Opinião

“Morra a ERC, morra! Pim!”, por Pedro Miguel Santos

Diatribe palavrosa onde se narram algumas peripécias da convivência entre um órgão de comunicação social independente, progressista e dissidente chamado Fumaça e a Entidade Reguladora para a Comunicação Social, conhecida por ERC. 

I – Uma comunicação social com uma ERC à proa é uma canoa furada. 

Passei estes dias a remoer. Ora para frente, ora para trás, vindo-me à cabeça as mais disparatadas ideias, os mais básicos insultos. Acontece-me quando fico enxofrado com alguma coisa. Desta vez a coisa era a ERC, a tão excelsa Entidade que regula o setor dos média em Portugal. 

Na semana passada (a de 28 de abril), num email com o título “inconformidades”, deram-nos conta de que o Fumaça não estava a cumprir a periodicidade com que se tinha registado – explico-vos isto no capítulo seguinte – e alertaram para a necessidade de cumprirmos o artigo 15.º da Lei de Imprensa, citando, entre outros, o número 1.º: “As publicações periódicas devem conter, na primeira página de cada edição, o título, a data, o período de tempo a que respeitam, o nome do diretor, e o preço por unidade ou a menção da sua gratuitidade.” 

Podem pensar os menos atentos que a ERC não faz nada. Garanto-vos não ser assim. Fomos apanhados. Não constava na página inicial do nosso site o nome do diretor do Fumaça. Desde que iniciámos o processo de registo como órgão de comunicação social (OCS), em abril de 2018, que este detalhe é uma questão a que ERC dá muita importância. 

Isto é uma saloiice. Mas é uma saloiice inscrita na Lei da Imprensa. A ERC lê à letra e entende as “publicações periódicas” como objetos que se imprimem e têm uma primeira página, um cabeçalho com letrinhas pequenas ao lado do logótipo, onde se indica o preço e o dia em que o jornal foi publicado. Sucede que o Fumaça não é um jornal. Não se imprime. E que a mesma ERC confirmou, em junho de 2018, a inscrição do Fumaça como OCS com suporte online. 

Após a inscrição, começou a saga. Emails para frente e para trás, uma reunião pessoal para assegurar como tinham as coisas de ser e, em setembro de 2018, mesmo sem o nome do diretor no cabeçalho ou no fundo da página principal do site, a ERC chegou à conclusão – como argumentámos à data – de que essa informação estava mais do que clara e acessível na ficha técnica e que, portanto, as “inconformidades encontram-se resolvidas”, lia-se no email que aparentemente encerrava o caso.  

Pois bem, chegados a abril de 2020 eis que bate à porta a Entidade e nos relembra, mais uma vez, de que não havia nome do diretor na página principal do site. Aqui o remoer levou-me a Glória Bastos. Se não a conhecem, saibam que é famosa q.b., pelo menos no imaginário popular da Internet e entrou na minha (nossa?) memória por causa de um daqueles vídeos de “apanhados TVI Porto” que fazem há anos sucesso no YouTube. Rodeada de outros pais e crianças, protestava à porta de um estabelecimento de ensino e explicava a tática: “A minha neta, amanhã, não vem à escola; quinta-feira, não vem escola; e sexta-feira não vem à escola, e acabou. Pronto, acabou a conversa.” Falava revoltada, com determinação e ruborescia de emoção. Perante tamanha convicção, o repórter lá lhe perguntou o nome. “Eu? Glória Bastos. Glória dos Reis Bastos, é o meu nome. Eu dou a cara.” 

Pois é chegada a altura. Para quem não tinha ainda descoberto na nossa ficha técnica, na Wikipédia, em entrevistas várias (a última das quais à VISÃO), ou no Portal da Transparência da ERC, o diretor do Fumaça chama-se Pedro Miguel Santos. Sim, eu mesmo. 

