Opinião

“O meu privilégio criou a Cova da Moura”, por Ricardo Esteves Ribeiro

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Quinze minutos separam a casa onde vivi até aos 18 anos e o bairro em que cresceu Vítor Sanches, fundador da loja de roupa ética e sustentável e livraria Bazofo. São pouco mais de 1000 metros entre a casa da minha mãe, na Quinta Grande, e a de Vítor, na Cova da Moura. Mas este quilómetro carrega muito mais do que um quilómetro — é uma linha de demarcação do privilégio.

Se a Quinta Grande é um bairro da classe média-alta da Amadora, com vivendas bonitas ladeadas por muros altos, ou prédios gigantes com vista para a cidade — eu vivia num 16.º andar —, a Cova da Moura é um enclave separado do mundo por uma estrada alcatroada. Vítor Sanches apercebeu-se desde miúdo de que quando atravessava essa estrada “estava num espaço que já não era dele”. E este bairro, de auto-construção, pobre, maioritariamente habitado por pessoas não-brancas, imigrantes ou descendentes de imigrantes das ex-colónias, foi-se definindo na minha mente, enquanto crescia, como “o sítio onde não se podia ir” — um “bairro problemático”, como se costuma ouvir em vários órgãos de comunicação social, ou pela voz de políticos e jornalistas, ou pelos comunicados da polícia.

Durante os quase 20 anos em que vivi e estudei na Amadora, talvez tenha entrado na Cova da Moura não mais do que três vezes. De todas elas, protegido e guardado por colegas negros talvez residentes no bairro, e, claro, nunca informando os meus pais. A cabeça de um miúdo de 14 anos (ou, pelo menos, a minha cabeça adolescente) ao entrar n’”o sítio onde não se podia ir” estava cheio de preconceitos baseados em notícias de violência e criminalidade que a televisão fazia entrar em minha casa, normalizando o que já na escola nos ensinavam nos livros de História: que o negro é perigoso e que lhe falta o civismo que nós, brancos, com certeza temos. E ao ir lá, eu tive medo, sim. Ao entrar num enclave de auto-construção, onde as estradas não são lisas de alcatrão brilhante; onde há pobreza generalizada; onde não entram autocarros e não há espaços verdes nem parques infantis, como no meu bairro, 15 minutos ao lado; onde não há escolas grandes e arranjadas; onde a luz pública é parca; e não há sucursais de bancos e farmácias e supermercados e restaurantes a cada poucas portas; e onde as pessoas têm uma cor diferente da minha. Sim, eu tive medo. 

Mas o que entendi ao ter voltado à Cova da Moura, anos mais tarde, já como jornalista do Fumaça, foi que a história que me contaram era mentira. Não foram os negros perigosos não-civilizados que criaram a Cova da Moura. Fomos nós. Os privilegiados. Foram décadas de políticas destruidoras de guetização que empurraram “os outros” para longe da nossa vista, para que os brancos ricos e de classe média-alta pudessem resguardar-se em vivendas bonitas ladeadas por muros altos, ou prédios gigantes com vista para a cidade, sem serem incomodados por quem não faz parte. 

Aprendi muito na Cova da Moura. Sobre racismo estrutural e desigualdade, sobre o nosso passado colonial, sobre Frantz Fanon e James Baldwin e Amílcar Cabral e Malcolm X, sobre amor radical, sobre solidariedade, e sobre o meu privilégio. 

Escrevo este texto desde a casa da minha mãe. Da sala do 16.º andar consigo ver a esquadra de Alfragide, onde seis residentes da Cova da Moura foram sequestrados e espancados repetidamente em 2015 — dois deles, Flávio Almada (ou LBC) e Celso Lopes, foram entrevistados pelo Fumaça, tal como um dos seus advogados, José Semedo Fernandes. Nunca durante a minha vida imaginei que tal coisa se pudesse passar comigo. Nunca tive medo da polícia em Portugal. Mas é também isso que distingue o meu privilégio de quem nasceu noutro bairro ou quem nasceu com mais melanina na pele do que eu.

Para Vítor Sanches, que fez da loja Bazofo um espaço cultural de resistência na Cova da Moura, nada do que aconteceu em 2015 é anormal ou surpreendente: “a Cova da Moura sempre foi um lugar de exceção para a polícia”, conta. Lembro-me de uma frase que me disse LBC há uns anos: “Antes, batiam-nos porque não sabíamos os nossos direitos. Agora, batem-nos porque sabemos os nossos direitos”. Talvez seja por isso que Vítor Sanches diz que “como negro, basta olhar para a polícia e é suficiente para estar a faltar-lhe ao respeito”. As suas duas filhas, diz, irão aprender o mesmo que ele aprendeu desde miúdo: não se olha um agente nos olhos.

Hoje assinalam-se dois anos desde que foi lida uma sentença histórica. A 20 de maio de 2019, oito agentes da PSP foram condenados na primeira instância por sequestro agravado, ofensa à integridade física qualificada, injúria, denúncia caluniosa e falso testemunho, devido aos acontecimentos de 2015. A sentença foi confirmada, meses mais tarde, com prisão efetiva para um dos agentes da PSP. 

As opiniões sobre se foi ou não feita justiça dividem-se, mas isto parece-me óbvio: hoje, a resistência anti-racista está viva.

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