“Uma viagem com dinheiro nazi”, por Nuno Viegas

Este texto foi lançado originalmente na nossa newsletter. Se quiseres receber estas crónicas, recomendações de reportagens, podcasts e filmes no teu email, subscreve aqui.

Escrevo dois tipos de newsletters: aquelas em que reclamo e aquelas em que promovo. Inauguro aqui uma terceira categoria: aquelas em que me interrogo. Comecemos pela angariação de fundos.

Neste momento, mais de metade do orçamento do Fumaça é pago por contribuições mensais do público (já assim fora por breves meses, no final de 2021, antes de orçamentarmos a mudança de redação). Foram precisos cinco anos a publicar podcasts narrativos, entrevistas, newsletters, para convencer perto de 1900 pessoas a juntarem-se à Comunidade Fumaça. Em 2018, no total, o Fumaça conseguiu pouco mais de dois mil euros em contribuições mensais recorrentes do seu público. Mas nesse ano gastou 64 mil. Este dinheiro veio de bolsas: doações estruturais negociadas individualmente com fundações nacionais e estrangeiras. São 72% das receitas históricas do Fumaça: mais de meio milhão de euros da Open Society Foundations, 30 mil da Rosa-Luxemburg-Stiftung, e 17 mil da Fundação Calouste Gulbenkian, principalmente.

A dificuldade originária do nosso modelo de financiamento a longo prazo – coletivo, não transacional – está em garantir os fundos para empregar uma equipa antes da autossustentabilidade. O meu trabalho, com o Ricardo Esteves Ribeiro, além de fazer jornalismo, é encontrar esse dinheiro.

Problema número um: a quem se pode pedir dinheiro? Temos questões pragmáticas. Portugal está num limbo de financiamento. Não há bolsas para jornalismo de investigação cá. Até a Gulbenkian deixou de distribuir fundos para aí. E lá fora investe-se pouco, e cada vez menos, na Europa Ocidental. Também a Open Society Foundations está a reduzir a atividade na Europa.

Temos questões éticas. Desde o início há um princípio: não é permitida qualquer interferência editorial. Não cabe a um doador opinar sobre as escolhas da redação. Informamos quem nos financia daquilo em que trabalhamos e a que nos propomos, de planos de crescimento e execuções orçamentais. Mas não pedimos autorização para investigar. Não adaptamos o que dizemos, nem publicamos a pedido.

O resto, construiu-se. Exemplos práticos. Exército de Precários, série Fumaça sobre segurança privada, foi a investigação que começámos em 2018 porque foi a essa que, de várias que candidatámos, a Fundação Calouste Gulbenkian decidiu atribuir uma bolsa. Mudámos. Hoje, não começamos investigações para receber financiamento. Só procuramos bolsas para trabalhos que já temos em mãos. Acho má política submeter escolhas editoriais a incentivos financeiros. 

Mais um. Em 2020, o Sindicato dos Jornalistas atribuiu a Desassossego, série sobre saúde e doença mental à época sem título nem sinopse, uma bolsa de jornalismo em saúde de dois mil euros financiada pela farmacêutica Roche. A investigação já estava em curso. Nunca exerceram influência. A doação vinha sem contrato e mediada por uma organização de trabalhadores. Mas achamos má política permitir a uma instituição financiar diretamente investigações em que seja parte interessada. Hoje, não nos candidataríamos. 

A construção continua. Aqui, as questões atuais. Perto de metade do orçamento do Fumaça ainda tem de ser financiado por bolsas, enquanto trabalhamos em mais investigações que façam novas pessoas contribuir para a sustentabilidade da redação. À medida que procuramos diversificar doadores, garantir a atual equipa do Fumaça por alguns anos, há alguém a quem não pediríamos dinheiro? Há doações que se recusam?

Desde terça-feira, estou em Gut Siggen, herdade e centro de congressos da Alfred Toepfer Stiftung, no norte da Alemanha. Pagou-me a vinda a fundação para o European Collaborative Journalism Programme. Dedicam-se a promover a unidade europeia e a diversidade cultural. O seu fundador, cujo nome mantêm “como um ato de transparência”, financiou o partido nazi. O grupo comercial homónimo que detinha vendeu materiais de construção para o ghetto nazi de Łódź, na Polónia ocupada.  Morreu em 1993. Às suas custas, ando a discutir com jornalistas europeus como e se colaborar em investigações sobre liberdade e dignidade humana. Eu sinto-me confortável com receber este dinheiro, dado assumidamente a algum contragosto do fundador.