Quero esclarecer que estou diretor, sou jornalista, mas não sou dirERCtor. A diferença, como vão ver, é grande. A obsoleta e vigente Lei n.º 2/99, de 13 de Janeiro, conhecida como Lei da Imprensa, entende que “as publicações periódicas devem ter um diretor” (parece-me sensato) e que a este compete, entre outras responsabilidades: “orientar, superintender e determinar o conteúdo da publicação”; “elaborar o estatuto editorial” e “designar os jornalistas com funções de chefia e coordenação”. Acontece que o Fumaça não é assim. Não temos hierarquia e as decisões são tomadas por toda a redação. Funcionamos de maneira horizontal: há responsabilidades, há tarefas atribuídas, mas não há chefe a pôr ou a dispor. Não há dirERCtor. Definimos coletivamente os destinos da publicação, os trabalhos e as investigações em curso e até elaborámos em conjunto, vejam lá bem, o nosso Estatuto Editorial. Há uma lógica empresarial e autoritária na forma como a legislação entende a função da pessoa que ‘dirige’ um OCS. Por isso sempre recusámos a ideia de destacar na página principal do site o nome da pessoa que tem o ‘cargo’. Porque isso acrescenta zero ao conteúdo jornalístico das nossas peças e ao compromisso que temos com quem nos ouve, lê e vê. O que tem de estar assinado são os trabalhos, para que seja claro quem neles participou. E deve também ser claro quem são as pessoas que assinam entrevistas, reportagens e séries, quem fez o quê. A transparência faz parte da nossa matriz e não há no panorama nacional nenhum órgão de informação tão transparente como o Fumaça: desde o início que damos conta de quem somos, como nos financiamos e como gastamos esse dinheiro. 

Sei que são raras as redações onde os jornalistas orientam e gerem os seus locais de trabalho, mas não custa recuar um pouco no tempo e olhar para a história da comunicação social portuguesa. Embora com fins lucrativos (ao contrário do Fumaça) foi uma cooperativa de jornalistas, a Projornal, a mãe d’O Jornal, do Sete ou do Jornal de Letras. Essa sociedade ajudou ainda a nascer a TSF e, indiretamente, a VISÃO e até a SIC.

Agora que já sabem quem é o ‘Presidente da Junta’, informo solenemente a ERC de que o meu nome já é uma nota de rodapé no site do Fumaça. Estamos sem paciência para esta brincadeira e temos jornalismo para fazer. Mas, entretanto, sugiro à Entidade que vá procurar à página principal de outros OCS digitais, como o Observador, o ECO ou o Polígrafo, os nomes dos seus diretores. 

II – A ERC nasceu para provar que nem todos os que regulam sabem regular!

Antes do ‘problema’ do DirERCtor, o regresso da Entidade às nossas vidas aconteceu por outra bizarria processual. 

O primeiro email que chegou a semana passada titulava assim: “EDOC/2020/3044 – Pedido de prova de edição da publicação periódica online Fumaça, nº 127119”. A mensagem, sem qualquer texto no corpo a não ser a assinatura e despedida automáticas, tinha um PDF em anexo, como se fosse uma carta, onde se pedia “o envio da última edição, da publicação periódica ‘Fumaça’ no prazo de vinte dias contados da data de receção do presente ofício, uma vez que ao aceder ao site a última publicação disponível reporta-se a novembro de 2019”. 

Dá-se o caso de não só na página inicial do site, como também no arquivo – onde estão todos os nossos trabalhos, por ordem cronológica – haver várias entrevistas e reportagens publicadas em 2020, sendo o mais recente um episódio da série a “A Serpente, o Leão e o Caçador” [O Caçador (Parte 1), publicado a 16 de abril]. Como é que a ERC conseguiu não ver ou ler isto? Escapa-me. Como conseguiu não telefonar, tentando averiguar a situação? Ultrapassa-me.

Optou pelo email, ‘que assim fica tudo escrito’, como se diz. E essas mensagens nunca chegam sem um avisozinho, um ‘porta-te bem senão levas’, legalmente embasado: “Mais se informa que, nos termos do previsto pelo n.º 1, do art.º 21.º, do DReg. n.o 8/99, de 9 de junho, com as alterações introduzidas pelo DReg. n.º 2/2009, de 27 de janeiro, as publicações periódicas devem observar a periodicidade que consta do seu registo, sendo o mesmo cancelado oficiosamente em caso de inobservância deste preceito, conforme determina o n.º 1, do art.º 23º, do citado decreto regulamentar.”

