“Porque nos atrasámos a pagar os ordenados”, por Nuno Viegas

A 24 de maio, pela primeira vez, ficámos sem dinheiro para pagar os salários da redação do Fumaça. Há coisa de um ano que sabia que vinha aí. Em abril de 2022, a horas de arrancar o ciclo Mais Um Dia, eu e o Ricardo Esteves Ribeiro fizemos no Teatro São Luiz a nossa reunião semanal de angariação de fundos. Ponto de situação: tínhamos dinheiro no banco para pagar salários por 12 meses, mais ajuste menos ajuste. Depois, ou se despedia a maioria das pessoas a trabalhar no Fumaça, ou se encontrava bolsas que a financiassem pelos anos que faltam para dependermos apenas das contribuições mensais da Comunidade.

No par de anos que levo a convencer estrangeiros a dar dinheiro a uma redação sem fins lucrativos que publica podcasts em português que não conseguem ouvir, foi aí que tive mais presente esta certeza: ninguém nos ia dar dinheiro. Talvez umas dezenas de milhares de euros, entre mecenas e financiamento de projetos. Mas nunca o suficiente para pagar o orçamento anual da redação. Elenco nas notas dessa reunião nove potenciais doadores. Sabíamos aí que Portugal ou não era uma prioridade, ou nem era um país elegível para qualquer um deles atribuir bolsas (e até hoje de nenhum desses conseguimos alguma). A filantropia internacional para jornalismo está concentrada em regimes autoritários, olhando para o leste europeu e o sul global. No norte e centro da Europa, nos EUA e Reino Unido, a filantropia nacional própria consegue sustentar redações sem fins lucrativos. Mas desde o sul europeu, estava esgotada a nossa rede. Nem da Open Society Foundations havia dinheiro, após fecharem o seu programa para média, nem de nenhuma das outras organizações filantrópicas que há anos andávamos a namorar em conferências, chamadas e newsletters.

Em Portugal, não há uma única bolsa estrutural de apoio ao jornalismo. Aqui e ali, há uns milhares de euros para reportagens com temas restritos ou restrições de elegibilidade, e dinheiro para sucedâneos jornalísticos (projetos de verificação de factos e de literacia mediática). Mas nada que pague os salários de uma equipa a tempo inteiro. Bem tentámos. Enviámos propostas a duas dezenas das maiores fundações portuguesas para lhes pedir que apoiassem o jornalismo independente. Uma após outra – salvo uma possível bolsa de 5 mil euros de que esperamos confirmação formal desde janeiro – informaram, “não obstante o nosso reconhecimento do mérito do vosso projeto”, que não havia um cêntimo para pagar salários de jornalistas.

Em dezembro do ano passado, quando a Comunidade Fumaça passava a pagar mais de metade do nosso orçamento, graças ao lançamento de Desassossego, enviámos um email com um título à LinkedIn – “Why our best financial position is also our worst” – às 70 pessoas que, desde fevereiro de 2021, convencemos a subscrever a nossa esporádica newsletter em inglês sobre sustentabilidade dos média: doadores, gestores de bolsas, administradores de fundações, jornalistas a construir órgãos de comunicação social. 35 abriram o email. Três dias depois, alguém com que há anos falávamos, apesar de trabalhar numa fundação que não dava dinheiro em Portugal, perguntou se queríamos reunir com a fundação onde estava agora. Fora criada ano e pouco antes com o dinheiro do holandês John Caspers, um dos recém-bilionários fundadores do processador de pagamento Adyen. A Stichting Limelight Foundation. Querem eles “apoiar um ecossistema de informação forte e livre na era digital”. Começou aí um processo de candidatura (o que implica uma expression of interest, formal application, due diligence, e outros termos em inglês sobre cujo conteúdo um dia escreverei) moroso, gradual, feito de esperas, incertezas, PDFs e excels, que ocupou a mim e ao Ricardo parte considerável deste ano.

Sabia que se desse (e achava que podia dar, desde a primeira reunião) ia ser cortado rente. Os salários de maio não eram o problema maior. Não havia dinheiro para os transferir no dia 24, mas havia de chegar nos dias seguintes o suficiente de contribuições mensais para cobrir o que faltava (acabámos por receber os ordenados a 26). Algures havia de chegar dinheiro da Comissão Europeia, também, para o projeto Monetising Value, e uma segunda tranche da bolsa que recebemos este ano da Rosa Luxemburg Stiftung, o que dava para os custos até agosto. Mas não sabíamos quando ia cair na conta. Portanto, a 24 de abril, tínhamos já recolhido entre a equipa algumas pessoas voluntárias para não receber por uns meses, de maneira a que quem tivesse despesas mais altas conseguisse manter o ordenado até nos chegar esse dinheiro.

