“Faria todas estas perguntas se falasse de um livro?”, por Bernardo Afonso

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“Inspirada em personagens e eventos históricos, esta obra de ficção foi projetada, desenvolvida e produzida por uma equipa multicultural de diversas crenças, orientações sexuais e identidades de género.”

Lê-se isto cada vez que entramos num jogo da saga Assassin’s Creed. E arrepia-me sempre. Vejo-o como uma necessidade de os criadores se defenderem. Diz-nos que vem aí algo controverso e complexo. Este enquadramento inicial dita o tom da narrativa: a realidade é múltipla e cheia de nuances. Mas o fio condutor de cada jogo só descobrimos à medida que avançamos: há sempre quem queira impor a realidade como sendo una e indivisível. 

Tal como em toda a boa arte, há aqui um elevado grau crítico da sociedade e das suas transformações. São videojogos assumidamente contra-poder. Podemos lutar contra o poder absoluto da Igreja na Florença renascentista, contra a barbárie dos colonizadores britânicos e franceses na Guerra de Independência dos Estados Unidos da América, contra a tirania dos revolucionários republicanos franceses, ou ainda contra o autoritarismo egípcio, romano e grego. Onde há opressores e oprimidos, aí nos encontramos e tanto somos uns como outros. 

A lista de épocas históricas é extensa, bem como a equipa que as recria. São mais de 2000 trabalhadores, entre eles historiadores e arqueólogos. Entre a ficção há uma grande dose de investigação histórica, geográfica, política e social. Não se esgota numa narrativa maniqueísta e populista do bem contra o mal. O sentimento comum é o de que a corrupção moral pode vir de todo o lado. As narrativas oficiais e não oficiais são postas em causa e as intrincadas reviravoltas de cada história levam-nos à mesma tónica: a realidade é múltipla e cheia de nuances, não é una e indivisível.

É aqui que, para mim, estes jogos ganham o estatuto de obras-primas da narrativa: há réplicas e reconstruções fidedignas de grandes cidades, eventos históricos e personagens reais; contexto sobre as lutas políticas e os equilíbrios de poder de cada época. O grau de detalhe é especialmente assombroso num pequeno pormenor de Assassin’s Creed IV a que volto sempre que me lembro: a dada altura, somos piratas em mar alto e há um constante cantar de marinheiros. São recriações de dezenas de canções tradicionais chamadas de Sea Shanties, um género que entretanto se popularizou nas redes sociais. Por si só, as 35 músicas gravadas para este jogo, que servem apenas como um detalhe de sonoplastia, são um excelente álbum, com letras sobre o trabalho e sofrimento no mar e a distância dos seus. Dei por mim a ouvir mais música que desconhecia. Tal como dei por mim a ver documentários e a ler livros aos quais só cheguei por causa do jogo. Vejo o que me rodeia de uma forma diferente por causa desta saga. Quantas vezes uma obra artística expande tanto os horizontes em tantas áreas diferentes?

Violência. Foi esta a palavra que quis omitir até este momento. Penso que parte da má percepção pública que este tipo de jogos tem se relaciona com o uso exacerbado da violência. Afinal, para lutar contra o poder da Igreja, preciso de matar o papa – no jogo, está claro. A violência existe e em proporções que são muitas vezes questionáveis. Há quem argumente que este é, na verdade, o motor que propulsiona a popularidade destes jogos. São até pensados em função de públicos-alvo que paradoxalmente são contra a mensagem social que querem passar. Um ténue equilíbrio entre suficiente violência explícita e uma subliminar mensagem estrutural. No final, há quem os jogue por causa da violência, há quem os jogue apesar da violência. Enquadro-me no segundo grupo e ainda assim pergunto-me: há aqui uma apologia da violência ou apenas um espelho onde me vejo a mim? Afinal, estes jogos têm sistemas de moral bastante avançados, e o uso da violência não é sempre exigido. Esse chega a ser o ponto central de algumas narrativas: a possibilidade do uso da violência para uma resposta rápida e até catártica, ou a recusa da violência para uma resposta mais complexa e com uma maior profundidade filosófica. O espelho está à nossa frente.

A saga Assassin’s Creed não é caso único. Poderia ter-me focado noutros que usam a violência como forma de crítica social, como Grand Theft Auto (que me mostrou a América de Trump antes de Trump), Call of Duty ou Last of Us. Este último foi recentemente adaptado a uma série da HBO, naquilo que vejo como uma legitimação da sua qualidade artística e narrativa. O que me faz ter cada vez mais questões sobre o poder de crítica e mudança social que os jogos têm. Podem os jogos ser verdadeiramente revolucionários e contra-poder? Podem educar-nos mais sobre história, política e comportamento humano? Ou são a exploração de desejos primários e populistas por parte de companhias multimilionárias? É possível serem tudo isto ao mesmo tempo? Que narrativas estão os jogos a ajudar a desmontar? É possível usá-los como veículos de desinformação? A violência nos jogos exacerba ou diminui a violência na sociedade? Que dizer do risco de adição? Será possível pensar filosofia com um comando na mão? Faria eu todas estas perguntas se falasse de um livro?

Por isto, espero ansiosamente pela próxima quarta-feira, 19 de abril, para um Ask Me Anything com Nelson Zagalo, professor e investigador na área dos media interativos na Universidade de Aveiro, membro-fundador da Sociedade Portuguesa de Ciências dos Videojogos. Podemos falar destas questões e ouvir todas aquelas que tu também tiveres sobre o poder de intervenção dos videojogos. Costumo sair destas conversas com ainda mais perguntas, mas pelo caminho vou encontrando algumas respostas. Este Ask Me Anything vai acontecer na plataforma Zoom, a partir das 21h. Se apoias mensalmente o Fumaça e fazes parte da comunidade, vais receber um e-mail com as instruções de acesso no dia anterior. Espero ver-te por lá!

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