Lá se respondeu à ERC dando conta de que não estavam a ver bem, de que a última publicação não era de 2019, e fazendo a prova de que, sim, em 2020 temos feito e continuamos a fazer jornalismo. Mas cometemos um erro. Dissemos que a nossa periodicidade era semanal. Na cabeça da equipa era assim até ao final do ano passado: publicávamos algo todas as semanas, e em muitas delas dois, três ou quatros artigos, como aconteceu na cobertura das eleições legislativas de outubro de 2019. Depois de ponderarmos se esse ritmo fazia sentido, chegámos à conclusão de que não e explicámos a quem nos segue que íamos diminuir o ritmo de publicações. Só que formalmente, na ERC, a periodicidade do Fumaça é diária. E não o é por acaso. Quando nos fomos registar explicámos que não tínhamos um dia fixo de publicação e o funcionário da ERC de serviço aconselhou-nos, nesse caso, a optar pela periodicidade diária. É isso que está escrito na ficha técnica – obrigatória por lei – no nosso site. Desde 24 de junho de 2018, data em que a Entidade despachou positivamente o nosso registo, o Fumaça nunca publicou diariamente. Nunca. 

Está mal o nosso registo e precisamos de alterar a periodicidade? Certamente. Há um responsável por isso? Sim, a ERC. 

E, mais uma vez, estão só a fazer o seu trabalho. Mas fazem-no mal, de forma contraditória e burocrática. Seguem à risca legislação absurda sem o menor espírito crítico. Vejamos. 

De acordo com a Lei n.º 53/2005, de 8 de novembro, que instituiu a Entidade e os seus estatutos, é sua competência “proceder aos registos previstos na lei, podendo para o efeito realizar auditorias para fiscalização e controlo dos elementos fornecidos”. Cabe-lhe, pois, verificar se as regras do registo das publicações periódicas, empresas jornalísticas, noticiosas, dos operadores de rádio e de televisão definidas no Decreto Regulamentar n.º 8/99, de 9 de junho, republicado pelo Decreto Regulamentar n.º 2/2009, de 27 de janeiro, são observadas. 

Este lindo pedaço de legislação obriga as publicações periódicas a “fazer prova da sua publicação, através do envio à Divisão de Registos, durante o mês de março de cada ano, do último exemplar publicado no ano anterior, sob pena de cancelamento do registo”. 

Nunca fizemos isto no Fumaça (nem nunca nos foi pedido para o fazermos). Duvido que algum OCS o faça ou tenha feito. Não o fazer dá direito a ter o registo cancelado. 

Mas a lei, sendo cega, não estará totalmente errada? Não será função da ERC verificar se algo é publicado ao invés de pedir provas de publicação? Não têm jornais, revistas, rádios, sites e televisões mais do que fazer do que andar a enviar à ERC provas de vida? 

Talvez a Entidade não tenha meios para essa verificação mas, pelo menos, quase 165 mil euros ninguém lhos negou. Olhando para o último Relatório de Atividades e Contas publicado no seu site, o de 2018 – o do 2019 ainda não está online, embora a instituição tenha a obrigação de o entregar no Parlamento até 31 de março, e de ser ouvida na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias até ao final de abril, coisa que ainda não aconteceu – inscreveu um gasto de 52.788‬ euros em compra de jornais e revistas (de 2015 até 2019), 22.098,67 euros em serviços de Internet (até janeiro de 2021) e 90.036 euros em armazenamento e acesso a conteúdos televisivos de áudio e vídeo (até ao final de 2023). Será que com tal panóplia de ferramentas a ERC não consegue ver se os OCS estão a funcionar? 

