“Manual de destruição de uma família”, por Nuno Viegas

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É dos meus retratos favoritos dos Açores. Prefiro-o ao de Vitorino Nemésio, de longe. Talvez ao de João de Melo, também. Mas nunca ao de Ronda da Madrugada. Nunca. É uma reportagem de 2006, transmitida pela SIC, e assinada por Pedro Coelho.

“Ilha da Solidão” retrata a vida no Corvo, extremo ocidental da Região Autónoma dos Açores, onde não chegam a habitar quatrocentas pessoas. Um sítio onde “sempre se habituaram a viver separados do resto do mundo; não tanto por vontade, mas, sobretudo, por abandono”, e que agora, aos olhos de Coelho, se vai tornando “quase autofágico, parecendo querer extinguir-se”. A peça desapareceu em janeiro com o arquivo da Impresa, parece-me.

Não é um retrato bonito. Mal é compreensivo. Protesta-se o seu rigor. Nem sei se aplica ao Corvo em particular. Nunca lá fui. Mas reconheço ali o veio comum que admito à açorianidade: a distância. A ilha da solidão calhou ser aquela, mas podia ter sido a Santa Maria de que sou natural, no extremo oriental do mesmo arquipélago.

Há telefones e internet; e barcos e aviões, sim. Mas também há 1400 quilómetros de oceano até ao Continente. Mais quatrocentos, se o caso for chegar de Lisboa ao Corvo. É o dobro do comprimento de Portugal Continental de norte a sul. Mais do dobro, na verdade.

A Região Autónoma dos Açores – como a da Madeira, a 900 quilómetros do Algarve – tem lugar num ignorado clube europeu: o das nove regiões ultraperiféricas da União, acompanhada pelas Ilhas Canárias espanholas e cinco territórios ultramarinos franceses. Desde 2004, gozam de um estatuto particular que lhes permite flexibilizar a legislação europeia e garante mais fundos, a bem da coesão.

Há uma série de exceções abertas para as nossas ilhas. O tabaco é mais barato. Na minha mocidade, bebia-se legalmente, aos 16 anos. Quando se concorre ao ensino superior, 3,5% das vagas são reservadas para estudantes de cada região autónoma, logo que não haja oferta na Universidade dos Açores ou da Madeira (para essas poucas, têm metade dos lugares reservados). Foi assim que entrei eu: fiquei com uma das duas vagas para açorianos na licenciatura em jornalismo da Escola Superior de Comunicação Social, do Politécnico de Lisboa. É um contingente especial, oficialmente, a par com o oferecido a emigrantes, militares e pessoas com deficiência, por exemplo. Uma quota.

Existe porque a distância não é uma peculiaridade que garante a pacatez da vida de ilhéu. É um entrave que contribui para que sejamos mais pobres, morramos mais cedo, estudemos menos, tenhamos piores notas nos exames nacionais, talvez, até, para que votemos menos. Existe porque esta ruralidade marginalizada, disse-o em 2011 a presidência açoriana da Comissão de Regiões Ultra Periféricas, falando em especificidades, é de “caráter perene”, permanente.

Serve de discriminação positiva porque, chegar ao ensino superior nascendo nos Açores ou na Madeira, significa, com frequência, pedir a uma família pobre que ao ver as suas crianças atingir a maioridade as desterre para uma selva urbana cara, de onde não são possíveis visitas de fim de semana; para onde não se consegue mandar uma sopa feita; onde não se pode ser companhia em mudanças de casa; idas ao banco; nem sequer visitas ao hospital, onde já não se tem médico de família. Mesmo quem possa escolher ficar pela universidade do arquipélago tem de mudar de ilha, se não tiver nascido na certa.

É caro estudar sendo açoriano. Ficou-me a 20 mil euros a licenciatura. Foi o empréstimo que pedi à Caixa Geral de Depósitos para cá sobreviver até a terminar. Cobriu quarto, propinas, comida, fotocópias e viagens. Cem euros pela viagem sempre que lá quisesse ir, já contando com o reembolso do Estado, a que tinha direito. Primeiro, tem de se desembolsar a tarifa completa. Umas vezes mais, outras menos. Para as minhas contas, custava sempre demasiado. Duzentos, trezentos, quatrocentos euros em mão no Natal, Páscoa, verão, entre exames. Nem sempre dá. Eu conseguia. Há quem fique. Há quem nunca vá. Há quem nunca venha. Nem sempre se consegue financiar o desterro dos estudos. Por isso somos poucos.

“Dão-nos pouco tempo”, disse-me uma vez a minha mãe. A distância, para os estudantes ilhéus que hão de saber este fim-de-semana em que escola ficam colocados, impõe-se em jeito de guilhotina. As matrículas começam na segunda-feira. Quando eu soube, estava na baía de São Lourenço, aqui em Santa Maria, um anfiteatro natural rodeado de vinhas por todos os lados. Passava pouco da meia noite. Vim cá fora, com a minha irmã. As luzes de casa chegavam ao mar, a cinquenta metros do portão. O horizonte eram ondas negras. Já sabia que tinha média para entrar. Já tinha o bilhete comprado há semanas. Abri um excel com notas. Fiquei a duas horas de avião de tudo. “Destrói uma família”, disse-me uma vez o meu pai.

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