanha, deixaria o governo em 18 de fevereiro, dizendo-se arrependido de apoiar Bolsonaro. Considerado o mais discreto e moderado dos filhos de Bolsonaro, Flávio – o zero um – foi, porém, quem lhe causou mais problemas, junto de seu ex-motorista Fabrício Queiroz.

Jornalista Globo:
Um ex-motorista do deputado estadual do Rio de Janeiro Flávio Bolsonaro,  e filho do presidente eleito, Jair Bolsonaro, aparece em relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras, o Coaf, por movimentações financeiras de mais de R$ 1,2 milhão consideradas suspeitas.

Outra parte do relatório do Coaf revela saques em espécie no total de R$ 324.774, e R$ 41.930 em cheques compensados. Na época, um dos favorecidos foi a ex-secretária parlamentar, atual esposa do presidente eleito, Jair Bolsonaro, Michele de Paula Firmo Reinaldo Bolsonaro, no valor de R$ 24 mil.

Quem, por sua vez, realizou saques na conta do ex-motorista foi a senhora Raimunda Veras Magalhães. Ex-funcionária do gabinete de Flávio, o zero um, ela é mãe do ex-capitão da PM Adriano Magalhães da Nóbrega, suspeito de chefiar o Escritório do Crime e o grupo paramilitar que comanda a favela de Rio das Pedras, na Zona Oeste do Rio. Adriano é considerado foragido desde o fim de janeiro, após operação Os Intocáveis, comandada pelo Ministério Público do Rio de Janeiro.

O psicanalista Tales Ab’Saber afirma que as denúncias fizeram com que Bolsonaro trocasse a agenda do combate à corrupção para centrar-se na disputa ideológica – ou guerra cultural, na nomenclatura dada por Olavo de Carvalho, seu ideólogo.

Tales Ab’Saber:
Eles conseguiram ligar a crise da política nessa estrutura paranoica popular. Eles trouxeram a crise de corrupção para esse lugar. ‘A corrupção também te põe em risco’, ‘A corrupção vai destruir o mundo’. Agora acabou. Ele já andou dizendo várias vezes que a corrupção não é mais importante, a ideologia é mais importante que a corrupção. Ou seja, a corrupção dele não é importante. Agora que ele está no poder se desmobiliza essa estrutura de cobrança de corrupção. Ela é totalmente falsificada, estratégica, parcial.

Quando o assunto é a guerra cultural e o embate moral não parece haver a mesma dissonância por parte do governo. O presidente que passou todo o período eleitoral fazendo sinal de arma com a mão conseguiu, logo, emitir um decreto para facilitar a posse de armas. A Lei Rouanet – de incentivo à cultura – deve também ser modificada, assim como já estão sendo as políticas de patrocínio cultural de empresas estatais como a Petrobras. Essa era uma das principais agendas do bolsonarismo.

No dia 3 de janeiro foi divulgado um vídeo em que a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a pastora declarava:

Damares Alves:
Atenção, é uma nova era no Brasil: menino veste azul, menina veste rosa

Noutro vídeo, a ministra afirmava que as feministas não gostam de homens. E dava o motivo:

Damares Alves:
Porque são feias! E nós somos lindas.

Em nenhum caso houve oposição por parte dos bolsonaristas.

Na terça-feira de carnaval, o presidente publicou em sua conta no Twitter um vídeo de 40 segundos de duração na qual um performer tocava nos genitais  e recebia urina de outro rapaz em seus cabelos. Bolsonaro, afirmando-se pouco confortável em publicar o vídeo, disse que precisava alertar as pessoas sobre o que havia ser a realidade dos blocos de carnaval. A postagem repercutiu dentro e fora do Brasil. Foi a primeira vez que se falou em impeachment do Presidente desde a posse.

No dia 25 de março, o presidente, defensor da ditadura civil-militar e admirador do torturador Ustra, autorizou que o Ministério das Defesa, responsável pelas Forças Armadas, fizesse o que chamou de “comemorações devidas” ao golpe civil-militar de 1964, que deu início a 21 anos de ditadura e ao próprio Bolsonaro.

Para Tales, a chamada “guerra cultural” de Bolsonaro e seus apoiadores nada mais é do que uma imensa incompreensão do que seja a vida democrática, além de uma grande dificuldade em conviver com a diversidade que é intrínseca à democracia.

Tales Ab’Saber:
Esses caras conseguiram politizar um sentimento primitivo, conseguiram incluir numa coisa muito simples, ‘nós contra eles’, ‘eu contra o bandido’, que sempre existiu. conseguiram incluir o comunista inexistente, eu chamo de ‘comunista inexistente’, que é o que eles chamam de ‘marxismo cultural’ e a esquerda petista. Ou seja, tudo que exija trabalho crítico, qualquer coisa que exija trabalho democrático, qualquer diferença, qualquer exigência, é uma incompreensão radical do que seja democracia.

O sociólogo e cientista político Sérgio Abranches vê na guerra cultural uma maneira de manter sua base mais radical ativa na defesa do governo.

Sérgio Abranches:
Essa mobilização pelo ódio, pela negação do outro, tem que persistir por um certo tempo pra conseguir manter minimamente organizado e solidário esse grupo que vai ao poder. E ele vai se exacerbar durante um certo tempo no Brasil a medida que o governo se desgaste junto ao outro lado que aderiu à rejeição apenas porque era contra o PT, mas não concordava com nada mais.