Talvez não tenha funcionários suficientes. Será? Segundo o mesmo relatório, trabalhavam na Entidade, a 31 de dezembro de 2018, 76 pessoas. E estas são as que estão nos quadros, incluindo seis ex-falsos recibos verdes integrados por ocasião do Programa de Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários na Administração Pública. Além disso, a ERC gasta milhares de euros em ajustes diretos contratando estudos, consultorias e mais um-sem número de serviços e pessoas. Alguns exemplos: desde 2008, gastou 6.035.999,16 euros em 187 contratos por ajuste ou concurso (geralmente limitado por qualificação prévia); 207.501 euros foram aplicados em estudar a hipótese de ter mais canais na TDT, em 2017; 73.740 euros para verificar se a ERC cumpria o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados; paginar e desenhar os relatórios de regulação e de atividades e contas de 2018 custou 13.038 euros. 

Mais de metade do seu orçamento em 2018 – superior a quatro milhões de euros – foi gasto no pagamento do pessoal. Logo, percebe-se que não é por falta de meios que, em pleno século XXI, a instituição não consegue cumprir a sua função. O que não se entende é a razão de ter de enredar OCS em rodriguinhos formalistas que nada fazem pela melhoria da imprensa nacional. 

III – A ERC saberá gramática, saberá sintaxe, saberá medicina, saberá fazer ceias pra cardeais, saberá tudo menos regular, que é a única coisa que ela faz! 

É a Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 39.º – “Regulação da comunicação social” – , que sustenta a existência de um organismo que regule os média. Lê-se: 

“1. Cabe a uma entidade administrativa independente assegurar nos meios de comunicação social:
    a) O direito à informação e a liberdade de imprensa;
    b) A não concentração da titularidade dos meios de comunicação social;
    c) A independência perante o poder político e o poder económico;
    d) O respeito pelos direitos, liberdades e garantias pessoais;
    e) O respeito pelas normas reguladoras das atividades de comunicação social;
    f) A possibilidade de expressão e confronto das diversas correntes de opinião;
    g) O exercício dos direitos de antena, de resposta e de réplica política.

2. A lei define a composição, as competências, a organização e o funcionamento da entidade referida no número anterior, bem como o estatuto dos respetivos membros, designados pela Assembleia da República e por cooptação destes.”

Acho importante ler-se o que diz a Constituição para uma análise da pertinência da ERC. Organismos reguladores sempre existiram e foram evoluindo – resta saber para que servem e quem servem. Do Conselho de Imprensa (1975-1990) ao Conselho de Comunicação Social (1984-1990), passando pela Alta Autoridade para a Comunicação Social (1990-2006), é no governo de José Sócrates que nasce a atual ERC, pela mão de Augusto Santos Silva (atual Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros), à data Ministro dos Assuntos Parlamentares. 

O novo organismo é composto por um Conselho Regulador (CR) e tornou-se imediatamente uma sinecura para os dois maiores partidos nacionais, PS e PSD. Atualmente, os seus membros são pagos a peso de ouro. Quem ocupe a presidência tem direito a 6.129,97 euros de remuneração base mais 1.663,39 euros em despesas de representação; a vice-presidência fixa-se em 4.496,63 euros base mais 1.348,99 euros para representação; e cada um dos três vogais aufere, respetivamente, 4.204,17 euros somados de 1.261,25 euros para despesas. Notem que o primeiro-Ministro, António Costa, ganha 5.722,76 euros sujeitos a uma redução extraordinária de 5%. Com os 40% de despesas de representação, fica com 7.611,27€. Menos 182,09€ a que o presidente da ERC tem direito.

Só para citar alguns nomes, desde que foi criada até hoje, os socialistas meteram lá Azeredo Lopes (sim, o ex-ministro da Defesa envolvido no caso do roubo das armas de Tancos por, alegadamente, ter sabido do encobrimento criado na devolução das mesmas), Estrela Serrano, Arons de Carvalho e Mário Mesquita; já o PSD alcandorou Luís Gonçalves da Silva, Maria de Fátima Resende Lima, Luísa Roseira, Raquel Alexandra e Francisco Azevedo e Silva. Carlos Magno, síntese do centrão político, presidente entre 2011 e 2017, agradou a ambos

Juridicamente, a ERC é uma pessoa coletiva de direito público, dotada de autonomia administrativa e financeira e de património próprio, que responde perante a Assembleia da República. Tem tudo, só lhe falta querer fazer algo relevante. 