A Open Society Foundations é financiada por George Soros, especulador financeiro. A Rosa-Luxemburg-Stiftung, pelo socialista Die Linke, partido político alemão. A Fundação Calouste Gulbenkian, historicamente, pela petrolífera Partex. Seria legítimo pedir uma bolsa à Citi Foundation? À Konrad-Adenauer-Stiftung, da conservadora CDU? À Fundação EDP? Eu sentir-me-ia confortável. Mas esta posição não é consensual sequer na redação: no último retiro do Fumaça discutimos, sem conclusões, se aceitaríamos uma bolsa de grandes poluidores. Eu creio que mais valeria ter esses fundos a contribuir para o jornalismo independente – em que é quem trabalha numa redação a decidir os seus destinos – do que não os ter.

Não se lançam a distribuir bolsas cegamente instituições que tanto capital acumularam. Nenhuma doação é desinteressada, acredito, seja pelo desejo efetivo de procura um fim (jornalismo independente, progressista, de investigação, em áudio, o que se queira), ou por benefícios reputacionais ou fiscais. Acredito que nenhum dinheiro me chega limpo, também. Defendo a transparência nas fontes de financiamento, e a submissão da angariação de fundos às decisões editoriais, como atenuadores. Decide-se o que se quer cobrir, como fazer o trabalho livre e eticamente, e depois percebe-se como o financiar, às claras. São as boas práticas de gestão, operacionais e editoriais, que permitem ultrapassar o quão difusa é qualquer linha vermelha moral sobre a origem dos fundos angariados.

Mas haverá um limite, não? Pode traçar-se o limite por provir o capital de indústrias de si imorais. Por manter o doador, em particular, práticas imorais, pessoalmente ou em atividades comerciais. Por ser a bolsa um esforço de propaganda (washing na cor que se queira) em que se recusa participar. Parece-me que aceitar filantropia implica participar, a certo ponto, na campanha de imagem do doador. Mas acho também que é substancialmente diferente de assumir um compromisso publicitário. É possível tornar claros os interesses. Deve ser contextualizada a filantropia, dessantificada a caridade.  Pode traçar-se o limite por manter o doador interesses que não desejamos servir. Seria de questionar porque doariam ao Fumaça grupos conservadores, por exemplo. Há que encarar fundos estatais estrangeiros como ferramenta de geopolítica. E pode traçar-se, simplesmente, por implicar a bolsa um impacto reputacional tão considerável junto do público que ficava em causa o próprio modelo.

Haverá para cada questão um caso limite em que fica clara a recusa. Mas, mesmo nesses,  não porque seja moralmente errado usar aquele dinheiro, penso, mas porque usá-lo serve pior a redação do que recusá-lo. Não consigo chegar a normas consistentes para traçar essa fronteira, definir angariação de fundos ética. Onde tem de se parar para proteger o interesse público do jornalismo? Até onde se deve ir para garantir que se faz jornalismo de interesse público? E se a bolsa fosse da Fundação Berardo? Da Missão Continente? De uma fundação do IKEA? De uma da Advancecare? Da Luz Saúde?  Da Navigator? Da Mastercard? Da Renault? Do TikTok? Google? Betclic? Casino Estoril? Benfica? Amazon? Zara? Coca-Cola? Goldman Sachs? Uber? Petrobras? ExxonMobil? Lockheed Martin? Northrop Grumman? E diretamente da Heritage Foundation, dos Republicanos? E da Desiderius Erasmus Foundation, da AfD, de extrema-direita? Uma doação da Embaixada da República Popular da China em Portugal? Do Ministério da Cultura do Qatar? Do Departamento de Estado norte-americano? E não estariam sempre melhores jornalistas com este dinheiro do que quem reclamou tanto deste como seu?

Sugere linhas também, caso o queiras, por email para [email protected].

Este texto foi lançado originalmente na nossa newsletter. Se quiseres receber estas crónicas, recomendações de reportagens, podcasts e filmes no teu email, subscreve aqui.