“O espaço privado da coisa pública”, por Nuno Viegas

Escrevo a convite de João Ramos, elemento da Polícia de Segurança Pública que me sugeriu na passada sexta-feira o seguinte: “O senhor pode recorrer (como é que eu hei de explicar?) aos meios próprios, a dizer que o impediram de entrar aqui para filmar. Atenção, para filmar. Não é para tratar de um assunto particular.” Obrigado como estou a divulgar tentativas de limitar o direito a informar, para aqui recorro. Notando desde já que nada queria filmar.

Na tarde de 10 de março, João Ramos estava responsável pela equipa da PSP destacada para o Ministério da Justiça. Guardava o edifício pois à porta reuniam-se umas dezenas de pessoas exigindo que continuasse a investigação às mortes de Danijoy Pontes e Daniel Rodrigues no Estabelecimento Prisional de Lisboa, em setembro de 2021, após ser noticiado o seu arquivamento. Eu, o Bernardo Afonso e a Joana Batista estávamos a cobrir essa manifestação.

Desejavam as mães de Danijoy e Daniel entregar à Ministra da Justiça uma carta de questões e reivindicações. Informou-as um agente da PSP de que poderiam entrar no Ministério duas pessoas, e de que não seria Catarina Sarmento e Castro a recebê-las. Perguntei eu, de carteira profissional na mão, se nos era permitida a entrada também. “Duas pessoas”, re-informou. Entraram no Ministério da Justiça as mães. Pararam à direita da receção, no hall de entrada, visíveis pela porta envidraçada do edifício. Aí ficaram, de nós distando mão cheia de metros, conversando com dois representantes governamentais.

Foi durante a nossa espera, sob as arcadas do Terreiro do Paço, que conhecemos João Ramos. Informou-me ele, sem mais: “Não pode entrar porque, é assim, daquelas portas para dentro não pode.” Discordo. Digo que o estatuto do jornalista me dá direito a aceder a locais abertos ao público. Informa-me João Ramos: “É privado. Por isso é que à porta dos ministérios tem uma porta transparente. Todos. Pode filmar o que quiser. Agora, daquelas portas para dentro, meu caríssimo, não pode.” Diga-se: reconheço argumentos razoáveis para que não fosse permitida a gravação de som e vídeo. Para se considerar que não é de acesso público um espaço criado para que lhe aceda o público, já não vejo razão tangível.

“Se eu agora quisesse ser atendido na receção não podia?”, hipotetizei. “Só pode ser atendido se tiver um motivo válido. E eu sei o que é que o senhor quer, que é filmar”. Esclareci: “Eu não quero filmar. Posso entrar sozinho.” Mas não pude. Questionou Bernardo Afonso em que se baseava a PSP para impedir jornalistas de estar no hall de entrada – não nos gabinetes, não na cafetaria, não na secretaria, no hall de entrada – de um edifício ministerial. Explicou João Ramos: “Ouça, eu as leis, olhe, é a Constituição, é o Penal, é o Código Penal. Acha que eu sei isso tudo de cor?”. E riu-se, dando-me uma palmada amigável no braço esquerdo. 

Insistimos. Deixou uma frase a meio – “não deixam porque, para já, dê-me só um…” – e passou as portas de vidro, entrou na receção, falou com gente que desconheço, e regressou com novos argumentos: “Só com autorização do gabinete aqui do ministério, e eles não autorizam. Já está fora da nossa jurisdição. Daí aquela parte de eu lhe dizer que isto está agora tudo com vidros. Podem filmar daqui, podem fazer o que quiserem. Aqui fora. Agora, dentro, não. Então, vá, bom trabalho.”

O elemento narrativo deste texto é simples: a Polícia de Segurança Pública impediu o acesso de jornalistas ao hall de entrada do Ministério da Justiça. Justificou-se, primeiro, com “as leis”, porque era este um espaço privado a que se poderia aceder apenas com um motivo válido. Informou depois que era afinal o “gabinete aqui do ministério” que impedia esse acesso, que nunca implicava a captação, quer de som, quer de imagem. O elemento analítico é este: para ambas as justificações, julgo que estamos frente a uma restrição ilegítima e injustificada à liberdade de imprensa e ao direito a informar. Primeiro, porque é motivo válido para aceder ao espaço o desejo de, a partir dele, reportar informação. Segundo, porque não considero que deva qualquer entidade ter o poder de impedir jornalistas devidamente identificados de permanecer na receção de um edifício ministerial, em horário laboral, para fins de interesse público. Denuncio aqui essa limitação à liberdade de imprensa, como o fiz à Comissão Profissional da Carteira de Jornalista e ao Sindicato dos Jornalistas, pedindo-lhes posição pública, à plataforma Artigo 37, que já a deixou, e, perguntando ao Ministério da Justiça e à própria Polícia de Segurança Pública se consideram apropriada a restrição.

O Ministério da Justiça, através da sua assessoria de imprensa, foi claro em resposta. É aquele “um espaço público de acesso livre a todos os cidadãos.” Mas reserva-se ao direito de autorizar a recolha de imagens no interior. E nesse dia “o gabinete apenas foi confrontado com um pedido de recolha de imagens”, feito por João Ramos quando se dirigiu ao interior, sem nossa intervenção, “o que efetivamente não foi autorizado.”

Não somos um caso isolado. Três dias depois, fez-se o mesmo à RTP [referem-no aos 10 minutos de emissão] no Ministério da Habitação e Infraestruturas, durante um protesto do Coletivo Habita. A repetição agrava. Justifica-me o diagnóstico pessoal de uma democracia assim-assim, em que se recorre a ficções de transparência para impedir o escrutínio prático. São isso as portas de vidro: simulacros de liberdade de imprensa que escondem, por exemplo, os 18 meses que passámos à espera de que o ministro da Administração Interna quer agendasse, quer recusasse dar uma entrevista ao Fumaça; ou os 17 pedidos de entrevista que a PSP rejeitou a esta redação, sistemática e indiscriminadamente, sem olhar a tema ou entrevistado, nos anos que levamos a investigar o policiamento em Portugal.

Atualizado a 18 de maio de 2023, às 16h22:
A 18 de maio, a a CCPJ, após pedir um esclarecimento ao Ministério da Justiça, indicou que “se encontra vinculada ao princípio da legalidade, pelo que deve cingir-se às suas atribuições e competências, razão pela qual nada mais há a determinar”, sendo que “a matéria do direito de acesso encontra-se legalmente atribuída à Entidade Reguladora para a Comunicação Social.” Pedimos deliberação à ERC.

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