Nas mais das vezes, a Entidade é “pilinhas”. Escreveu-o, há quase um ano, Ferreira Fernandes – que entretanto se demitiu, com Catarina Carvalho, da direção do Diário de Notícias, por se recusarem a ter o nome associado à destruição em curso que as administrações da Global Media levam a cabo. 

Mas em geral a ERC balança entre a irrelevância e a irresponsabilidade. Veja-se:

Domingo, 13 de dezembro de 2015, 22h18, a TVI24 tinha há poucos minutos no ar o programa de comentário futebolístico “Campeonato Nacional” e começa a passar em rodapé a seguinte mensagem: “Última Hora – Banif: A TVI apurou que está tudo preparado para o fecho do banco. A parte boa vai para a Caixa Geral de Depósitos. Vai haver perdas para os acionistas e depositantes acima dos 100 mil euros e muitos despedimentos”. Pelas 22h26 a mensagem é repetida. E vai evoluindo com o passar da noite, remetendo quem vê para o noticiário da meia-noite, onde se desenvolverá a grande ‘bomba’. Podem rever tal e qual como se tudo passou: o vídeo continua no site da TVI.

Só que aquela ‘notícia’ era falsa. Totalmente falsa. Na redação do canal quatro a única pessoa que parece ter falado com alguém do Banif foi António Costa, atual publisher (seja lá isto o que for) do ECO. E fê-lo para contextualizar a situação do Banif e não para confirmar a notícia, que comentou em estúdio no bloco informativo da meia-noite. 

O banco, que passava por um processo de reestruturação e estava à venda, correu a emitir um comunicado onde negava o que era dito. Mas de pouco valeu. No dia seguinte, clientes correram aos balcões achando que o banco ia fechar e perderiam tudo. O Banco de Portugal e o Ministério das Finanças fizeram comunicados. O canal de TV também: “A TVI envia desculpas aos seus espetadores, mas também aos acionistas, trabalhadores e clientes do Banif, pela difusão de um conjunto de informações que, embora cabalmente esclarecidas no jornal ‘25ª hora’, emitido à meia-noite, poderão ter induzido conclusões erradas e precipitadas sobre os destinos daquela instituição financeira.” Os detalhes estão no relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) ao processo que conduziu à venda e resolução do BANIF. E o efeito daquela “notícia” mostra bem a magnitude do rombo: “Pese embora no mês de outubro de 2015 a posição de liquidez do Banif já registar uma redução em 332M€, a verdade é que entre os dias 11 e 18 de dezembro de 2015, na sequência da notícia da TVI, registaram-se saídas muito significativas de depósitos de clientes num total de 890 M€.” 

Nada disto impediu o diretor de informação da TVI, Sérgio Figueiredo, de ir à CPI dizer o seguinte: “O pedido de desculpas não foi por uma notícia que estava errada. Foi por termos feito algo que permitia tirar interpretações de que o banco iria fechar no dia a seguir, coisa que não dissemos”. Na prática, foi exatamente o que disseram. A notícia, nos termos em que foi dada, estava errada. Choveram críticas e queixas na ERC. Foi aberto um processo. Figueiredo resistiu. Num artigo de opinião no DN, de maio de 2016, afirmou-se “nem mártir, nem pária” e sugeriu ao regulador e aos deputados da CPI que se cultivassem: “Não leram Brecht.” 

