“O projeto de esperança da ERC, anotado”, por Nuno Viegas

Amante de formalismos que sou, nesta segunda-feira, nem dez minutos após chegar o convite, confirmo à Divisão de Relações Públicas e Protocolo da Assembleia da República que estarei presente no dia seguinte para testemunhar a tomada de posse do novo Conselho Regulador da Entidade (também ela) Reguladora para a Comunicação Social, a ERC.

Horas antes de se demitir António Costa, dei por mim, portanto, na porta principal do Palácio de São Bento, aguardando a vez de passar o detetor de metais, seguindo pessoas cuja identidade, por incúria profissional, desconheço em absoluto, mas que se reconheciam e cumprimentavam com efusividade. Sei dessa espera apenas que: não terá influído na queda do primeiro-ministro, e era eu o único homem sem gravata.

A agente da PSP nada me aponta, dou o nome à entrada sem mostrar identificação, e avanço em busca do Salão Nobre (assim grafado), seguindo as setas azul-assembleia que ordenam a subida da Escadaria Nobre (também caixa alta). Desprezando a sinalética, perde-se o grupo que comigo entrou, porventura desorientado pelo intenso cheiro a solvente (ou verniz, não averiguei), que nem o vasto pé direito daquele hall conseguiu  dispersar. Ignoro se acabarão por encontrar o seu destino.

Quando lá chego eu, cabe-me um lugar à direita da sala, nos bordos de um tapete vermelho e verde que delimita o recinto em que a posse se tomará. Toda a gente de pé. Alinho-me com o microfone do protocolo, por sua vez alinhado com o pódio transparente para discursos. Do lado oposto, deputados. Na frente da sala, jornalistas, também eles livres de gravatas, mas firmes aderentes à camisa, por que não optara eu nesta terça-feira, devido ao frio. Nas paredes do Salão Nobre, ainda, reparei eu que nunca lá tinha entrado, caravelas. Por cima do banco corrido de veludo onde se pousaram malas, um homem negro nu guiado por missionários portugueses aprende a beijar uma cruz cristã, com um soldado de armadura ao lado. Nas minhas costas, homens negros dobram-se numa vénia temerária a um português de espada na mão e sombrinha por cima da cabeça. Uma mulher negra oferece fruta aos brancos: reconheci o que me pareceu um melão, mas se poderá tratar de meloa.

Pedem-nos um passo atrás. Recuo para lá do tapete. “O Senhor Presidente vai dar entrada, o nosso Presidente”, proclama-se, e Augusto Santos Silva realmente entra, com um “bom dia”. Lê-se um textinho formal, agradavelmente breve, e, à vez, os membros do conselho regulador assinam um papel, que não vejo, numa mesa de madeira escura e tampo em pedra cinzenta ao centro da sala. Ao alinhar-se ombro a ombro com os camaradas reguladores, Rita Rola, cooptada, dá ambas as mãos a Carla Martins, indicada pelo PSD. Não noto outras expressões de emoção com interesse. Juntam-se Pedro Correia Gonçalves, também pelo PSD, e Telmo Gonçalves, apontado pelo PS.

Fala a Presidente (maiúscula minha), Helena Sousa, sugerida pelo PS. Foi para isto que vim. Vamos ouvir (mas não me coíbo de comentar). “Senhor Presidente da Assembleia da República, Senhores Presidentes dos Grupos Parlamentares” – esqueci-me desta parte, dura 50 segundos, retomo no fim –, “representantes dos Órgãos de Comunicação Social, senhoras e senhores, caros amigos e caras amigas, agradeço a presença de todos que muito nos honra.” Finda a enumeração, uma pessoa com mais desplante do que eu diz nas minhas costas: “É cada vez mais gente.” 

Agradece-se a “todos quantos, antes de nós, foram construindo a ERC”, já que “todos deram o melhor de si”, uma afirmação para cujo contraditório basta apontar a atividade da ERC até este dia. “Construiremos em cima desse legado, procurando assegurar as continuidades e as mudanças necessárias”, explica a Presidente, antes de lançar as frases de manchetes: “Abre-se hoje um novo ciclo na vida da ERC, um novo conselho regulador, novas possibilidades de colaboração.” Contentam-me, pois precisamos de uma ERC diferente, eficaz, relevante. E, ainda por cima, “renova-se a esperança, renovam-se as vontades”.

É esta a progressão natural: “Mandatos terminam, e mandatos começam”, mas “as instituições perduram se conseguirem o reconhecimento da importância da sua missão e a credibilidade da sua ação juntos dos cidadãos”. Para contraditório, novamente, noto que a ERC existe mesmo após decidir que um artigo de opinião não tem de sofrer verificação de factos, perdura, portanto, apesar da ausência de credibilidade.

Mas quem agora encabeça a ERC não votou em pareceres desse calibre, apesar de achar que representam “o melhor” que havia a dar (teve voto contra, esta última, do falecido Mário Mesquita, o único no conselho cessante a quem cederia tal classificação). Ora, o que muda, então, com este “novo ciclo”? Porque deve ser renovada a minha esperança? Que vontades inéditas motivam este conselho regulador?