Quando o Luís Marquez, responsável pela nossa gestão operacional, nos avisou por mensagem de que estavam atrasados os salários não sabia ainda que horas antes (sem que eu, num suado concerto de Chk Chk Chk em Chelas, nem o Ricardo, em reportagem em Belém, na Palestina, o notássemos) tínhamos já recebido a confirmação de que a Limelight Foundation ia doar, até 2025, 295 mil euros ao Fumaça. É financiamento estrutural, destinado a pagar os salários da atual redação (as despesas com pessoal são 86,6% do orçamento) enquanto nos aproximamos de ser totalmente sustentados pelo nosso público. Chega até 2025, se crescer dentro das nossas previsões a Comunidade Fumaça, com o lançamento das nossas (algumas, mas não todas) investigações sobre policiamento, o sistema prisional, a indústria da ajuda na Palestina, o apagamento histórico de mulheres, e o Programa Especial de Realojamento. Receber esta bolsa, de resto, estou disso convicto, foi possível apenas porque a Comunidade Fumaça garante já tanto do nosso orçamento. 

A pedido da Limelight, o contrato completo que rege a aplicação da bolsa não foi publicado no nosso site, mas a candidatura formal à bolsa (que é parte desse acordo) pode ser lida aqui. Os termos e condições são os mesmos que para todas as outras bolsas atribuídas pela Fundação. O contrato integral pode ser consultado submetendo um pedido individual aqui. A Limelight Foundation publicará os seus termos e condições online quando concluir um processo interno de revisão em curso. A redação do Fumaça debateu e negociou estas regras de publicitação, em múltiplas reuniões, para definir linhas vermelhas consensuais, e garantir, antes de assinarmos, que se cumpria a nossa política de transparência radical.

Foi uma boa semana, essa. Recebemos também, logo a seguir, uma bolsa estrutural de 20 mil euros da Guerrilla Foundation, criada pelo grego-alemão Antonis Schwarz, herdeiro da fortuna gerada pela farmacêutica com o seu apelido. Este ano a gestão passou a ser feita por um grupo de ativistas, e outros oito doadores começaram a contribuir com 40% do seu orçamento, numa experiência de filantropia participativa que quer atribuir “bolsas para promover o trabalho de movimentos sociais de base na procura de mudanças sistémicas”. Podes consultar esse contrato aqui, o resultado de um processo de candidatura começado em novembro passado.

Este dinheiro permite-nos sair da contração orçamental em que entrámos no último meio ano, para estender o dinheiro no banco até uma bolsa, retomando boas práticas laborais, como o garante dos aumentos salariais anuais, que vão para lá de cobrir a inflação registada desde janeiro de 2021. Podes consultar aqui o nosso orçamento atualizado para 2023.

Conseguimos com estes fundos, também, expandir a equipa permanente de volta à dimensão que tinha no início deste ano, contratando alguém para assumir o marketing do Fumaça. A Maria Almeida, responsável até agora por esta área, dedicar-se-á a tempo inteiro ao jornalismo. Podes ler sobre esse processo de recrutamento abaixo, e saber como te candidatares, até 3 de agosto , aqui

Eu e o Ricardo não sabemos fazer angariação de fundos. Andamos a aprender. Durante os últimos meses, tivemos uma dúzia de sessões de mentoria com a Briggitte Alfter (que, desde 2008, cria infraestrutura para o financiamento do jornalismo independente e a colaboração transfronteiriça na Europa, e é das pessoas neste planeta que mais me intimida intelectualmente). Foram pagas pela Open Society Foundations, num gesto de despedida. Discutimos nessas horas desde ética na angariação de bolsas até como organizar uma lista de contactos. Procuramos perceber como diversificar fontes de financiamento, encontrar oportunidades fora dos tradicionais mega doadores, ajustar os programas de outros às nossas necessidades, não voltar a reunir num teatro municipal em Lisboa para olhar sem esperança um caderno e ponderar se mais vale despedir meia equipa ou pôr toda a gente a trabalhar dois dias e meio por semana. Para ponderar, aqui era só eu, que alternativas tenho a voltar a uma redação de atualidade.

Não quero precisar de saber fazer isto. Primeiro, porque me deixa ansioso que dependa do que faço o salário dos meus camaradas. Surge-me no duche, surge-me ao pequeno almoço, está sempre lá. Depois, porque o meu trabalho responde ao interesse público. É do público (e incluo aqui o financiamento público Estatal, que temos igualmente em falta) que quero que venha o dinheiro que me permite fazê-lo. Creio que é a quem nos ouve que tenho de prestar contas. Faço os relatórios e as propostas e as reuniões e os festivais. Mas preferia, preferia mesmo, poder fazer jornalismo. Vamos continuar a procurar bolsas. Queremos ser totalmente financiados pelas pessoas quando acabar a que recebemos agora. Mas, se não chegarmos já lá, gostava que não fosse tão à justa a próxima.

Acho que pode dar (para chegar lá), se me ajudares a ser casmurro.

Subscreve a newsletter

Escrutinamos sistemas de opressão e desigualdades e temos muito que partilhar contigo.