A 31 de agosto de 2016, a Entidade emitiu uma deliberação condenatória demolidora, obrigando a estação de TV a retratar-se com um comunicado público, remetendo a decisão à Comissão da Carteira Profissional do Jornalista “para os efeitos tidos por convenientes” e aplicando uma taxa por encargos administrativos de 459 euros. O prejuízo causado terá sido cerca de 1.938.997 vezes maior do que a multa. Em 2015, a Media Capital teve 17.300.000 euros de lucro. Fez 174.386.000 em receitas ao longo do ano. A TVI é responsável por 141M dessas receitas. O diretor de informação não foi afastado, a TVI não viu a sua licença questionada. Fez-se de conta que estava tudo bem e a vida seguiu, no que à regulação diz respeito. Nos tribunais, a história foi outra. Soube-se, no mês passado, que TVI e Sérgio Figueiredo vão a julgamento pelo crime de ofensa à reputação económica do banco do Funchal. 

Paremos aqui, que isto dá que pensar. Remoamos em conjunto. Não é difícil chegar à conclusão de que fica mais barato ajudar a levar um banco à falência do que ter inconformidades na periodicidade de um órgão de comunicação social (mesmo que seja a sugerida pela ERC), já que este processo contraordenacional é “punível com coima a graduar entre €249,39 a €498,79.”

Regressemos, outra vez, à semana havida, quando, como vos contei, retomámos a convivência com o regulador. Nessa sexta-feira, 1.º de maio, chegava ao fim o programa de comentário político Eixo do Mal, que passa na SIC Notícias, eis senão quando se abre espaço a um Direito de Resposta (DR) imposto pela ERC do site ‘Notícias’ Viriato. 

Não queria acreditar no que estava a ver, ainda por cima tendo em conta o conteúdo do Direito de Resposta. Queixava-se o queixante de que – cito – “Pedro Marques Lopes referiu-se ao Jornal NOTÍCIAS VIRIATO como um ‘site de extrema-direita’ e Clara Ferreira Alves insinuou que os criadores do NOTÍCIAS VIRIATO são nacionalistas que gostam de ditadura” constituindo estas palavras “calúnias e insultos”. A SIC recusou a publicação do DR, mas o tenaz criador da cloaca digital insistiu e a ERC deu-lhe razão. Como foi possível isto suceder? À ERC o devemos, que não só aceitou registar, em agosto do ano passado, este site de desinformação como órgão de comunicação social, como o convite para o fazer foi iniciativa da própria ERC. 

A loucura é de tal ordem que a Entidade Reguladora – é esse o seu nome – também deu licença de OCS, em novembro desse ano, a outro popular site de fake news, chamado Bombeiros 24.

Para ser claro: não há dúvida nenhuma de que o ‘Notícias’ Viriato é um site que propaga ideias de extrema-direita e de que os seus criadores são nacionalistas que gostam de ditadura – basta visitar a página, ler o seu conteúdo e ter algum conhecimento de política e de história. Isto não passa a ser mentira, falso ou ofensivo por se reconhecer. Ceci n’est pas une pipe mas… haja noção. Aquilo é um portal de promoção do ódio e da intolerância, cuja única pretensão é glorificar um Portugal ficcional e uma série de ideais retrógrados. Não por acaso, a página de Facebook do ‘Notícias’ Viriato é uma das 47 páginas monitorizadas pelo grupo de investigação MediaLab do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, no âmbito do projeto “Monitorização de propaganda e desinformação nas redes sociais“.

Não tem jornalistas, não verifica factos, não faz investigação, não cumpre qualquer código ético ou deontológico a que os jornalistas se obrigam. O Direito de Resposta caucionado pela ERC por ofender o bom nome do seu criador, acontece depois do mesmo site ter difundido mentiras sobre o assassinato de Luís Giovani, em Bragança, alegando que os agressores eram ciganos – à semelhança, aliás, do que fez, na CMTV, Carlos Anjos, presidente da Comissão de Proteção de Vítimas de Crimes, ex-PJ –, o que era falso

A mesma Entidade, a 12 de fevereiro de 2020, emitiu um comunicado, depois de um encontro com o Sindicato dos Jornalistas e a Associação Portuguesa de Imprensa onde postulava: “Apenas distinguindo e qualificando o que é e não é jornalismo se torna possível identificar e credibilizar junto do público a informação que circula pelos novos meios de comunicação.” Dizia ainda que “foi decidido apelar aos órgãos legislativos que promovam, com a maior urgência, um novo enquadramento jurídico das atividades de comunicação social que leve em linha de conta a necessidade de promover: a) a definição de órgão de comunicação social; b) um novo regime de classificação das publicações e dos novos fenómenos (des)informativos; c) a criação de base legal inequívoca e a correspondente adequação do sistema de registos dos media às novas realidades”. 