Não responde de imediato. Tem de explicar antes que “a ERC atua num setor altamente sensível”, e “zela pelos direitos, liberdades e garantias de todos os cidadãos no espaço mediático”, mas também – ainda não tinha havido uma declaração de grandiosidade dos média – “pelo funcionamento do sistema democrático, como garante da defesa da liberdade de expressão, da liberdade de imprensa, do pluralismo e da diversidade de informação: valores nucleares dos quais depende qualquer regime democrático”.

Como zela, concretamente? Com “a mais absoluta independência do conselho regulador, mas numa atitude próxima, dialogante e construtiva”. Que medidas urge tomar, na prática? Oportunidade perdida. Já se está a discorrer sobre algoritmos, “inteligência artificial, streaming”, o destaque que escolhe fazer do que mudou nos quase 20 anos de ERC com que levamos. Pioraram também salários de jornalistas, por exemplo, cimentando-se a precariedade como a principal ameaça à liberdade de imprensa, mas não cabe no discurso.

Chegamos a críticas: a lei da imprensa é de 1999, desatualizadíssima (adjetivo meu). E, por isso mesmo, não a poupa a Presidente: “Os enquadramentos legais precisam de adaptações.” É o primeiro grau de mudança acima de retoques, mas parece que adaptações bastam “para que a ERC disponha de bons elementos de trabalho, de boas ferramentas”, “cumpra eficazmente o seu papel neste novo ambiente simbólico marcado pela polarização dos discursos, pela desinformação, pelos algoritmos opacos”. Voltámos ao mesmo, em termos cada vez mais genéricos, e que ignoram, por exemplo, que ainda não é possível, perante a ERC, uma redação em Portugal ser gerida horizontalmente, como o é a do Fumaça.

Há um trecho do discurso que subscrevo: “A regulação dos média não pode nem deve ser construída apenas com base na hetero-regulação. As empresas mediáticas e as empresas jornalísticas devem também ativamente promover os seus mecanismos internos de controlo de qualidade, de confirmação dos factos, de modo a desenvolvermos coletivamente um contexto informativo mais rigoroso e mais plural. Precisamos de mais provedores, de mais livros de estilo, de mais formação permanente, e de reflexão ética e deontológica. Numa palavra, precisamos de mecanismos de autorregulação mais presentes no dia-a-dia dos média.”

Afinal não subscrevo. Reparei logo, mas quis fazer um jogo de expectativas. É que a Presidente enumera os mecanismos deontológicos a introduzir (sem clamar para que seja punido o incumprimento dos que são já obrigatórios), mas esquece-se de que entre os representantes de órgãos de comunicação social na sala há uns (pelo menos um) que não vêm em nome de empresas. Não me meto em processos de intenções, mas vejo o primeiro sinal do mandato da dedicação nula a promover a reforma das estruturas de controlo dos média, fomentar a pluralidade da imprensa dando condições a jornalistas para assumirem o controlo das redações. Mas tomo boa nota de que o Fumaça, detido por uma associação sem fins lucrativos, está fora do âmbito de atuação da ERC, livre da sua regulação, de pagar taxas para mudar o estatuto editorial, ou (volto ao tema) de nomear uma diretora.

A Presidente bem nota que a informação é um “bem público”, “objetivo maior de todos numa sociedade democrática”, mas nada sugere para garantir o acesso do público ao jornalismo, eliminando as paywalls, nem a produção de jornalismo de interesse público, pela criação de bolsas estruturais para financiar as redações. Constata que “em democracia nada está garantido, […] e é indispensável o encontro de muitas vontades para que não abandonemos nunca este sentido de urgência, de melhoria, de construção de uma sociedade democrática mais sólida”. Só que não fica claro que vontades há a encontrar que querem mesmo uma democracia mais sólida.

Vamos em oito minutos de discurso quando chegamos ao inevitável “mundo de comunicação global em que vivemos”, que, como sempre, “nos obriga a prestar atenção também ao contexto externo”. Ainda há tempo para uma posição relevante: a Presidente fala agora do regulamento inaugural para a liberdade dos média que se anda a negociar à porta fechada, após proposta da Comissão Europeia, sugestões de modificação do Parlamento Europeu, e definição da posição negocial do Conselho. “Constitui novos desafios de grande dimensão e com impacto transversal em áreas diferentes da sociedade e da regulação” – algo vago, mas em frente – “que exigirão novas formas de pensar a regulação, novas modalidades de implementação e uma articulação forte com o setor e com outras entidades reguladoras dentro e fora do país. Cooperação será a palavra-chave.”