O sociólogo não vê um futuro promissor.

Sérgio Abranches:
Isso não vai funcionar e essa é a minha preocupação. Esse é um governo que tem tudo para não funcionar. Se ele funcionar, ou é porque ele mudou, ou porque o país está muito doente, porque a crise é muito mais grave. Se o país tiver ainda vitalidade social e política e o governo não mudar, certamente não vai funcionar, porque ele atropelou todo o modelo político brasileiro, todas as regras da política brasileira, da democracia brasileira que vem funcionando bem ou mal até agora, e não tem um modelo novo pra colocar no lugar. É um governo de transição sem um mapa para transição, sem um mapa de navegação para levar o país para uma margem mais segura, isso ele não ele tem. A ideia de que ele vai ser um governo pra realizar os princípios e valores de determinadas facções minoritárias da direita brasileira me parece pouco provável que se faça isso sem muito conflito e com sucesso.

Num governo com o maior número de militares desde o fim da ditadura – de acordo com levantamento do jornal O Globo são 41, ocupando postos-chave, sendo 8 deles ministros – cabe se perguntar que papel as Forças Armadas ocupam dentro do governo.

Sérgio – Eu vejo hoje o papel dos militares no governo Bolsonaro muito mais como um papel moderador do que ameaçador. Moderador de quem? Do próprio governo. Eu duvido muito que essas diferenciações que estão sendo postas pelo general Mourão sejam em dissonância com os outros generais.
Danilo – Inclusive Augusto Heleno?
Sérgio –  Inclusive Augusto Heleno, que, na verdade, é o mais sênior deles.

Augusto Heleno Ribeiro Pereira é general da reserva e Ministro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, posto estratégico, responsável por zelar pela segurança do presidente da República e a própria segurança institucional do país. O ministro ocupa uma sala no Palácio do Planalto, onde também atua o presidente da República.

Sérgio Abranches –Ele é uma espécie de organizador das ideias do grupo militar. Eu tenho a impressão de que na verdade o que está acontecendo é que os militares estão tentando estabelecer quais são os limites para essa ação do governo, desradicalização do governo, desradicalizar a ação do governo. Não que eles não compartilhem uma boa parte dos princípios do presidente Bolsonaro, mas eles sabem que uma radicalização pode levar a um enfrentamento que ponha em risco a ordem interna e aí eles seriam obrigados a uma interferência que eles não querem.
Eunício Oliveira – Convido o excelentíssimo presidente da República eleito, senhor Jair Messias Bolsonaro, a prestar o seu compromisso constitucional.
Jair Bolsonaro – Prometo manter, defender e cumprir a constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil.

Após o juramento do presidente Jair Bolsonaro, foi a vez do juramento à Constituição brasileira de seu vice-presidente, o general Hamilton Mourão, que tem buscado se posicionar como um ente racional dentro do governo, em um aparente contraponto ao radicalismo ideológico de Bolsonaro. O vice tem conquistado cada vez mais simpatia de parte do eleitorado e do empresariado brasileiro com essa estratégia. Para alguns críticos, como o ex-candidato Ciro Gomes, o que Mourão quer é o lugar de Bolsonaro.

Ciro Gomes –A minha opinião sobre o Mourão não mudou: é um jumento de carga. Eu apenas vou trocar essa expressão porque ele agora não é candidato, é o vice-presidente do Brasil, e eu devo a ele esse respeito pelo cargo. Mas ele é tão pouco respeitável sob o ponto de vista dos meus padrões, que ele está flagrante e precocemente escalando o golpe contra o Bolsonaro.
Eunício Oliveira – Peço a mesa que se mantenha de pé e convido o excelentíssimo senhor vice-presidente da República eleito, senhor António Hamilton Martins Mourão a prestar o compromisso constitucional. Hamilton Mourão – Prometo manter, defender e cumprir a constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil.

FIM

Esta reportagem foi escrita por mim, Danilo Thomaz, a partir do Rio de Janeiro, Brasil.
Na equipa de Lisboa, o Pedro Miguel Santos e o Ricardo Esteves Ribeiro fizeram a edição de texto. O Bernardo Afonso fez a edição de som.

Além disso, ouvimos excertos das seguintes músicas:

Depois da Discussão – Odete Amaral
Fita Amarela – Francisco Alves e Mário Reis
Tico-tico no Fubá – Orquestra Colbaz
Aquarela do Brasil – Francisco Alves
Segura Ele – Pixinguinha
Tenho Raiva de Quem Sabe – Mário Reis
O Bonde São Januário – Wilson Batista e Ataulfo Alves
The Star-Spangled Banner – Hino dos EUA
Batente – Almirante e Bando de Tangarás
Só Papo – Almirante e Luperce Miranda
Proibido o Carnaval – Daniela Mercury e Caetano Veloso
Oh Abre Alas – Chiquinha Gonzaga
Disfarça e Chora – Cartola

Também ouvimos excertos de trabalhos jornalísticos da Globo News e da Folha de São Paulo.

Fazem ainda parte da equipa Fumaça a Ana Freitas, Frederico Raposo, Joana Batista, Margarida David Cardoso, Maria Almeida, Mo Tafech, Sofia Rocha, Tomás Pereira e Tomás Pinho.

Até já.

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