Este apelo é muito importante, porque há situações de que ninguém fala e que são um escândalo. E quem faz as leis devia dar o exemplo, mas são os piores! Sabiam que a Swipe News, SA é a proprietária do jornal ECO – Economia Online e que, segundo o Portal da Transparência dos Média, da ERC, há uma pessoa chamada João Cotrim Figueiredo que detém 2075 ações na Swipe News – as mesmas que detêm, por exemplo, a Amorim SGPS ou o próprio diretor do ECO, António Costa? Ora, o deputado da Iniciativa Liberal e presidente do mesmo partido é o João Cotrim Figueiredo. No site do Parlamento, na página dos deputados, no seu registo de interesses, não há qualquer menção ao ECO ou à Swipe News. No site do ECO, na ficha técnica, essa informação não está em lado nenhum. E ainda no mês passado, o publisher do jornal online fez um editorial a elogiar uma proposta da Iniciativa Liberal, cujo título era “O que é que nos estão a esconder?”. Isso perguntamos nós? O que é que o ECO e a Iniciativa Liberal nos andam a esconder. É uma vergonha!

TODO – vou repetir – TODO o parágrafo acima é um exercício retórico. Embora contenha informações verdadeiras, induz a uma conclusão falsa. Como é isto possível? É verdade que Cotrim Figueiredo comprou 25 mil euros em acções da Swipe News, SA. E é verdade que o seu nome consta no Portal da Transparência dos Média da ERC como sendo detentor de uma parte da empresa dona do ECO. A questão é que o deputado vendeu essa participação assim que assumiu funções parlamentares – confirmou-o, numa troca de mensagens, este 6 de maio, ao meu camarada de redação Nuno Viegas. Logo, a informação do site que a ERC criou para garantir o cumprimento da Lei n.º 78/2015, de 29 de julho, que regula a promoção da transparência da titularidade, da gestão e dos meios de financiamento dos média, ao invés de esclarecer, confunde. 

Viram o que fiz no parágrafo escrito em modo troll das redes sociais? Dei uma de ‘jornalista’ do ‘Notícias’ Viriato. Juntei uns factos, baralhei e dei de novo. É assim que por lá se fazem ‘notícias’. E vejam bem o brilharete de citar informações do site da instituição que me autorizou o registo para inventar um facto. De génio!

A informação no Portal da Transparência dos Média está desatualizada. E a responsabilidade de a manter em dia é da Swipe News. Alguém se esqueceu de a atualizar. Mas eu pergunto: se é suposto a ERC ser a entidade a que o Estado dá meios e poderes para cumprir o artigo 39º da Constituição, nomeadamente o de “garantir a independência perante o poder político e o poder económico” dos média, como é possível gerir uma base de dados na qual um deputado é – volto a dizer, já não é, foi, mas naquele registo ainda é – acionista de um jornal digital dedicado à economia, com um manifesto editorial que poderia ter sido escrito por qualquer apoiante da IL, e não ver nisso um conflito de interesses? Não seria isso uma ingerência da política na comunicação social? 