De novo, contraditório: a palavra-chave será censura. Haverá outras, se formos fazer uma nuvem de letras. Mas esta é a que se destaca, apesar de não surgir em nenhum dos textos a harmonizar. A cooperação entre reguladores operacionalizar-se-à no prestes-a-nascer Comité Europeu dos Serviços de Comunicação Social. E terá este comité, pelo artigo 16 do regulamento que aí vem, o poder para tomar medidas coordenadas “relativas à divulgação de ou ao acesso a serviços de comunicação social” de órgãos com origem fora da União Europeia caso contenham “um incitamento à prática de infrações terroristas”, “prejudiquem manifesta, séria e gravemente a segurança pública ou representem um sério e grave risco de a prejudicar, incluindo a salvaguarda da segurança e da defesa nacionais”. A ERC terá a curto prazo a hipótese legal de censurar média estrangeiros, usando o lápis azul para combater propaganda, repetindo o desastre democrático que é impedirmos o acesso de cidadãos europeus ao Russia Today. Poderá fazê-lo, ainda para mais, com base nas dúbias definições de terrorismo dos autoproclamados estados ocidentais (que assim designaram Nelson Mandela até 2008, por exemplo), e nesse nebuloso conceito que é a “segurança nacional”. Queira-se saber as muitas críticas que tenho à inutilidade deste regulamento proclamar a liberdade dos média sem criar condições materiais para a garantir, leia-se a próxima edição da Jornalismo & Jornalistas, que para essa reflexão me permitiu uns milhares de palavras. Aqui, urge voltar à declaração de intenções da Presidente, que sobre este tema (para mim, o mais relevante do seu mandato), nada disse.

“Fecho esta breve intervenção com uma nota de esperança. Vivemos num tempo duro, acelerado, em que dinâmicas de comunicação organizadas em torno do medo e da desconfiança ganham espaço. Um setor da comunicação empenhado em prestar um serviço digno, com responsabilidade social aos cidadãos, tem obrigação de contextualizar esses medos de forma transparente e de permitir a agregação em torno de propostas de esperança. A esperança é uma exigência moral. Se formos firmes na visão de uma sociedade mais justa, mais igualitária, e mais fraterna, estamos a promover esperança numa sociedade melhor, mais humanizada e mais capaz de responder às necessidades individuais e coletivas. Promover a esperança é criar a possibilidade de novos horizontes. Mas nada disto nos é dado. Tudo tem de ser construído em permanência e em conjunto. E é o que procuraremos fazer todos os dias na ERC, contando sempre com a vossa ajuda.” Como é frustrante estabelecer-se tão bem uma premissa, ao notar a “obrigação de contextualizar” os medos do público, para lhe responder com uma banalidade da dimensão de “propostas de esperança”. É bonito sonhar com uma sociedade melhor, mas é preciso mais do que continuar o legado de um regulador enfermo para se declarar que é isso que se tenta alcançar.

Há aplausos. Augusto Santos Silva avança. “Mais um teto de cristal que assim se quebra” com a eleição de Helena Sousa, primeira mulher a liderar a ERC. Para a Presidente: “Toda a sorte porque da competência não tenho dúvida nenhuma.” E depois repete independência nem vou contar quantas vezes. Compromisso, mais uma quantas. E faz o elencar das funções e orgânica da ERC. Remeto para a Lei 53/2005. Nada de novo se acrescenta. Desenha os três pilares habituais da comunicação social livre, sem propor qualquer medida para os cimentar: “rigor na informação”, “pluralidade na opinião”, “diversidade nos conteúdos”. Aplausos e – não esperava – uma fila de cumprimentos e parabéns. Começa o presidente da Assembleia da República, dando a cada mulher no Conselho Regulador da ERC dois beijinhos, e a cada homem um aperto de mão. Irrompem deputados pelo tapete vazio, fãs ao relvado, de passou-bem em riste. Dou outro passo atrás para fugir a um “Então Joaquim, estás bom?” à minha direita. Fotografo os painéis e o tapete para verificação de factos. Procuro a Escadaria Nobre. 

Escolho – está mais leve o cheiro a químicos, mas terá influenciado – perder-me no edifício do Parlamento. Ao fundo do lance abrem-se duas grandes portas em vidro. Entro para um jardim com flores garridas e um bebé de metal com água a jorrar da cabeça. Há silêncio. Volto ao interior. Nas costas de um busto de Luís Vaz de Camões, por José Aurélio, um sinal indica “Acesso Reservado”. Não percebo se não posso olhar a parte de trás da estátua, ou se alguém se esqueceu daquilo ali. Vejo as costas de Camões e nada havia a esconder. Saio pelas traseiras do Palácio de São Bento. Oito motoristas esperam por pessoas de gravata. Três senhoras a trabalhar para uma empresa de limpezas industriais passam de equipamento na mão. Um militar da GNR vigia desde uma guarita elevada à minha esquerda. Passo o portão pela entrada dos carros. Anoto contra a parede as bases do que agora lês. Acabo o caderno de bolso que abri a 21 de setembro de 2021. Vou apanhar o autocarro para a redação, mas faltam 17 minutos para o 706. Bebo uma meia de leite no Café República por 1,40€. Atrás do balcão, num quadro de ardósia, está traçada a giz uma frase de um tal de José Lima, que não sei se devia já ter lido: “Um dia de cada vez, com muita calma.” É isto um projeto de esperança?

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