Mas, se acharam por momentos que o comunicado da ERC de que falei acima era a prova de que a noção tinha chegado à sede do regulador, esqueçam. Por causa da ‘legalização’ do ‘Notícias’ Viriato e Bombeiros 24, o Conselho Regulador da ERC foi ouvido no início de março na Comissão Parlamentar de Cultura e Comunicação, na sequência de um requerimento do BE, para prestar esclarecimentos sobre o registo de sites de desinformação como órgãos de comunicação social fidedignos. Garanto-vos que é uma hora e meia bem passada. Qualquer indignação, qualquer aparente incoerência, a mais pequena estupefação perante o estado das coisas são prontamente desarmadas e destruídas com a sapiência jurídica e o legalês afiado do Conselho Regulador. A ERC não anda aqui a brincar. À ERC ninguém dá lições sobre regulamentos, procedimentos ou outros paramentos. Não há detalhe administrativo fora do lugar. O expoente máximo do funcionalismo burocrata e acrítico está ali – em nada a ERC falhou, de nada pode ser acusada, tudo foi e será instruído como deve ser, nada foi ou será feito sem o correspondente processo, sem a queixa de quem se indigna. A ERC só existe para seguir a Lei, para a cumprir e nada tem a opinar, a propor, a sugerir, pois a sua função não é ter opiniões, é seguir a regras. O respeitinho é muito lindo e nós somos um povo de respeito, né filho?

No meu remoer, veio-me à lembrança Ambrósio Silva, um zeloso funcionário público, chefe da 3.ª Secção, que se queixava ao superior sobre a Revolução dos Cravos. A imagem, que por estes dias circulou nas redes sociais, tinha o seguinte texto [cuja veracidade não verifiquei mas, para a função ilustrativa pretendida, dá igual]: 

“À Consideração superior
Exm.º Senhor Diretor-Geral

Informo V. Ex.ª que ontem, dia 25 de Abril de 1974, vários funcionários faltaram ao serviço, invocando ter ocorrido uma revolução no País. Esclareço que esta revolução não foi autorizada superiormente, não se vendo qualquer justificação para as faltas, tanto mais que o serviço se atrasou consideravelmente.
Como na legislação vigente não estão previstas faltas pela ocorrência de revoluções, submeto o assunto ao alto critério de V. Ex.ª, na certeza de que o mesmo merecerá a atenção devida.

Lisboa, 26 de Abril de 1974
A Bem da Nação
O Chefe da 3.ª Secção
Ambrósio Silva”

A ERC é a ‘3.ª Secção’ da comunicação social. E não devia, porque a regulação do setor é mais necessária do que nunca e não pode ficar-se pela autorregulação; porque há uma confusão de atribuições entre o papel do regulador e o da Comissão da Carteira Profissional de Jornalistas; porque a Lei da Imprensa, o Estatuto dos Jornalistas e toda a panóplia de legislação dos média tem de ser atualizada para o século XXI; porque não se pode separar prática e independência jornalística de condições laborais. 

O que não se pode perdoar à ERC é a ausência de iniciativa, de proposta, de ação. Porque tem os meios financeiros e humanos, tem a independência, tem o poder. Ainda assim, os Ambrósios que integram o Conselho Regulador, ainda que reconheçam a obsolescência de muito do quadro legal que têm de aplicar na regulação, limitam-se a estar, a viver do estipêndio que a República lhes consagrou. De outra forma, há muito que o Correio da Manhã e a CMTV tinham sido postos na ordem, senão fechados – não há redação onde todos os dias, de forma reiterada, se viole de forma tão escandalosa e sem vergonha o Código Deontológico de Jornalistas e se subvertam as mais elementares regras da decência e da verdade. 

A comunicação social vive tempos críticos, ameaças à sua credibilidade, à sua sobrevivência económica, ao papel que já desempenhou na sociedade. É preciso fazer muito mais, como aqui elaborou o meu camarada Ricardo Esteves Ribeiro. É preciso repensar o jornalismo. E é necessária regulação. Outra. 

Uma comunicação social que consente deixar-se regular por uma ERC como esta é uma comunicação social que nunca o foi. É um coio d’indigentes, d’indignos e de cegos, e só pode parir abaixo de zero! 

Morra a ERC, morra! Pim!

Notas

O título, subtítulos e epígrafe final são adaptados do Manifesto Anti-Dantas e por extenso, de José de Almada Negreiros, publicado em 1915. 

O texto contou com contributos e o olhar atento do Bernardo Afonso, da Margarida David Cardoso, da Maria Almeida, do Nuno Viegas e do Ricardo Esteves Ribeiro. 

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